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Pensamento e atualidade de Aristóteles – Aula III (Parte II)

Apostila do Seminário de Filosofia

TERCEIRA AULA

Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 29 de março de 1994.

Transcrição de:
Heloísa Madeira
João Augusto Madeira
e Kátia Torres Ribeiro

2a parte

A vida, plenitude do real. Deus é vivente, é zoon.

Acostumados a ver estas coisas no organismo vivente desde criança, são estes os traços que Aristóteles vai encontrar no que ele chamará de realidade, ou seja, ele procurará ver em tudo que existe, a sua unidade na variedade, a sua coesão e a sua hierarquia. O que é a mesmíssima coisa que encarar o real todo como se fosse um gigantesco modelo orgânico. Daí é que vem também a irritação dele com as matemáticas. Ele reconhecia, como os platônicos, que o mundo dos sentidos é muito difícil de captar, porque está em constante transformação. Seus elementos individuais não têm estabilidade suficiente para que você possa dizer algo sobre eles que já não se torne falso no instante seguinte. Os platônicos reagiam a isto fugindo dos entes sensíveis para os entes inteligíveis, sobretudo os geométricos, ao que Aristóteles objetava que, se os entes matemáticos tinham a estabilidade, isto não bastava para lhes dar a plenitude da existência. Ademais, os objetos matemáticos sofriam do mais grave de todos os defeitos – não serem objetos vivos. Segundo Aristóteles, evidentemente, o vivo é mais real que o morto. O vivo age, o morto apenas está num lugar, só vive espacialmente. O vivo, além de estar, age, produz efeitos sobre os outros seres. Esta é uma forma de existência mais intensa, mais plena e mais rica.

Dizia Aristóteles: vemos de um lado entes que são vivos, mas impermanentes, e de outro lado, temos entes permanentes, mas que não são vivos nem plenamente reais; sabemos que estes dois tipos de seres existem – sensíveis e matemáticos — , submetidos a leis que têm uma consistência própria e que não podemos mudar. Mas se estas duas formas de seres, reconhecidamente existentes são, cada uma delas, deficientes de um modo oposto, talvez haja alguma forma de existência que tenha as qualidades destas duas e esteja isenta de seus defeitos. Tenha a permanência do objeto matemático e seja viva e agente como os seres vivos. Este é o conceito aristotélico de Deus. Este Deus que ele só conhece como hipótese demonstrável por vias indiretas, do qual não tem experiência ou conhecimento direto, somente Ele atende ao requisito de ser perfeitamente real. Perfeitamente real seria aquilo que tivesse a forma mais intensa e rica de existência e ao mesmo tempo não fosse perecível, sujeito a acidentes. Só conhecemos isto como suposição que fazemos logicamente, não conhecemos por experiência, nunca ninguém viu Deus. Ele não se deixa apreender inteiramente pelos nossos órgãos dos sentidos. Por outro lado, também não se deixa apreender inteiramente pelos nossos cálculos e raciocínios lógico-matemáticos. Por um paradoxo, este Ser inapreensível se impõe a nós como o que seria o modelo da realidade plenamente real. Este vai ser o princípio fundamental da metafísica de Aristóteles. Este Deus seria o estrato superior da realidade. No entanto, este estrato não está separado do mundo sensível, como o mundo divino de Platão, mas está misteriosamente imbricado no real, ou antes, o real está imerso nele como dirá mais tarde S. Paulo Apóstolo: “Nele nos movemos, vivemos e somos”.

A importância das distinções em Aristóteles

Aristóteles admite uma complexa hierarquia do real; primeiro, não é composta de dois estratos, mas de uma infinidade. Em segundo lugar, o organismo é superior aos órgãos, mas, em relação aos órgãos, onde está o organismo? Não está em nenhum órgão. A relação complexa entre o todo e as partes que o compõem é uma outra característica do pensamento aristotélico. Daí a enorme preocupação de Aristóteles de estabelecer a relação entre unir e distinguir. A realidade é sempre é sempre composta de elementos distintos ou distinguíveis, porém nem sempre separáveis.

Do socratismo e do platonismo, com sua visão mais ou menos esquemática do mundo até esta rede de distinções enormemente sutis e trabalhosas há um salto, um aprofundamento monstruoso. Quando entramos no mundo aristotélico, subitamente entramos no nosso mundo. Estas distinções, cuidados etc. ainda fazem parte do mundo científico em que vivemos hoje. Ninguém se aventura a uma investigação científica sobre o que quer que seja se já não tiver todo um sistema de uniões e distinções mais ou menos estabelecido, um quadro conceptual dentro do qual os vários aspectos da realidade aparecem nas suas relações mais ou menos verdadeiras, que a investigação confirmará ou desmentirá.

Aí também há uma grande diferença entre toda a filosofia anterior e Aristóteles. Desde que surgem os primeiros filósofos gregos, os chamados pré-socráticos, até Platão, a principal ocupação deles consiste em dizer alguma coisa sobre a realidade, isto é, emitir uma doutrina sobre a constituição do mundo. Em segundo lugar, têm a preocupação de distinguir no mundo, radicalmente, o que é essencial do que é acidental, e portanto em dizer logo o segredo fundamental das coisas. Toda a filosofia pré-socrática se caracteriza pelo fato de que a cada filósofo corresponde uma fórmula que ele emitiu sobre o que é o mundo em essência. Um diz que é água, outro os quatro elementos, outro o ápeiron ou indefinido, e assim por diante. Resumem numa fórmula a constituição do real, e arquitetam todo um mundo de pensamentos para sustentar esta tese. Aristóteles não faz nada disto, não tem nenhuma doutrina sobre a constituição última do mundo. Ao contrário, ele se preocupa em conceber estratégias e métodos que permitam progressivamente ir descobrindo alguma coisa. Ele inventou o que hoje chamamos ciência. A atitude científica é aquela que se abstém da proclamação dogmática de uma verdade, mas pretende encontrar uma verdade fundamental, provada em todas as suas etapas e que uma vez demonstrada, se torne universalmente obrigatória para todos os seres pensantes.

Por que não existiu um aristotelismo grego. Teofrasto e Estratão.

Com este salto deixamos para trás a etapa dos gurus, dos quais Platão teria sido o último (guru é o sujeito que detém o segredo da verdade, e o enuncia em duas ou três fórmulas potentes, como aforismos ou sentenças proféticas). Platão, embora já seja um grande filósofo no sentido posterior, é o último guru da antiguidade grega. Ele entra na história mais ou menos como uma espécie de detentor de um segredo último, que ele enuncia em algumas fórmulas como que reveladas. De Platão para Aristóteles temos um salto imenso, no sentido da conquista do juízo crítico e da autoconsciência da limitação humana. Comparado com Sócrates e Platão, para não falar dos antecedentes, Aristóteles é de uma atualidade chocante. E, sendo assim, começamos a entender porque não existiu um aristotelismo no mundo grego. A filosofia aristotélica tinha propostas que estavam muito além e muito acima das exigências momentâneas da mente grega. Por isto mesmo, embora o Liceu Aristotélico tenha continuado a existir, o aristotelismo desaparece de dentro do próprio Liceu e ele só tem propriamente um discípulo que podemos dizer que é aristotélico – Teofrasto. Este é apenas doze anos mais novo que Aristóteles, da mesma geração. Produz duas obras importantes – uma Metafísica ( apresentação da metafísica aristotélica ) e outro livro chamado Os Caracteres, série de perfis psicológicos de tipos, que conserva o vigor e atualidade até hoje, principalmente através da tradução e complementação que lhe deu La Rochefoucauld. Teofrasto é o único discípulo que captou algo de Aristóteles e pode ser dito aristotélico.

O seguinte escoliarca do Liceu – Estratão de Lampsaco – já não é aristotélico de forma alguma, embora imagine que o seja. Acredita estar sendo fiel ao mestre no instante em que expõe doutrinas que são já lhe são radicalmente contráras. Estratão interpreta Aristóteles num sentido empirista, isto é, declara que todo o conhecimento vem exclusivamente pela experiência sensível. Mas Aristóteles não é nem empirista nem racionalista, e acho mesmo que ele não veria nenhum sentido nesta oposição. Segundo ele, o inteligível não está separado da realidade empírica, oculto num céu onde só possa ser alcançado pela razão pura; está antes imbricado no tecido mesmo da experiência, de onde é preciso desembrulhá-lo pelos esforços conjugados da análise metafísica e da pesquisa experimental. A experiência, para Aristóteles, não é concebível fora dos quadros lógicos que, por sua vez, se fundam na intuição intelectual dos primeiros princípios, os quais não poderiam ser obtidos da experiência ( por mera indução quantitativa ) mas também não poderiam chegar ao nosso conhecimento sem ela. Estratão esmaga logo toda esta sutil combinação, reduzindo a filosofia de Aristóteles a um empirismo, um erro tremendo que, quase dois mil anos mais tarde, será causa de outro erro complementar e oposto, que é o de tomar Aristóteles por um racionalista hostil à investigação experimental. ( Não há filósofo em torno do qual se tenham acumulado tantas imagens equivocadas, e é por isto que, neste curso, adoto esta abordagem indireta, de ir cercando Aristóteles através dos Aristóteles imaginários concebidos pelos que o comentaram, defenderam e atacaram. )

Assim o aristotelismo vai desaparecendo. Mesmo a edição dos textos de Aristóteles no século I a.C. (272 anos depois de sua morte), não suscita o nascimento de nenhuma escola aristotélica. Enquanto isto, a Academia platônica continua existindo e continua produzindo grandes nomes. As obras de Aristóteles passam a ser lidas por membros da Academia platônica e os primeiros grandes comentaristas de Aristóteles na Antiguidade — Alexandre de Afrodísia, Porfírio e Siriano – são todos neoplatônicos, não são aristotélicos.

Desde o último aristotélico – Teofrasto ( 372 a.C. ) até o primeiro aristotélico em sentido pleno que surge na história – Avicena ( 980 d.C. ), no mundo islâmico – passaram-se 1.400 anos! Este fato não tem sido enfatizado e sublinhado como o estou fazendo neste momento. Não existiu nenhum aristotelismo no mundo, depois da morte de Aristóteles, até decorridos 1.400 anos, a duração de uma civilização. Não de um país, ou de uma escola filosófica, ou de um regime político – é a duração de uma civilização inteira, um ciclo inteiro de transformações. O mundo islâmico, hoje, ainda não tem 1400 anos de idade. Se se observar o que ele é hoje, comparado a seus dias de glória, pode-se afirmar que é uma civilização já em decadência. Em 1.400 anos dá tempo de nascer, crescer, florescer, decair e morrer uma civilização. Portanto, afirmo taxativamente: Aristóteles não fez parte do mundo grego. Foi uma semente grega que ficou guardada num vidrinho para florescer somente dentro do que chamamos civilização europeia. Aristóteles é um filósofo europeu e não grego.

