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Direita e esquerda, origem e fim

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 1o de novembro de 2005

Proponho ao leitor, hoje, uma breve investigação de história das idéias. Ela pode ser um tanto trabalhosa no começo, mas renderá bons frutos para a compreensão de muitos fatos da vida presente.

A inconstância e a variedade dos discursos ideológicos da esquerda e da direita, para não mencionar suas freqüentes inversões e enxertos mútuos, tornam tão difícil apreender conceptualmente a diferença entre essas duas correntes políticas, que muitos estudiosos desistiram de fazê-lo e optaram por tomá-las como meros rótulos convencionais ou publicitários, sem qualquer conteúdo preciso.

Outros, vendo que a zona de indistinção entre elas se amplia com o tempo, concluíram que elas faziam sentido na origem, mas se tornaram progressivamente inutilizáveis como conceitos descritivos.

Apesar dessas objeções razoáveis, as denominações de esquerda e direita ainda servem a grupos políticos atuantes, que, não raro imantando-as com uma carga emocional poderosa, as utilizam não só como símbolos de auto-identificação mas, inversamente, como indicadores esquemáticos pelos quais desenham em imaginação a figura do seu adversário ideal e a projetam, historicamente, sobre este ou aquele grupo social.

Quando surge uma situação paradoxal desse tipo, isto é, quando conceitos demasiado fluidos ou mesmo vazios de conteúdo têm não obstante uma presença real como forças historicamente atuantes, é porque suas várias e conflitantes definições verbais são apenas tentativas parciais e falhadas de expressar um dado de realidade, uma verdade de experiência, cuja unidade de significado, obscuramente pressentida, permanece abaixo do limiar de consciência dos personagens envolvidos e só pode ser desencavada mediante a análise direta da experiência enquanto tal, isto é, tomada independentemente de suas formulações verbais historicamente registradas.

Dito de outro modo: a distinção de direita e esquerda existe objetivamente e é estável o bastante para ser objeto de um conceito científico, mas ela não consiste em nada do que a direita ou a esquerda dizem de si mesmas ou uma da outra. Consiste numa diferença entre duas percepções da realidade, diferença que permanece constante ao longo de todas as variações de significado dos termos respectivos e que, uma vez apreendida, permite elucidar a unidade por baixo dessas variações e explicar como elas se tornaram historicamente possíveis.

Anos atrás comecei a trabalhar numa solução para esse problema e de vez em quando volto a ela desde ângulos diversos, sempre notando que permanece válida.

A solução, em versão dramaticamente resumida, é a seguinte: direita e esquerda, muito antes de serem diferenças “ideológicas” ou de programa político, são duas maneiras diferentes de vivenciar o tempo histórico. Essas duas maneiras estão ambas arraigadas no mito fundador da nossa civilização, a narrativa bíblica, que vai de uma “origem” a um “fim”, do Gênesis ao Apocalipse. Note o leitor que a origem se localiza num passado tão remoto, anterior mesmo à contagem do tempo humano, que nem pode ser concebida historicamente. Começa num “pré-tempo”, ou “não-tempo”. Começa na eternidade. O final, por sua vez, também não pode ser contado como capítulo da seqüência temporal, pois é a cessação e a superação do transcurso histórico, o “fim dos tempos”, quando a sucessão dos momentos vividos se reabsorve na simultaneidade do eterno. A totalidade dos tempos, pois, transcorre “dentro” da eternidade, exatamente como qualquer quantidade, por imensa que seja, é um subconjunto do infinito. O Apóstolo Paulo expressa isso de maneira exemplar, dizendo: “ N’Ele [em Deus, no infinito, no eterno] vivemos, nos movemos e somos [agimos e existimos historicamente, isto é, no tempo].” Estar emoldurado pela eternidade é um elemento essencial da própria estrutura do tempo. Sem estar balizada pela simultaneidade, a sucessão seria impossível: a própria idéia de tempo se esfarelaria numa poeira de instantes inconexos. Não é, pois, de espantar que a consciência histórica se forme desde dentro do legado judaico-cristão como um de seus frutos mais típicos. Mas, quando entre os séculos XVIII e XIX essa consciência se consolida como domínio independente e floresce numa variedade de manifestações, entre as quais a “ciência histórica”, a “filosofia da história” e a voga das idéias de “progresso” e “evolução”, nesse mesmo instante a moldura eterna desaparece e a dimensão temporal passa a ocupar todo o campo de visão socialmente dominante.

Uma das primeiras conseqüências dessa restrição