Isto não é estranho. Diz Goethe: “O ente que realiza perfeitamente a qualidade que define uma espécie já não pertence a esta espécie”. Já está em outro plano. Assim como o homem cujas qualidades e virtudes realizem o que existe de melhor no ser humano já nos aparece como sobre-humano, com algo de angélico. Como Santo Tomás de Aquino – o “Doutor Angélico”. Ou um tipo como São Francisco de Assis, com qualidades que são humanas, mas realizadas de maneira tão integral que você vê que de certo modo passou para uma outra espécie.

Émile Boutroux na sua pequena biografia de Aristóteles diz que este não é só um indivíduo, mas é a consumação, a perfeição de todo o gênio da civilização grega. É verdade isto. Mas esta perfeição, esta consumação aparecem como o fruto de uma árvore, que já não faz mais parte dela, que vai ser destacado e vai ser a semente de outra árvore. O fruto perfeito, por sua vez só age – e esta ação é a própria realidade – numa outra árvore que provém dele. Este hiato de 1.400 anos entre a produção das obras de Aristóteles e o surgimento de um aristotelismo no mundo está na própria natureza do aristotelismo que, representando o suprassumo do legado grego, não poderia fazer parte da civilização grega. Assim como a herança deixada por um milionário não faz parte da fortuna dele, pois só é herança depois que ele morre. A herança necessariamente pertence a um outro. Ora, ainda assim, esta herança não é apropriada de repente e toda de uma vez. A Europa toma posse do pensamento aristotélico, mas não é uma posse integral. Uma posse no sentido imobiliário, em que se tem a escritura definitiva. A tomada de posse do aristotelismo pela civilização ocidental é um processo que começa a partir desta época, entre os anos 1000 e 1300, que é justamente o que chamamos período de formação do pensamento escolástico, e que na verdade não alcançou sua plenitude até hoje.

O último grande escolástico citado na nossa lista é Duns Scot, nascido em 1266, que já não era propriamente um escolástico. Entre sua morte e o nascimento do sujeito que foi a grande expressão do aristotelismo renascentista – Pietro Pomponazzi – decorrem 200 anos: tempo da história inteira do Brasil como nação.

A História é feita de previsões errôneas

Nosso senso do tempo tem de sofrer alguns reajustes para estudarmos a história das idéias, onde as coisas transcorrem com uma lentidão terrível. Dizia Homero: “Os moinhos dos deuses moem lentamente”. São eles que produzem a farinha para o pão da história humana. As decisões dos deuses são tomadas lentamente, lentamente entram em vigor e produzem consequências que se desenrolam ao longo dos milênios. Para acompanhá-las temos de entrar numa espécie de câmara lenta. Nosso Congresso toma “decisões históricas” toda semana, mas é claro que esta impressão é baseada numa imagem falsa do que seja História. Não cabe ao próprio personagem da cena dizer qual a importância que suas ações de hoje vão ter no futuro. Estas “decisões históricas” são todas irrelevantes. Mas Weber diz que, com os eventos que parecem importantes no momento, costumam acontecer duas coisas – a primeira é que esses acontecimentos se fundem na massa acinzentada do historicamente indiferente; a segunda hipótese, é que o sentido dos eventos acaba sendo tão alterado que vira às vezes o seu contrário. Weber também diz, em outro lugar, que a História é o conjunto dos resultados impremeditados das nossas ações.

Os políticos que tomam decisões segundo uma interpretação simplista e esquemática do momento, caindo no engodo da retórica, arriscam-se a que suas decisões tenham efeitos inversos aos desejados. Quando Luiz XVI manda convocar os Estados Gerais, é para dar um fim ao clima de insatisfação. Ou quando o Czar da Rússia liberta os escravos, é para eliminar uma situação de insatisfação causada pela injustiça. Como resultado, Luiz XVI é guilhotinado e o Czar morre na explosão de uma bomba. Aqueles atos que, no entender dos personagens ( e segundo a retórica dos intelectuais do momento ), levariam à restauração do seu poder, causam em vez disto a sua extinção. É difícil o caso de um evento histórico que tenha efetivamente o sentido que seu personagem desejou ver nele. Como os mil anos do Reich, que se esgotaram em doze. Aquilo que parecia ser a culminação de um movimento nazifascista foi na verdade o seu fim. Imaginem se os autores da Revolução, ao guilhotinarem metade da França, soubessem que o resultado de tudo aquilo seria um império, um imperador que restauraria tudo e criaria uma nova dinastia, que depois cairia para dar lugar à volta da velha dinastia, e que em 1848 seria preciso fazer uma segunda revolução para morrer um bocado de gente novamente e que só por volta de 1870 haveria paz liberdade e prosperidade? Robespierre acreditaria nisso? Acreditaria que viria a entrar para a História como o protótipo do tirano sanguinário, em vez de como um libertador do povo?

O sentido do evento histórico é sutil, é melhor consultar os deuses e tentar ver as coisas a uma distância muito grande. Para isto, precisamos ter aquela neutralidade compassiva que nos permita querer ver o sentido das coisas como ele realmente é e não como o desejamos. Mas se já aderi a esta ou àquela causa, com todo o empenho, desejo evidentemente que ela seja vencedora e isto me faz apostar nela e ver as coisas de uma certa maneira. Não que todo militante seja um sonhador. Há muitos que são realistas, pessimistas ou cínicos. Mas é impossível que o militante não veja a situação em termos de vitória ou derrota da sua causa, e nem de longe imagine que outras contradições, alheias ao tema do seu interesse, venham a decidir o curso das coisas.

Então, se imaginarmos o que os contemporâneos de Aristóteles pensava dele, veremos que estavam todos enganados. E o próprio Aristóteles só não se enganou nisso porque não fez a menor previsão sobre o que aconteceria com o seu pensamento. Isto é outra coisa que nos parece assombrosa. Aristóteles não parece ter deixado para os seus discípulos nenhuma indicação sobre o que fazer. Não deixou uma orientação que pudesse de certo modo permitir a continuação do seu trabalho, como tinha feito Platão. Na Academia havia uma série de valores, de critérios tão bem estabelecidos que era só continuar como o mestre tinha começado que daria tudo certo. Mas Aristóteles não fez nada disso. Seu testamento é meramente pessoal, como os que se fazem hoje – o destino dos seus bens. É incrível a total despreocupação de Aristóteles com um trabalho que não tinha sido apenas pessoal – um trabalho coletivo, com centenas de pessoas contratadas graças a Alexandre para trazer informação para o Liceu. Como este trabalho imenso é deixado, quando ele morre – pelo menos ao que se sabe – sem continuidade? Explico isto em parte pelo fato de que quando Aristóteles morreu, este trabalho, para ele, estava praticamente encerrado; nos seus dois últimos anos de vida, ele estava no exílio e provavelmente prevendo que ia morrer, pois já partira doente, e sem comunicação com o pessoal do Liceu em Atenas. Em segundo lugar, ele não era um reformador do mundo. Não fazia planos para a vida alheia, que são a principal ocupação dos reformadores do mundo. Fez o que pode, e deixou os discípulos à vontade para fazerem o que quisessem. Em terceiro lugar, duvido que o próprio Aristóteles tivesse uma visão muito exata da revolução que havia começado. Não poderia, a não ser que fosse um profeta, imaginar o que ia acontecer com sua obra: o destino mais extravagante que se possa imaginar. Primeiro vai sumir tudo, todo mundo vai esquecer e quem ler não vai entender. Depois, tudo em torno vai acabar; esta polis, este regime; a Grécia será dominada pelos romanos; em seguida, vai erguer-se no mundo oriental um povo, o povo judeu, e do meio dele aparecerá um tal de Jesus Cristo que vai fundar uma nova religião sem importância, mas que trezentos anos depois vai dominar tudo isto; então vai aparecer algo chamado Igreja, que reconstruirá o mundo em novas bases; depois disto, mais a Oriente ainda, vai aparecer outro maluco, chamado Maomé, que vai trazer outra religião que dominará as Arábias e o Iran. Por lá é que vão ser reencontrados os manuscritos gregos, que serão passados para o árabe, depois para o latim, e isto vai cair nas mãos de um tal de Sto. Alberto Magno, que transmitirá a coisa a seu aluno Tomás de Aquino, o qual fará um estardalhaço a respeito – e então, finalmente, todo mundo vai ser aristotélico durante quatrocentos anos. Que história mirabolante! Poderia Aristóteles imaginar, mesmo de longe, esse destino póstumo das suas obras? Isto é absolutamente impossível. Portanto, Aristóteles não tinha a mais mínima idéia do que viria a acontecer.

Causas do desaparecimento do aristotelismo após a morte do mestre.

As visões iniciais que temos de um assunto às vezes determinam todo o restante das relações que teremos com ele. Por isso achei muito importante corrigir e explicar esta noção de Aristóteles como fenômeno grego. Pode ser grego nas suas causas, mas não nos seus efeitos.

Na aula passada mencionei que entre outras causas desta evolução anormal do aristotelismo, houve o fato de Aristóteles ter sido exilado em circunstâncias um pouco suspeitas por causa de suas ligações com Alexandre, o Grande. Relações que estavam estremecidas porque, numa crise política, Alexandre tinha mandado matar um sobrinho de Aristóteles, motivo pelo qual, apesar da amizade, todas as relações cessaram. Não chegaram a entrar em hostilidade mas não se procuraram mais para evitar de ter de acertar este ponto doloroso. Apesar deste distanciamento, quando surge uma guerra contra a Macedônia, todos os que tinham relações com o governo macedônico tornaram-se automaticamente suspeitos e Aristóteles teve de fugir. Não há indício do que aconteceu no Liceu em seguida, mas podemos supor que quem é amigo de suspeito, suspeito é. Portanto, deve ter havido uma correria geral para apagar indícios de relações com Aristóteles. Imagino que os textos dele foram-se tornando raros exatamente por isso. A história dos textos escondidos na caverna pode ser fictícia, mas a lenda deve ter sido inventada para explicar algo que aconteceu efetivamente. O fato é que os manuscritos sumiram e só dois séculos e meio depois reaparece a coleção nas mãos de Andrônico de Rodes. Mas não podemos explicar de maneira alguma pelo sumiço dos manuscritos a ausência de um aristotelismo grego. Primeiro porque não é possível que tenham sumido todos os manuscritos; segundo porque o Liceu continua funcionando. Acho que havia mesmo uma incompatibilidade da mente grega para absorver esta nova atitude intelectual, tão isenta daquele fundo profético-religioso que o grego estava acostumado a encontrar nos seus pensadores. Sobretudo nos séculos seguintes, a crise político-social da Grécia, inclusive com a extinção da chamada democracia grega e sua substituição por governos ditatoriais, vai fazendo com que os indivíduos, já não podendo participar da política, se sintam isolados e percam o sentido de participação na história e comecem a se preocupar cada vez mais com problemas de ordem psicológica e particular. Daí o sucesso das novas escolas filosóficas, das chamadas neo-socráticas — cínicos, megáricos –, dos estóicos e sobretudo dos epicuristas, porque estes todos transferiam o eixo das preocupações filosóficas desde as grandes questões teoréticas para problemas psicológicos. Tirando o estoicismo, não são propriamente escolas filosóficas, são como se fossem terapias tentando oferecer um alívio mais ou menos fictício, postiço, para os sofrimentos humanos, mediante disciplinas mentais. A proposta epicúrea, por exemplo, é nitidamente de nunca pensar na realidade, mas concentrar-se na recordação dos momentos agradáveis e só pensar neles, como se o presente não estivesse acontecendo. Tudo isto acompanhado de uma retirada da vida civil, para você se fechar dentro de uma espécie de ashram. O famoso “Jardim de Epicuro” é um ashram, para onde as pessoas iam para não sair mais, e onde ficavam curtindo as coisas simples da vida: comer, dormir, conversar com os amigos, só falar de assuntos agradáveis e nunca tocar nos males do presente. Uma espécie de sistematização da evasão. Como chamar a isto de filosofia? Não só o epicurismo como outras escolas deste tipo é o que estava em demanda – era o que as pessoas queriam, pois buscavam alívio urgentemente. Quem está em busca de alívio não está em busca do conhecimento da realidade. O conhecimento é um encargo, uma responsabilidade a carregar e supõe um certo equilíbrio das faculdades, que as pessoas não estavam absolutamente em condições de oferecer. Então, o aristotelismo desaparece não só por causa do fator material, da ausência dos textos, mas também por um fator psicológico- histórico, que o tornava desnecessário, do ponto de vista grego, naquele momento.

A gnoseologia de Aristóteles é organicista como sua cosmologia

Voltando às características básicas do pensamento aristotélico, que foram perdidas na geração seguinte do Liceu, vemos que desta visão inicial do real como organismo e como hierarquia, Aristóteles tira uma conclusão que é das mais importantes até hoje. A de que se a realidade que se oferece a nós tem uma forma de existência que se assemelha à do organismo – isto é, de ser uma unidade múltipla, vivente, temporal – o conhecimento humano devia ser exatamente a mesma coisa. Ou seja, não somente o ser tem esta forma orgânica de existência – a unidade de uma diversidade imersa no tempo e num processo evolutivo –, mas o conhecimento humano também deve ser uma unidade muito complexa de elementos diversos, coeridos sob uma forma orgânica, e existentes no tempo através de uma sucessão de transformações.

Além do mais, tal como o organismo humano é uma coleção, uma unidade composta de estratos hierárquicos diferenciados, o conhecimento também deve ter vários estratos diferenciados que vão emergindo uns dos outros e que estão intrinsecamente ligados uns aos outros, de maneira a poderem ser distinguidos, mas não separados. Estes estratos, tal como a própria hierarquia dos seres viventes, se dispunham desde aquilo que é mais simples e pouco coeso até aquilo que é mais complexo e mais coeso. As formas de vida mais simples que conhecemos, as mais elementares, têm uma coesão muito deficiente. Por exemplo, uma ameba pode ser cortada ao meio e resiste a esta divisão. Se você cotuca uma ameba, ela se move, tem notícia de que algo de ruim se aproxima, e foge da agressão. Mas se você a cortar ao meio, diante do fato consumado, cada parte vai para um lado e trata de viver separadamente. Se uma minhoca é partida ao meio, as duas partes continuam se agitando. Têm uma forma de unidade deficiente. Conforme os animais vão manifestando funções mais diferenciadas, mais abrangentes e superiores, ao mesmo tempo a coesão destes animais é maior. Se você corta um pedaço de uma planta, ela pode continuar vivendo. O pedaço cortado pode morrer, mas o resto continua vivendo. Um animal já não pode ser seccionado da mesma maneira. E o princípio da coesão vai-se tornando mais firmemente uno para proporcionar uma abrangência maior das funções. Nesta escala, onde à maior complexidade corresponde uma unidade mais coesa, o homem estava evidentemente colocado no topo. O homem é o mais complexo e, ao mesmo tempo, o mais coeso dos seres terrestres.Aristóteles via o processo do conhecimento exatamente nos mesmos termos em que via esta escala dos seres viventes, da qual mais tarde sairá, por uma aplicação óbvia de um preceito aristotélico, a teoria da evolução. Esta, pois, se encontra pressuposta nesta escala dos seres viventes proposta por ele. É só temporalizar — coisa que Aristóteles também não falou, mas é uma decorrência óbvia de sua filosofia –, e você terá aí um esboço da teoria da evolução. Darwin reconhecia sua imensa dívida para com Aristóleles, e dizia: “Lineu e Cuvier foram as minhas duas divindades, mas não passam de colegiais quando comparados ao velho Aristóteles.”

A esta unidade diversa da visão do real corresponde então a unidade diversa como visão do processo cognitivo.

l. A sensação. — O conhecimento começa para Aristóteles com as simples percepções sensíveis. Estas são pequenas alterações que um organismo sofre devido à entrada de uma informação que vem do exterior. Nem todos os seres têm a capacidade de receber estas informações. Os minerais, por exemplo, não a têm. Esta capacidade já marca a diferença entre seres mais simples e mais complexos.

2. A memória. — Porém, diz Aristóteles, entre os seres capazes de receber informações sensíveis, há alguns capazes de retê-las, e outros não. Por exemplo, a ameba não tem memória, mas o mosquito já tem. Então, a memória significa a capacidade de você repetir a mesma informação na ausência do estímulo. Ou seja, se na primeira vez o estímulo veio de fora do organismo, da segunda vez o organismo mesmo o produz, de maneira atenuada. Entre os animais que não têm memória e os que têm existe um salto de complexidade e qualidade, similar àquele que existe entre os seres que não têm percepções sensíveis e aqueles que as têm. Já temos um duplo salto: os insensíveis e os sensíveis, e dentre estes, os que são dotados de memória.

3. A experiência. — Dentre os seres dotados de memória, alguns são capazes do conhecimento por experiência. O que é isto? É um princípio de generalização em que, de várias experiências iguais, você conclui uma regra mais ou menos comum. Vemos que um gato tem memória. Você o vê repetir certos circuitos de ações; porém ele não tem a mesma capacidade de aprender por experiência que tem um cachorro. Quem já tentou ensinar aos dois, verá que no caso do gato isto é quase impossível. O gato não consegue generalizar – fazer dos casos individuais uma regra — com a mesma facilidade do cachorro. E dentre os animais dotados de experiência, o que a tem em maior grau é o homem.

Resumindo os vários saltos até agora: insensível ® sensível ® memória ® experiência.

4. A técnica. — Porém, a experiência e o conhecimento por experiência se dão exclusivamente dentro de um organismo individual. Eu tenho as minhas sensações, tenho a memória e, a partir desta, concebo a minha experiência e crio uma série de circuitos repetíveis que me permitem reagir de maneira similar em situações similares. No entanto, o homem tem algo mais do que isto. Ele não apenas tem a experiência, mas ele pode resumi-la e transmiti-la a quem não a teve. Isto já é o que se chama técnica. Bismarck diz que só os imbecis aprendem com a experiência. “Eu aprendo com a experiência alheia”. Técnica é exatamente isto: um conjunto de preceitos que permite aprender com a experiência alheia e transmiti-la a outros, sem que você tenha de passar por ela. É obviamente isto que já caracteriza o homem.

Depois da experiência, vem então a técnica que é experiência condensada, resumida e distribuída socialmente. O indivíduo que pode aprender pela técnica tem um salto de velocidade e eficácia imenso em relação àquele que só tem a experiência. Com a técnica, começa o mundo da cultura e começa o mundo propriamente humano.

5. A ciência. — Depois da técnica, ainda há mais um salto. A técnica é apenas uma codificação das experiências repetidas. Além disso, temos uma forma mais condensada, mais eficiente e mais profunda de conhecimento. É o que Aristóteles chama epistemê, que traduzimos normalmente por “ciência”. É onde não somente se conhece e sistematiza o circuito das experiências repetíveis, mas se encontram os princípios que fundamentam a repetição das experiências. Desde o conhecimento pelos sentidos até a epistemê, no topo da pirâmide, existe um processo de simplificação e coerenciação cada vez mais abrangente. Ou seja: as experiências sensíveis são muitas, mas nos dão relativamente pouco conhecimento útil; a memória já resume isto e repete umas quantas informações significativas; destas, a experiência abole as repetições e conserva apenas os esquemas úteis; estes, na técnica, são simplificados e codificados de maneira a poder ser transmitidos, o que aumenta barbaramente a eficácia da ação humana. Finalmente, na episteme ou ciência, dois ou três princípios científicos que sejam encontrados permitem abarcar uma multidão de conhecimentos organizada, coesa e eficientemente. De modo que o conhecimento se escalona numa pirâmide cujos vários estratos são inseparáveis. Se saltar um, não tem o seguinte. Não se pode dizer: “Este conhecimento aqui é superior, podemos abandonar o inferior”. Não – ele é superior porque tem inferior por baixo. O tijolo de cima cai, se você tirar o tijolo de baixo. Esta hierarquia tem um sentido orgânico insecável. Os vários estratos são logicamente distinguíveis, mas não são realmente separáveis.

6. A sabedoria. — A escalada poderia parar por aí, e já teríamos dado conta da inteireza da esfera cognitiva no homem em geral. No entanto, Aristóteles admite que o homem ainda possa subir mais um degrau, elevando-se do conhecimento dos princípios que estruturam o mundo da experiência ao conhecimento dos princípios universais, princípios de todos os princípios. A isto corresponde um novo “órgão cognitivo”, o núus, “espírito”, órgão da sabedoria.

Porém, Aristóteles insiste que a sabedoria é própria somente de Deus, e que para o homem ela é antes um ideal realizado de maneira precária e parcial do que uma posse efetiva. Por isto, ele hesitará muitas vezes ao assinalar uma denominação para a ciência correspondente a este estrato. A denominação “metafísica” é de Andrônico de Rodes, e embora ela seja adequada sob muitos pontos de vista, Aristóteles não usa esse nome em parte alguma. Às vezes ele usa “filosofia primeira”, às vezes “teologia”, e às vezes — olhem que coisa significativa — “a ciência que buscamos”. Que buscamos, precisamente, porque não a possuímos. Por isto, no esquema da escala do conhecimento segundo Aristóteles, é justo incluir ou excluir o sexto estrato, a sabedoria, porque ela pertence à estrutura do homem como um ideal, mas não lhe pertence como posse efetiva.

Aula IV – Parte I

 

Pensamento e atualidade de Aristóteles – Aula III (Parte I)

Apostila do Seminário de Filosofia

TERCEIRA AULA

Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 29 de março de 1994.

Transcrição de:
Heloísa Madeira
João Augusto Madeira
e Kátia Torres Ribeiro

1a parte

O pensamento de Aristóteles surge dentro de certo desenvolvimento em três etapas do que chamamos a Filosofia do Conceito – aquela que busca um objeto estável, algo que possa ser objeto de conhecimento, e o encontra, com Sócrates, no elemento conceptual da realidade. Elemento conceptual é a parte ou aspecto dos entes que, podendo ser resumido, encaixado dentro de uma forma mental fixa, revela o que estes entes são em essência, independentemente das variações ou transformações que possam sofrer no curso de sua existência. Por exemplo, um animal qualquer, leão, cavalo, burro, por um lado tem este aspecto essencial que faz com que possamos designá-lo sempre pelo mesmo nome referindo-nos à mesma espécie; por outro lado, é evidente que não há dois cavalos iguais, dois leões iguais. Também é evidente que o cavalo não permanece o mesmo desde que nasce até que morre. E que todo o processo de geração, existência, corrupção e morte não afeta a essência ou elemento conceptual destes entes. O leão morto não passa a ser outra coisa;é um leão, essencialmente o mesmo, porém privado de existência. Distinguindo entre o que seria o aspecto essencial e o aspecto acidental ou transitório das coisas, o método de Sócrates propunha que a mente humana se preocupasse principalmente do elemento conceptual, sendo que o outro aspecto não seria propriamente matéria de conhecimento, mas apenas de sensação e opinião.

Em seguida, com Platão, vemos que este elemento conceptual, já recortado, separado por Sócrates, adquire uma espécie de autonomia no sentido ontológico. Em Sócrates, a divisão entre o aspecto existencial e o conceptual era apenas técnica; era um artifício através do qual Sócrates tentava apreender um aspecto mais valioso da realidade, digno de ser investigado. Em Platão, esse aspecto separado por Sócrates é enfatizado como sendo ele mesmo a realidade, ao passo que o aspecto existencial, acidental e transitório é visto como uma espécie de tecido de aparências que nos oculta a verdadeira realidade. A passagem de Sócrates para Platão é bastante nítida; é uma diferença quase abissal. Uma coisa é dizer que vale mais a pena olhar a realidade por determinado aspecto por ser ele mais revelador; outra coisa é dizer que este aspecto é que é real e que o outro é, se não totalmente falso, pelo menos parcialmente ilusório. Podemos resumir tudo dizendo que em Sócrates a divisão dos dois mundos ou aspectos tinha um sentido metodológico, ou gnoseológico, e em Platão passa a ter um alcance ontológico. Um preceito metodológico ensina como você deve investigar as coisas; um princípio ontológico estabelece como as coisas realmente são..

Muitas vezes, na história do pensamento e na história das ciências, aconteceu que preceitos metodológicos se transformaram em leis ontológicas. O caso mais recente é o do marxismo. Marx diz que devemos olhar a constituição da sociedade em primeiro lugar por sua infra-estrutura econômica e depois, em função dela, descrever os outros estratos da sociedade – leis, política, costumes, valores, artes etc. Em primeiro lugar, isto é um preceito metodológico e como tal obviamente funciona. Porém, tem isto também um alcance ontológico? Será a sociedade objetivamente constituída assim? Uma base econômica sobre a qual e e função da qual se vão criando outros estratos? Marx não deixa isto muito claro. Ele diz apenas que em última instância o fator econômico é decisivo, dando a entender que outros fatores podem ser decisivos em instâncias não últimas. Como ele não diz em parte alguma o que entende por última instância e onde termina a instância penúltima, o mais prudente é interpretar o seu preceito em sentido apenas metodológico. Porém, a tradição marxista começou a tratar esta hierarquia metodológica como se fosse um preceito ontológico. Como se a sociedade fosse construída realmente de baixo para cima, a partir de um embasamento econômico que determinaria todo o resto. E hoje esta idéia, como preceito ontológico, entrou tão fundo na cabeça das pessoas que praticamente todo mundo pensa assim, mesmo quem não gosta do marxismo… O que seria um mero preceito metodológico ou no máximo uma hipótese ontológica acaba virando uma convicção das massas que acreditam que isto tenha um fundamento científico.

Também na antropologia, a idéia de que o antropólogo, quando examina diferentes culturas, deve evitar fazer uma hierarquia valorativa, como se uma cultura fosse melhor do que a outra, é um preceito metodológico. Depois, quase que implicitamente, tornou-se uma regra ontológica que diz que “não existem diferenças de valor entre as culturas ou os costumes”. Um costume como a antropofagia, por exemplo, deve ser considerado tão bom – ou tão ruim – como o da adoção dos órfãos. Sempre que passamos do preceito metodológico para o ontológico existe no mínimo uma imprudência muito grande.

Na passagem do socratismo para o platonismo parece ter havido isto e não sei nem se o próprio Platão e os que o cercavam se deram conta desta escorregadela, pela qual foram do metodológico ao ontológico.

E preciso cuidado para saber quando alguém está falando sobre a constituição da realidade ou sobre a melhor maneira de examiná-la. Dizer que um método é mais conveniente do que o outro nada pressupõe a respeito da realidade. O fato de que convenha examinar algo por certo lado não quer dizer que este lado seja objetivamente o mais importante.

Distinção entre a ordem do ser e a ordem do conhecer

Aristóteles esclareceu isto perfeitamente com a distinção da ordem do ser e da ordem do conhecer. Quando o arquiteto concebe uma casa, ele concebe o todo, o esquema geral; mas na ora de construir tem de seguir a ordem exatamente inversa, tijolo por tijolo. Quando você vê a casa, novamente o que vê é o todo; mas quando vai percorrê-la tem de ir parte por parte. Há uma série de inversões da hierarquia. Do mesmo modo, o primeiro que conhecemos nos seres é o seu aspecto exterior e manifesto, mas é claro que este aspecto é o último na sequência de constituição desses seres.

Um preceito metodológico refere-se à ordem do conhecer, que nem sempre reflete a hierarquia real do ser. Quando você conhece uma pessoa, a primeira coisa que vê é a aparência física. Mas como esta pode ser reveladora, se ela é própria apenas daquele momento? Você conhece alguém de quarenta anos, está vendo a aparência desta idade, não sabe tudo o que aconteceu antes. A ordem do conhecer nem sempre vem na hierarquia certa do ser.

Um método é apenas um caminho para chegar a alguma coisa. Ora, descrever o caminho pelo qual você chega de São Paulo ao Rio de Janeiro não é falar nada sobre o Rio. A partir de uma descrição da Via Dutra você nada fica sabendo sobre a cidade do Rio.

Evolução da filosofia do conceito: de Sócrates a Platão.

Se procurarmos em tudo aquilo que está documentado como dito por Sócrates – as falas a ele atribuídas – algo de uma ontologia, não o encontramos de maneira nenhuma. Só encontramos preceitos de lógica, de ética e de metodologia. Quando o Sócrates que aparece nos Diálogos de Platão começa a dar a preceitos de Sócrates valor ontológico, aí podemos dizer que quem está falando é Platão. Ele transformou uma sugestão metodológica numa doutrina formal sobre a constituição do real. Em vez de dizer que é mais fácil examinar os seres pelo seu aspeto conceptual ou lógico do que pelo simples aspecto sensível, ele diz que o aspecto conceptual ou lógico é a verdadeira realidade, e que o aspecto sensível, ou existencial, é aparência, é um véu.

Com isto, uma separação meramente mental que nós fazemos – a separação entre o ser e o seu conceito – é hipostasiada, personificada, materializada numa divisão real do mundo em dois estratos. Como se o mundo único da nossa experiência, aquele sobre o qual investigamos, já não fosse bastante complicado, você cria dois mundos.

A doutrina dos dois mundos é quase um tendência natural do espírito humano. Hoje vemos, dois mil e tantos anos depois de Platão, que certo platonismo já aparecia na arte do homem das cavernas. Isto foi destacado por um grande historiador da arte, chamado Wilhelm Worringer. Ele observou que o homem primitivo, longe de ser um cidadão perfeitamente integrado na natureza, sentindo-se perfeitamente bem ali, é, ao contrário, um ente aterrorizado pela natureza imensa que o cerca, cheia de imprevistos e ameaças incompreensíveis. Por isso mesmo, a arte dos povos primitivos, longe de ser uma arte naturalista, uma arte que retrate a natureza com toda a sua variedade de formas e cores e seres, é uma arte simplificadora, uma arte geométrica, que expressa um impulso abstrativo muito intenso. Worringer explica assim este estilo de arte: quando o mundo real nos parece demasiadamente complicado ou ameaçador, tendemos a nos refugiar num domínio intelectual puro, para podermos encontrar dentro dele os princípios de organização simplificadora, com os quais mais tarde voltaremos a tentar nos instalar no mundo externo. Como você não está entendendo o que se passa fora, recua para organizar os próprios pensamentos. Depois de os ter organizado, volta à ação exterior. Ora, uma arte de ornamentação puramente geométrica é o que se observa em praticamente todas as sociedades tribais; e uma arte naturalista, na qual o artista se deleita em copiar as formas da natureza, só aparece nas sociedades organizadas, na polis. O naturalismo, a curtição da natureza, são próprios do homem civilizado, e não do primitivo. Para este a natureza é um caos, porque ele não tem poder sobre ela. A partir da hora em que consegue organizar o pensamento humano, e em consequência, a sociedade, coloca uma hierarquia, coloca todo mundo para trabalhar, monta as cidades, cria sistemas de produção e defesa, e afinal sente-se mais seguro e face desta natureza, então sim os aspectos terrificantes dela são atenuados e começam a aparecer os aspectos estéticos. A beleza da natureza só é visível depois que você está a uma boa distância dela.

Esta arte primitiva tem também um sentido religioso, ritual, de modo que as formas puramente geométricas expressam um realidade que, não sendo visível neste mundo, não estando na natureza, é no entanto superior a ele, e na qual o homem se sente protegido contra o caos exterior. Expressa um mundo de relações puramente espirituais, angélicas. São símbolos, signos mágicos ou religiosos. Podemos ver nestes fenômenos descritos por Worringer uma espécie de platonismo primitivo, e aí entenderíamos o platonismo não apenas a filosofia de um certo cidadão, mas como uma tendência constante do espírito humano, e que reaparece sempre que a situação fica caótica e o homem, não conseguindo entender o que se passa, procura em primeiro lugar reordenar o seu mundo interior. Por isto dizia Alain que Platão é o filósofo bom para os que estão em dificuldades interiores, ao passo que Aristóteles é para os cientistas e pesquisadores do mundo.

Num outro contexto completamente diferente, Carl-Gustav Jung, que não levo muito a sério como teórico mas cujas observações clínicas são primorosas, notou que sonhar com objetos geométricos acontece na hora em que a anima está dialogando com o superego ( anima é a parte da psique que congrega desejos, aspirações de felicidade; superego é senso imanente de autoridade, legalidade interna ), no sentido de obter autorização para fazer alguma coisa que ela deseja. Na hora e que se estabelece este diálogo que visa reordenar a relação entre as leis e os desejos, é que o sujeito começa a sonhar com figurar geométricas. O geometrismo expressa um princípio de reorganização da mente. Por um motivo muito simples: o geométrico forma uma espécie de ponte entre o puramente matemático e o sensível. As matemáticas começam a se desenvolver primeiro pela geometria e só depois chegam à aritmética pura. No tempo de Platão, a geometria já estava bastante desenvolvida e a aritmética só começa a caminhar uns quatro séculos depois. É mais fácil raciocinar matematicamente com figuras geométricas do que com números abstratos. O geometrismo aparece como um diálogo, uma intermediação entre a parte sensível e a parte inteligível, ou como diria Jung, entre a anima e o superego.

O geometrismo é um recuo para uma reorganização interior, um rearranjo entre as exigências da alma humana e o senso de ordem, hierarquia lógica, realidade firme, etc. Visto assim, o platonismo não é a filosofia de Platão, mas um tendência que reaparece a todo momento, sempre que o homem sente a necessidade de refluir desde um situação exterior caótica até um princípio espiritual, interno, invisível ou transcendente de organização. E se é assim, sempre que houver uma situação de caos social, intelectual, moral, ressurgirá algum platonismo, ou seja, uma divisão do mundo em dois estratos, dando mais atenção ao estrato superior interno, representado em geral por figuras e relações de tipo geométrico. Veremos isto às portas da Renascença, época de muito caos, de dissolução da unidade da civilização cristã, e onde indivíduos mais sensíveis, como Kepler, sentem a necessidade de restaurar a doutrina platônica sob as formas geométricas do cosmos. Segundo Kepler, haveria entre as distintas esferas planetárias as mesmas relações que existem na sequência dos sólidos geométricos platônicos. O desejo de encontrar na realidade externa um princípio geométrico é um desejo de ordenação. Do mesmo modo, a queda do marxismo após a revelação dos crimes de Stalin por Kruschev precipitou a intelectualidade européia numa crise de consciência para a qual encontrou alívio aderindo ao estruturalismo de Cl. Lévi-Strauss, uma espécie de geometrismo antropológico que, inspirado no rigorismo linguístico de Saussure, reflui do devir histórico para a busca das estruturas permanentes.

Ora, só procuramos ordenar o que está desordenado. Quando você está se sentindo perfeitamente bem na confusão e na variedade do mundo externo, não quer organizá-lo de maneira alguma. A distinção que faz o Worringer entre a arte primitiva ou geometrizante e a arte clássica de tendências mais naturalísticas é a distinção que existe entre o homem que teme o cosmos e o que se sente bem nele. Mas este sente-se bem porque está um pouco fora dele, protegido por uma camada — Lévi-Strauss dizia “almofada” –que é a própria civilização.

A época de Platão era uma época de caos moral muito grande. Platão tinha o impulso de reformar, reordenar o mundo todo; tinha um projeto político para o mundo inteiro, principalmente para Atenas. Na famosa Carta VII ele explica que o grande objetivo de sua vida tinha sido reformar politicamente a Grécia. Platão não era só um filósofo, era um homem público, um homem de ação. Vemos na biografia de Platão que este impulso reformador e reordenador se defronta com uma série impressionante de fracassos, num dos quais ele tenta dar seu apoio a um golpe de Estado que teria sido dado por um discípulo seu numa cidade vizinha; tinha ele a idéia de, a partir desta cidade, reordenar a Grécia, voltando vitorioso para Atenas, como fez depois Mohammed ( Maomé ) – saiu, reformou a cidade vizinha e voltou à sua, para reformá-la nos moldes da primeira. Platão faz uma espécie de Hégira – mas não dá certo. O golpe de Estado é reprimido, Platão é preso e vendido como escravo na feira, sendo recomprado por seus discípulos.

Sócrates não teve nenhum intuito de agir politicamente, a sua é um tipo de filosofia muito mais pura que a de Platão, mistura de filósofo e estadista — reformador, político, moralista, profeta. Saindo desta e de outras experiências do mesmo teor, ele inicia, na maturidade, quando começa a se tornar independente do mundo socrático para criar seu próprio mundo filosófico, uma transição marcada por um abstratismo, uma geometrização e uma absolutização da divisão do mundo em dois estratos. Em parte, essa mudança na orientação da filosofia de Platão acontece por força destas experiências que mostram ao filósofo o caráter rebelde do caos do mundo, que não se curva tão facilmente aos nossos impulsos reformadores. Aí ele sente que antes de reformar o mundo é preciso fazer uma espécie de interiorização, uma reforma do mundo interior, uma reordenação conceptual para mais tarde tentar com base nela reorganizar o mundo. O empreendimento não foi totalmente fracassado porque toda a proposta pedagógica que Platão oferece para a reforma do mundo acaba sendo adotada, letra por letra, pelo clero católico. Se observarem o que é a educação de um padre na igreja e perguntarem de onde a Igreja tirou isto, esta idéia de uma preparação interior até que o sujeito esteja pronto para atuar no mundo, nada encontrarão nos Evangelhos ou no Antigo Testamento. Não há fontes cristãs deste modelo: sua fonte é o velho Platão. Na famosa República Platônica, a chefia é conferida aos filósofos mais profundos; a filosofia deles é uniforme, todos pensam igual, numa espécie de clero filosófico. Esta proposta não foi adotada na política mundial, mas o foi na organização da Igreja. Neste sentido, a proposta platônica perdeu a batalha na Grécia mas venceu em uma outra parte do mundo, justamente a parte que continha em si as mais promissoras sementes de futuro, as sementes da civilização européia que, sem sombra de dúvida, é obra da Igreja.

Organicismo versus geometrismo

Em contraste com isto, vemos que Aristóteles, pertencente a uma família de médicos e tendo, muito provavelmente estudado anatomia desde pequeno, não tendo nenhum talento especial para matemáticas, e ao contrário, manifestando certa birra com elas, e especialmente com o matematismo, se mostra um homem muito mais inclinado a conceber a idéia de formanão segundo um modelo geométrico, mas segundo o modelo do corpo vivente, seja do ser humano ou do animal. Daí parte uma série de tendências características do pensamento aristotélico. Aristóteles é o inventor da biologia e podemos tomar a sua filosofia como protótipo do pensamento biológico – o que toma o ser vivente como modelo do real. Ora, o ser vivente não é encontrado num outro mundo, através de um pensamento conceptual, mas sim neste mesmo e com os dois olhos da cara. É possível vê-lo, tocá-lo, cheirá-lo, examiná-lo, observá-lo no seu surgimento, no deu desenvolvimento, na sua plenitude, declínio e morte.

A primeira coisa que se observa num organismo é a inseparabilidade que existe entre a unidade e a variedade que o compõe. O organismo tem a característica de morrer se for cortado pelo meio. Se perder a unidade, já não existe mais. Por outro lado, é uma unidade composta de uma diversidade, de uma diversificação muito grande de órgãos – por isso mesmo se chama organismo (conjunto harmônico de órgãos que funcionam para um mesmo fim). Se você observar os vários órgãos que compõem qualquer corpo vivente, vai ver que não há nenhuma maneira de explicar a coordenação entre eles, senão em vista dos fins a que este organismo visa. Os vários órgãos são tão diferentes entre si que somente funcionam de maneira coordenada se o organismo todo tender a um determinado fim. Quanto mais dirigido a um fim claro e definido está o organismo, mais harmoniosamente funcionam os seus vários órgãos. Por isto, a ginástica ou qualquer disciplina funcionam, porque acostumam todos os órgãos a agirem de uma maneira sincrônica e harmônica, em vez de se dispersarem. Esta harmonia é a própria integridade do corpo humano. Quando os órgãos se rebelam uns contra os outros é a doença, e em seguida a morte. Quando o organismo morre, ele se decompõe, suas partes mínimas separam-se e adquirem vida autônoma. Perde a coesão, a harmonia, s subordinação e coordenação entre as partes. Tudo isto são observações que devem ter ocorrido a Aristóteles muito precocemente, muito antes de que ele as formulasse filosoficamente.

O corpo humano tem ainda a característica de ser marcadamente hierárquico. No organismo, nem todos os órgãos têm a mesma importância vital. Temos partes do corpo humano que nós mesmos incessantemente cortamos e jogamos fora: cabelos, unhas. Outras que expelimos constantemente. Outras que são substituídas: hoje sabemos que todas as células são trocadas de tempos em tempos. Naquele tempo não se sabia, mas era fácil ter uma certa antevisão disto. Temos órgãos que não podem ser eliminados, pelo menos no todo, sem um grave prejuízo para o corpo. Se nos cortam uma perna, continuamos vivendo, embora de maneira deficiente. E outros que não podem ser cortados, nem mesmo tocados – se você for acertado ali está morto. Sabemos que podemos viver sem uma parte do cérebro, mas não sem cérebro nenhum. Mas não podemos viver sem metade do coração, ou sem ossos. Esta gradação hierárquica de importância vital é outra característica do organismo. Então, temos:

1º) Unidade na variedade.

2º) Identidade entre a coesão e a existência real (a coesão é a própria possibilidade de existência).

3º) Caráter hierárquico.

Unidade diversificada, coordenação e subordinação são as carecterísticas mais evidentes do ser biológico.

Aula III – Parte II

 

Pensamento e atualidade de Aristóteles – Aula II (Parte II)

Apostila do Seminário de Filosofia

SEGUNDA AULA

Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 22 de março de 1994.

Transcrição de:
Heloísa Madeira
João Carlos Madeira
e Kátia Torres Ribeiro

2a parte

Aristóteles não aconteceu na Grécia

Vamos começar por ver a imagem de Aristóteles no tempo dele mesmo. Quase todo o seu trabalho foi desenvolvido ou na Academia ou na escola que ele fundou num lugar chamado Liceu, nome que depois se torna a designação de escola mesma. Somente uma parte das idéias dele circulou fora da Academia e do Liceu. Na Academia ele dava cursos de retórica e chegou a ser famoso nesse campo durante algum tempo. Mais tarde, funda uma nova escola de retórica, ainda antes de fundar o Liceu. (ver Cronologia, em Documentos Auxiliares I).

Aristóteles permaneceu vinte anos na Academia, dos dezenove aos 38, quando se dirige a este lugar chamado Atarna, governado por um amigo seu chamado Hermias, com cuja sobrinha ou irmã – não se sabe ao certo -, chamada Pítias, virá a se casar.

O ensino propriamente dito começa aos 49 anos. Isto dá o que pensar. Decorreram trinta anos de estudos e preparações antes de ele fundar sua própria escola. Dentro da Academia, ele se incumbia de algumas matérias, mas menores – retórica e dialética. Depois funda uma escola, mas ainda de retórica, não uma escola filosófica. Portanto, Aristóteles sentiu-se firme para fazer a transmissão sistemática de suas idéias só trinta anos depois de ter começado seu aprendizado filosófico. Esta duração permanecerá como uma instituição até a Renascença. Um professor universitário, na Idade Média começava a ensinar mais ou menos aos 49 ou cinqüenta anos. O período de formação era de trinta anos.

Não só o trabalho filosófico de Aristóteles teve pouca difusão, ao contrário de suas obras literárias ou retóricas, mas também Aristóteles, ao contrário de Platão, teve muito azar com os discípulos. Nunca teve discípulos à sua altura. A Academia platônica continua atuando séculos além da morte do mestre, até depois da era cristã, quando surge o neoplatonismo. O Liceu morre praticamente com Aristóteles. Continua existindo institucionalmente, a escola funciona por mais dez ou quinze gerações de diretores que se chamavam escoliarcas, porém nenhum deles tinha o menor talento para manter o nível de ensino e de pesquisa do mestre. Além do fato de Aristóteles ser estrangeiro, é preciso levar em conta que ele teve algumas atitudes consideradas desagradáveis por seus colegas. Ele é rodeado desde o início por uma hostilidade que se expressa seja através do silêncio, seja através do ataque direto, seja através da calúnia e da intriga. Estas vêm sobretudo com a escola epicúrea. Epicuro era um contemporâneo de Aristóteles e hoje, pela reconstituição dos textos, vemos que da obra aristotélica só conhecia a parte publicada, não filosófica. Todas as opiniões que Epicuro emite sobre Aristóteles não são, pois, sobre o Aristóteles que conhecemos. Vemos Epicuro discutindo certas idéias aristotélicas que nós não conhecemos pelos textos. Que Aristóteles era este que Epicuro discutia? Era o platônico. Os primeiros escritos de Aristóteles, literários, eram pura divulgação da Academia. Neles exortava as pessoas ao estudo da filosofia e louvava a atividade da Academia platônica. Ou seja, o Aristóteles dos contemporâneos era um platônico que, sendo professor de retórica, tendia a assumir na defesa da escola uma atitude polêmica e um pouco incômoda.

O aristotelismo como movimento filosófico é tardio. Começa a se formar timidamente nos séculos III e IV da era cristã, isto é, sete séculos depois da morte de Aristóteles (já tive aliás um arranca-rabo com um cretino da SBPC que afirmava que nesses séculos ninguém tinha lido nada de Aristóteles, quando ele é que não tinha lido nada) . É um fenômmeno mais ou menos como o que ocorreu com Leibniz, filósofo do século XVIII cuja obra só começa a se tornar mesmo conhecida a partir do século XX. Ele também tinha escritos de ordem mais popular e outros mais técnicos. Na sua época foram publicados os primeiros, formou-se uma imagem de um determinado Leibniz, justamente o que é caricaturado por Voltaire no personagem do Dr. Pangloss, em “Candide”. Quando Leibniz já estava mais ou menos esquecido e enterrado sob a figura do Dr. Pangloss, abrem-se as gavetas e começam a surgir manuscritos. Esta descoberta propicia uma série de avanços sobretudo na filosofia da matemática, na metodologia da física etc. Leibniz provoca uma revolução dois séculos depois de falecido.

Com Aristóteles esta revolução póstuma não acontece antes de sete séculos. Aí está a primeira retificação que devemos fazer da sua imagem histórica. Aristóteles não é um fenômeno grego. Na Grécia não aconteceu nenhum Aristóteles. Aconteceu um fato insignificante: havia uma escola de retórica chefiada por um estrangeiro meio incômodo que fazia propaganda do guru dele, Platão, e que acabou indo embora da cidade. Isto é praticamente o que se sabia de Aristóteles na Grécia nos séculos que se seguiram à sua morte. Se compararmos a influência decisiva de Aristóteles na civilização cristã da Idade Média até hoje com aquela que ele exerceu na Grécia, não é errado concluir que, na Grécia, praticamente não existiu nenhum Aristóteles, e um aristotelismo não existiu de maneira alguma.

Se hoje podemos dizer como Émile Boutroux (autor da pequena biografia que anexamos aos textos deste curso) que Aristóteles é a máxima expressão do gênio grego, seremos obrigados a concluir que o gênio grego, desconhecendo Aristóteles, se desconheceu a si mesmo. Aristóteles não é propriamente uma expressão do gênio grego, é uma semente do gênio grego que não frutificou na Grécia. Aristóteles não faz parte da autoconsciência grega. Faz parte do subconsciente grego. Era uma riqueza latente que foi desconhecida na própria Grécia e desenterrada depois, já na Idade Média, primeiro no mundo islâmico, depois na Europa. Este detalhe é de uma importância extraordinária e ninguém leva isso em conta. Todo mundo imagina Platão e Aristóteles como sendo as colunas mestras da civilização grega. Ora, Aristóteles na civilização grega não desempenhou função alguma. Não serviu para nada. Começou a servir muito tempo depois numa outra civilização, ou antes, em duas outras civilizações que ele fecundou com a herança do seu gênio e que aproveitaram essa contribuição cada qual segundo sua inclinação peculiar, gerando dois aristotelismos (e dois anti-aristotelismos) bem diferentes entre si. Se você disser que o platonismo foi um pilar na civilização grega nos seus últimos quatro séculos, isto é verdade. Mas o aristotelismo não. Só funcionou ali como uma pequena extensão da escola platônica, sem projeção própria e quase sem fisionomia própria.

O legado grego de confusões sobre Aristóteles

Isto é origem de muitas confusões. Porque, quando um filósofo é muito lido, muito discutido por pessoas inteligentes e discípulos hábeis, em vida, ele tem ocasião de se explicar muito bem sobre pontos obscuros. Como aconteceu com Platão. Já nas primeiras obras de Aristóteles vemos certas objeções que ele tinha à famosa teoria das idéias de Platão. E no último livro de Platão – o diálogo Das Leis, que não é bem um diálogo mas um tratado – já existe um princípio de reformulação da teoria das idéias, que Platão faz levando em conta as objeções de Aristóteles. Portanto podemos entender que o pensamento platônico, recebido e trabalhado por um discípulo particularmente brilhante, pôde se reformar e ser melhorado em vida do próprio mestre. Isto se deu tardiamente, pois Platão tinha mais de 80 anos quando escreveu as Leis, motivo pelo qual é um livro que já não tem o brilho literário e teatral das primeiras obras, mas é algo seco, árido e muitíssimo profundo. É o livro mais importante de Platão, a meu ver. A República foi escrita quando ele tinha cinqüenta e poucos anos e é uma exposição provisória. É no livro das Leis que vemos a potência do platonismo como filosofia capaz de evoluir e ir-se completando. Ora, esta potência surge justamente porque Platão mais jovem tinha encontrado um discípulo capaz de discutir as idéias e apontar as partes faltantes e eventualmente as contradições, de modo a estimular a continuação da investigação.

Isto nunca aconteceu com Aristóteles. Podemos dizer que suas idéias não foram discutidas, pelo menos com profundidade, nem mesmo dentro do Liceu. Dentre seus discípulos, o mais inteligente e brilhante parecia ser Teofrasto, que escreveu uma exposição da Metafísica de Aristóteles que mostra um suficiente domínio do assunto. Escreveu também um livro que depois ficou clássico, Os Caracteres, série de perfis psicológicos de tipos humanos, que poderia ser considerado parte da retórica, que é uma psicologia da comunicação entre grupos e tipos sociais. Porém quando dizemos que o melhor dos discípulos, o mais inteligente, não fez mais que uma reexposição e não um aprofundamento, temos de entender que entre os discípulos de Aristóteles não havia um pensador mais enérgico, mais criador. Aristóteles não teve esta sorte de encontrar discípulos capazes de ter uma reação criativa ao pensamento dele, pois a recepção passiva é apenas o começo de um aprendizado. Um aprofundamento sugere uma discussão de modo que aquele estilo de pensar permaneça em movimento e possa ser prosseguido dialeticamente, como fez Aristóteles com Platão.

Resultado: morto Aristóteles e morto Teofrasto, o Liceu afunda. Os escritos internos do Liceu que eram os mais interessantes e que são os que hoje conhecemos desaparecem inteiramente de circulação e os escritos populares continuam ainda a ser lidos, mas acabam desaparecendo também.

No século I a.C. ocorre uma reversão. Os escritos populares estavam quase totalmente desaparecidos, e ressurgem as apostilas e escritos internos do Liceu que são então editados por Andrônico de Rodes. Existe toda uma história mirabolante segundo a qual quando houve a perseguição aos aliados macedônicos entre os quais estava Aristóteles (Atenas estava em guerra com a Macedônia), uma coleção completa dos seus escritos teria sido escondida numa caverna onde permaneceu por três séculos, tendo sido depois levada a Roma, onde alguém começou a fazer uma edição. Mas tendo morrido este editor, a edição ficou para depois e no fim é Andrônico de Rodes – que era o décimo diretor do Liceu depois de Aristóteles – quem retoma os escritos e forma uma edição de conjunto. É claro que Aristóteles só poderia exercer uma influência no mundo a partir de uma edição dos textos. Mas isto também demorou algum tempo. Neste período, a escola epicurista, mesmo depois da morte de Epicuro, continuava crescendo e fazendo muitos discípulos. Esta não é bem uma escola filosófica, é um sistema de disciplinas psicológicas baseado nos seguintes princípios: nós vamos mesmo morrer, não existe nada após a morte, nada a esperar, os deuses também são materiais, eles também morrem; então o máximo que podemos fazer é nos fechar na escola filosófica e ficar meditando de modo a apagar os momentos maus e lembrar só os bons, e, se não houver momentos bons, você os inventa. Era uma técnica de evasão, uma espécie de cocaína filosófica. Ademais a escola epicúrea não fazia nenhuma exigência para a admissão dos alunos, aceitava qualquer um. Havia de tudo: ricaços, senhoras da sociedade, prostitutas, qualquer um. A escola prometia um alívio às pessoas. Mas no fundo ela confessa seu caráter mórbido porque o que é chamado de meditação filosófica é exclusivamente a tal história de apagar os momentos maus e se concentrar nos bons. Quando você é obrigado a viver de imaginação é porque está tudo perdido mesmo. Mas o fato é que uma oferta de alívio, falsa ou verdadeira, sempre faz sucesso. Com este sucesso, o velho desentendimento entre a escola epicúrea e a platônica, da qual Aristóteles era um porta-voz, fez com que a difamação contra a sua pessoa – não contra as idéias – prosseguisse até dentro da era cristã.

Uma coisa que nos surpreende até hoje é a capacidade de produção escrita dos autores antigos e medievais, realmente assombrosa. O próprio Aristóteles, se considerarmos que o que temos é aproximadamente um terço do que ele produziu – e a sua não foi uma vida longa -, seu volume de escrita é monstruoso.

Por esta situação toda, vê-se que esta obra está mais sujeita a más interpretações que a uma interpretação correta. Antes de ela ser publicada, já havia equívocos circulando, porque as pessoas já tinham uma imagem de Aristóteles feita a partir dos escritos literários, que mostravam idéias da Academia platônica. Idéias que ele veio depois a retificar ou abandonar. Quando os textos aparecem à luz, já é tarde: a confusão está formada, os equívocos estão consolidados.

A primeira desgraça que acontece com a filosofia de Aristóteles é que um de seus principais continuadores – Estratão de Lampsaco, um escoliarca, e que funciona durante algum tempo como porta-voz do Liceu aristotélico, já apresenta uma filosofia aristotélica alterada tal como ele a compreendia. Segundo ele, era uma filosofia empirista (aquela na qual somente a experiência que entra pelos cinco sentidos é fonte de conhecimento). Estratão, neste sentido, pode ser dito fundador do empirismo, que mais tarde será uma escola, em 1600. A filosofia de Aristóteles, portanto, já apareceu cortada pela metade.

Aristóteles, fundador do holismo.

Uma das características principais de Aristóteles é o desejo de organicidade, de totalidade sistêmica; o demasiado abstrato é para ele meia verdade. A realidade aparece para ele sempre como um todo coeso e organizado e que existe no tempo – exatamente como o corpo humano. Aristóteles não apenas era médico de formação, mas pertencia a uma família de médicos, dez gerações de médicos. Consta que quando pequeno já estudava anatomia, com o pai. A visão constante do corpo humano no aspecto anatômico e fisiológico vai desenvolvendo nele muito profundamente esta distinção entre o vivo e o não vivo. No fundo, o corpo do ser vivente é para Aristóteles o supremo modelo da realidade. Este é um aspecto que parece não ter sido suficientemente ressaltado pelos intérpretes até hoje.

O que hoje chamamos de holismo foi inventado por Aristóteles. É a busca de uma visão da realidade que corresponda às características de um organismo total e vivente. O holismo se opõe ao mecanicismo, que vê a realidade como uma organização do tipo mecânico, ao dualismo, que divide o real em dois setores separados (a divisão, para o organismo, é a morte), ao transcendentalismo, que é um dualismo hierárquico, e a toda forma de redutivismo, que é a explicação da realidade com base no predomínio exclusivo de um só de seus elementos ou fatores. Não espanta que a rejeição da física aristotélica tenha produzido, no Renascimento, o advento do reino do mecanicismo, com Newton e Descartes. A característica da organização mecânica é a completa separação entre as partes, de maneira que, em princípio, qualquer uma delas pode ser trocada por uma outra similar. No organismo isto não é possível. No corpo humano algumas partes podem ser trocadas, mas outras não. Podemos supor um transplante de coração, mas como seria um transplante de cabeça? Resultaria não em curar uma pessoa, mas em transformá-la em outra. Uma vez feito o transplante, o indivíduo poderia com igual razão dizer: “Fiz a cirurgia e estou curado” e “Fiz a cirurgia e estou morto”. O tipo de sistema que chamamos orgânico tem uma espécie de coesão por afinidade ou familiaridade entre as partes.

A teoria das distinções e a da potência e do ato, princípios básicos do método.

O organismo não é totalmente separável em partes, embora suas partes sejam distinguíveis. A teoria das distinções, que é um legado importantíssimo de Aristóteles que será aprofundado pelos escolásticos, é um resultado direto do treinamento médico e da experiência biológica do mestre.

Estudando anatomia, aprende-se a distinguir rigorosamente todos os órgãos e partes do corpo, e a ver que, por um lado, eles são efetivamente distintos, com formas e funções diferentes que não são trocáveis (o cérebro não poderia fazer o trabalho do pulmão, e assim por diante),e, por outro lado, não são separáveis. Esta é a característica fundamental do que denominamos organismo: unidade na distinção.

A constatação deste traço do organismo vivente deixa um profundo impacto na mente de Aristóteles que, em todas as questões que tratar, mesmo fora do âmbito fisiológico ou biológico, procurará sempre este tipo de conexão distintiva entre as partes. Procurará distinguir as partes com a máxima clareza possível e captar o princípio de coesão que dá unidade ao fenômeno e que permite que ele exista. Daí também vai sair o conceito de evolução orgânica, pelo qual a forma de um ser já não é apenas o seu esquema estático, mas é a fórmula das transformações que ele sofrerá no tempo. Quando você nasce, seu corpo não tem só uma forma determinada, com um peso determinado, uma figura determinada, mas tem a fórmula de um crescimento, mediante o qual ele poderá absorver elementos de fora que serão integrados dentro de seu organismo e que, aumentando o seu tamanho, farão com que ele sofra transformações nas quais no entanto ele não perderá sua forma e sua identidade, mas ao contrário, a manifestará. Aristóteles chama isso de passagem da potência (virtualidade, potencialidade) ao ato (efetividade, atualidade, manifestação). Esta é uma das idéias mais profundas de toda a história humana e é de fato, se não a principal idéia do método em Aristóteles, uma das primeiras que lhe ocorrem, creio eu, por causa dos estudos de fisiologia. A evolução orgânica é para Aristóteles um princípio explicativo, mas não apenas uma regra do método. Ela é um fato real da natureza, não um preceito metodológico. Em Aristóteles, como não poderia deixar de ser, há distinção mas não separação entre o método e o conteúdo efetivo do conhecimento: assim, os fatos da biologia são eles mesmos expressões da totalidade, da evolução orgânica ou passagem da potência ao ato, da distinção-união entre matéria e forma, ao mesmo tempo que estes princípios são também regras do método que vai estudar esses mesmos fatos. Assim também as leis da lógica aristotélica não serão puras leis formais do pensamento, mas uma expressão das leis ontológicas que governam a realidade mesma, sem deixarem de ser também leis formais do pensamento.

O essencialismo, forma platônica do redutivismo

Uma das principais intuições de Aristóteles é esta da unidade vivente do real. Vida e unidade são conceitos básicos para a compreensão da filosofia de Aristóteles. Por causa deste traço organicista e sistêmico, que é ao mesmo tempo uma propensão do seu estilo intelectual e um traço da sua personalidade, ele revelará uma extrema ojeriza a tudo o que se chama abstratismo (conceber por pura lógica o conceito de alguma coisa, e em seguida tratar este conceito como se fosse ele mesmo uma coisa real). O abstratismo consiste em tomar meras distinções lógicas como se fossem separações reais. Por exemplo, de tudo aquilo que compõe um ser real, abstraímos, separamos pelo intelecto um determinado traço de fato distinguível. Olhando vocês aqui posso distinguir entre a sua forma e a sua cor – elas não são a mesma coisa. Posso compreender que uma pessoa que está aqui pode ir à praia amanhã e voltar com outra cor sem que isto tenha alterado a sua forma. Ou a pessoa pode emagrecer ou engordar sem perder a cor. Se estes dois aspectos têm histórias distintas, eles são distintos em si mesmos. Porém, posso tomar uma destas características e perguntar qual é mais importante, qual a mais básica entre as duas. Posso chegar à conclusão de que a cor é simplesmente um efeito da forma. Assim, peguei uma das qualidades e a transformei numa qualidade básica da qual a outra é apenas um fenômeno secundário. Aí tomei a forma e a cor como efetivamente separadas. É precisamente esta separação abstrativa que constituía a causa dos exageros da escola platônica. Sócrates já havia distinguido nos entes dois aspectos: seu conceito — ou essência — e a sua existência. Se fazemos um conceito de cachorro, este é aplicável a todos os cachorros da existência, mas o conceito permanece o mesmo, enquanto os cachorros nascem, crescem e morrem. E a escola platônica optou pela hipótese de que o aspecto conceitual das coisas – o aspecto que se referia à semelhança entre o indivíduo e os outros da mesma espécie – era o básico da realidade, e de que a diferença de indivíduo para indivíduo e os vários traços adquiridos no decorrer da existência eram apenas um véu de aparências. Resultado: o mundo da experiência, tal como aparece para nós, seria apenas uma tela que mostra as aparências de um processo que no fundo somente se refere aos conceitos das espécies. Se você pegar o conceito de cachorro, por exemplo, verá que ele já implica os limites daquilo que pode vir a acontecer a um cachorro. O conceito de cachorro não permite que o cachorro voe – portanto, o cachorro não vai voar. Mas não há nada que contradiga, no conceito de cachorro, que ele seja branco ou marrom. Portanto o conceito aparece como um quadro dentro do qual estão todas as possibilidades que o ser pode manifestar no decurso da existência.

O conceito se refere à essência, àquilo que os entes são, independentemente de existirem ou não. Cachorro é cachorro antes de existir, quando existe e depois que parou de existir. Um cachorro morto não se transforma em outra coisa. É um cachorro. Desta constatação, porém, a escola platônica conclui que o aspecto existencial é secundário e que o principal é o aspecto essencial que se expressa no conceito. Este tipo de separação que hierarquiza a realidade e tampa uma parte dela, sob o pretexto de que é a manifestação de uma outra esfera mais profunda, é o que desagrada a Aristóteles. Porque , como fisiologista, médico de uma família de médicos, está acostumado a observar o corpo dos seres viventes e a idéia de que a realidade possa ser constituída de dois estratos mais ou menos separados não lhe agrada de maneira alguma, porque ele nunca viu nada na esfera dos seres vivos que seja composto de dois pedaços. Tudo tem unidade, organicidade.

Uma das primeiras preocupações de Aristóteles é ver se consegue restaurar o sentido da ligação entre estas duas faixas da realidade que o platonismo havia separado. Ele percebe, e admite com os platônicos, que existem o aspecto existencial e o conceptual. Mas qual o nexo entre um e outro? Por exemplo, se sabemos qual é a essência da espécie “cachorro”, isto não nos explica porque existem cachorros. Compreendemos que se não existisse absolutamente nada no mundo, as essências continuariam as mesmas, porque seriam, como mais tarde diria Leibniz, esquemas de possibilidades, e estes esquemas permaneceriam logicamente distintos. Se não existissem cachorros nem camelos, ainda assim cada uma destas espécies corresponderia a um determinado esquema de possibilidades que lhe é próprio e não se confunde com outros de maneira alguma. Podemos aqui e agora inventar os conceitos de espécies que não existem mas que sejam logicamente distintas. Aristóteles percebe que a grande operação da escola platônica, que é a de subir da existência dos seres múltiplos até o conceito das suas espécies tinha resolvido o problema pela metade. Quando, porém, partindo da multiplicidade dos seres, eu apreendo por abstração a comunidade de traços que perfila estes seres em várias espécies distintas, só fiz um saber do tipo classificatório. Ora, saber classificar os entes é uma coisa, saber explica-los é outra muito diferente.

Aristóteles percebia – não sei se ele fez esta imagem , mas a mim me ocorre – que o platonismo é uma espécie de anatomia do mundo, que separava o mundo nos seus pedaços , mas faltava a fisiologia. O platonismo tinha distinguido os órgãos ou estratos exatamente como numa dissecação você vai separando tecidos. Platão, basicamente , tinha separado o mundo em três grandes estratos – mundo sensível, mundo das idéias e o terceiro estrato supremo dos princípios ou leis. Tudo isto – dizia Aristóteles – existe inegavelmente , mas entre ter classificado a hierarquia e saber como funciona existe a mesma distância que há entre anatomia e fisiologia. A ciência da anatomia desenvolveu-se muitíssimo cedo na história do mundo e a fisiologia muito mais tarde . Uma coisa é dividir algo em pedaços, outra saber como funciona. Quem quer que tenha tentado consertar um carro perceberá que isto é assim mesmo na esfera mecânica. Desmontar o carro e classificá-lo peça por peça é relativamente fácil. Mas remonta-lo e fazê-lo funcionar de novo é outra coisa.

O platonismo era uma anatomia abstrata do mundo. Aristóteles, que tinha uma formação pessoal totalmente diferente da dos outros membros da Academia platônica, os quais eram todos, por suas origens, matemáticos e geômetras, enquanto ele era médico e fisiologista, percebe que o platonismo tinha seguido um modo de pensar típico do geômetra ou do matemático , que é o de formar os conceitos separados e encadeá-los numa ordem lógica. E percebeu claramente que isto não basta, que além de expor a hierarquia lógica do mundo, é preciso explicar como as coisas vêm à existência, como o mundo funciona efetivamente.

Desta visão cosmológica do platonismo decorre uma gnoseologia ou teoria do conhecimento. A gnoseologia platônica , vendo que existem dois estratos separados, um, o da experiência, outro, o estrato essencial ou conceptual, e não conseguindo estabelecer nenhuma passagem entre eles, só podia explicar o conhecimento pelo famoso expediente da recordação ou rememoração (anamnesis). A pergunta é a seguinte: Se estes estratos estão rigidamente separados, como é possível o conhecimento? Se vivemos num mundo de aparências ilusórias, que aparecem e desaparecem no tempo , mas por outro lado a nossa mente é capaz de, partindo das aparências ilusórias, chegar até o conceito, que é a imagem estável e permanente da verdadeira realidade, parece que esta nossa habilidade é contraditória com o próprio conteúdo da teoria. Se estamos vivendo no mundo das aparências, como a partir delas chegamos às essências? A aparência só nos revela a aparência. Se captamos algo por trás dela não pode ser pelos mesmos meios através dos quais nós captamos a aparência. Portanto, o fato mesmo de que nós consigamos fazer conceitos das coisas é um mistério inexplicável desde o ponto de vista platônico. Platão propõe então a teoria da recordação, a anamnese. Diz ele que antes de nascermos, nossas almas já existem no mundo eterno das idéias, onde vemos os conceitos puros ou as essências de todas as coisas. Daí, quando entramos no fio do tempo, passando a existir neste mundo de aparências , esquecemos uma boa parte mas um pouquinho sobra. Então, um acaso feliz ou um interrogatório bem conduzido, como numa espécie de psicanálise, pode nos fazer recordar este conhecimento que jaz no fundo de nós. Ora, se é assim e já está lá desde que nascemos, a experiência real não é muito útil. Só serve para suscitar em nós o desejo de conhecer os conceitos puros. Por isto, Platão é chamado um racionalista (o fundamental do conhecimento sendo obtido pela razão e não pela experiência). Em Platão, a percepção real, que nos entrega somente aparências, só serve para despertar o apetite do conhecimento, mas o fundamental deste é obtido por um modo puramente intelectual ou racional, que é o interrogatório ou a discussão dialética que vai fazendo você recordar as idéias centrais. Platão expõe por um lado esta cosmologia onde o mundo é feito de estratos totalmente separados e por outro, a gnoseologia do tipo racionalista, onde a experiência não desempenha nenhum papel.

Perante a gnoseologia de Platão, Aristóteles fará a mesma objeção que fez à cosmologia. Dirá que não é possível que estas duas formas de conhecimento – a que obtenho pelos sentidos e a que obtenho pela razão – estejam completamente separadas. Porque vejo que o indivíduo que apreende os dados dos sentidos é o mesmo que intelige pela razão os conceitos puros. Vejo claramente que existe uma caminhada, uma ascensão contínua e gradativa, desde a experiência até o conceito, não um salto absoluto como no caso platônico. Tanto que vai ser difícil encontrar (esta é uma observação fundamental de Aristóteles) algum dado dos sentidos que esteja completamente livre de interferências da razão. Sempre existe um princípio de organização racional até na percepção sensível. Por outro lado, vai ser muito difícil achar algum conceito racional totalmente puro, que não deva nada à experiência. Se nunca tivéssemos visto um cavalo, de onde iríamos extrair o conceito de cavalo? Aristóteles vê que entre o conhecimento por experiência e o conhecimento pela razão, entre o conhecimento do mundo das aparências e o do mundo das essências, não existe um salto, nem mesmo um salto retroativo como pretendia o platonismo, mas existe uma ascensão progressiva e muito problemática. Às vezes conseguimos obter os conceitos puros, às vezes não. Se fosse tão natural saltarmos da experiência para os conceitos, seria muitíssimo fácil apreender em quaisquer fenômenos as devidas separações e classificações de gêneros e espécies e freqüentemente isto é muito difícil. Aristóteles sabe disso porque ele tentava classificar os animais, enquanto na escola platônica só se classificavam idéias puras ou idéias geométricas. Aristóteles punha a mão na massa, e via que classificar fenômenos reais (por exemplo, as famílias de espécies animais) não era o mesmo que classificar conceitos puros ou geométricos. Hoje sabemos que os elefantes são parentes dos cavalos, que formam uma mesma família; logicamente pertencem à mesma espécie. Mas como por métodos platônicos ou dialéticos se chegaria a uma coisa dessas? Portanto, as distinções de gêneros, espécies e as classificações dos seres não podem ser feitas exclusivamente por método lógico. Têm de ter base na experiência e na separação e classificação das próprias aparências, antes de partir para a classificação dos conceitos. Tudo isto, que é uma descoberta de Aristóteles, se torna a base do método científico para sempre.

Muitas coisas que foram matéria de discussão filosófica 2400 anos atrás, hoje são matéria de pesquisa experimental. A inseparabilidade do sensível e do racional, afirmada por Aristóteles, foi inteiramente demonstrada por Jean Piaget na esfera experimental. Piaget demonstra por meios experimentais que não existe sensação pura, na qual não entre um elemento organizativo prévio. A sensação totalmente informe não seria notada por nós. A sensação pura não poderia ser distinguida de outra sensação, não poderia ser sentida; se ela é distinguida, é porquê já existe um princípio de classificação e organização imanente. Mas a organização não é sensitiva, é racional. A idéia de sensação pura hoje em dia é considerada uma quimera e a idéia da pura razão igualmente. Podemos conceber estas coisas, mas apenas como possibilidades lógicas, não como coisas reais.

O organismo humano é um organismo, portanto organizado. Já recebe as sensações ordenadas segundo a forma do corpo e isto é um princípio da razão, já que, diz Aristóteles, a alma é a forma do corpo e a alma do homem é intrinsecamente racional. Você tem sensações visuais e auditivas distintas, não vê os sons nem ouve as cores. Este é um princípio de distinção inerente à própria forma do corpo. Toda sensação já é classificatória. Sentir uma coisa já é distingui-la das outras. Portanto, o aspecto sensível e o racional não são separáveis realmente, são apenas distinguíveis.

A chave da teoria do conhecimento aristotélica é a seguinte: distinto é uma coisa e separado é outra. A audição é distinta da visão, mas não posso ouvir às segundas quartas e sábados e ver às terças, quintas e sextas. Elas não são separáveis realmente. Do mesmo modo, o aspecto racional, organizativo, não é separável da experiência sensível que nos dá a matéria do conhecimento. Isto significa que a distinção entre o experimental e o racional é uma distinção mental, apenas uma distinção e não uma separação, — uma crítica fundamental à gnoseologia platônica, que trata como separação o que é apenas distinção. São dois modos de ver. Como nome e sobrenome. Você tanto pode ser encarado como indivíduo, como pode sê-lo como membro da família. Dois aspectos distintos, mas inseparáveis. Ou a distinção entre camelo e fisiologia do camelo. Um não é o outro – mas existe algum camelo sem fisiologia do camelo, ou fisiologia de camelo sem camelo?

A distinção entre o racional e o experimental é uma distinção de nomes — ou de pontos-de-vista — e não de coisas reais. A distinção entre distinção e separação é outra conquista imorredoura de Aristóteles. Muitos debates hoje entre o que é holista ou cientificista seriam resolvidos na hora mediante a simples aplicação desta distinção.

Outra questão: entre conhecimento sensível e conhecimento racional, qual a ordem dos fatores, qual é primeiro e qual é segundo? Aristóteles responderá que vamos dos sentidos para o pensamento. Porém este sentir é puro, sem qualquer contaminação do pensamento? A resposta é não. Para que o sentir fizesse pensar seria necessário que houvesse um elemento de pensamento dentro dele. Senão, teríamos o milagre de uma coisa que não existe mais produzindo outra que não existe ainda. Para que a experiência sensível possa gerar um raciocínio, é preciso que haja dentro dela uma semente de raciocínio. É mais ou menos o que vai dizer 2400 anos depois o Piaget. É claro que o sentir e o pensar representam etapas do conhecimento, e não formas de conhecimento radicalmente distintas. Se você tem de um lado o sentir, do outro o pensar – o que diz Aristóteles? Não é uma distinção de lados, mas de etapas. É como a distinção que existe entre uma criança e um adulto. O adulto que você será, a forma do adulto, já não está na criança? E este adulto que está aí, não é aquela mesma criança? É uma distinção mais nominal entre etapas que uma distinção entre seres separados ou aspectos separados e simultâneos.

É este senso da organicidade que é a coisa central para compreender o pensamento de Aristóteles, e talvez a maior contribuição dele. Isto corresponde, de fato, ao modo de sentir quotidiano, do senso comum. O sujeito são pensa de maneira orgânica. Todo mundo pensa organicamente em todas as questões reais da vida.

Platão foi chamado “o divino Platão”, uma espécie de profeta ou anjo, alguém que tem uma visão do outro mundo. A coisa mais característica de Aristóteles é sua profunda e total humanidade – pensar tudo na escala do ser humano realmente existente. Dessa diferença decorre uma diferença moral profunda. A moral platônica é moral de perfeições celestes. A moral aristotélica é uma tentativa de melhorar o homem aos poucos, partindo de suas limitações e aceitando-as, em vez de condená-las em nome de um padrão moral abstrato. Não há fundamental contradição entre as duas morais, no entanto. Poderíamos comparar as relações entre platonismo e aristotelismo à trindade cristã: existe um Deus Pai incognoscível, inatingível, mas é preciso existir o Deus que desce até você e vem viver o destino humano na sua plenitude. Entre os dois, você tem o Espírito Santo que é a relação de amor. O eterno e o temporal, o divino e o humano estão unidos por uma aliança indissolúvel. Jogar um destes aspectos contra o outro é ir contra o ser humano. Não podemos jogar platonismo contra aristotelismo, que na esfera filosófica correspondem a estes dois aspectos. Ir por um destes caminhos ou pelo outro é quase uma questão de temperamento, mas um deles não nega o outro, na medida em que o prolonga e o realiza.

Todas as críticas de Aristóteles ao platonismo só visam a trazê-lo do céu para a Terra, para realizá-lo. Aristóteles poderia dizer de Platão o mesmo que Cristo disse do Velho Testamento: “Não vim revogá-lo, vim realizá-lo.” A ordem de realização de uma coisa é o inverso da sua ordem de concepção – outra descoberta aristotélica. Para conceber o plano de uma casa, você concebe a casa no todo e depois no detalhe. E para construir? Pedaço por pedaço até chegar ao todo. A ordem do conhecer e a ordem do ser são inversas e complementares. Portanto, a realização do platonismo é a inversão das suas prioridades teóricas.

Aula III – Parte I

 

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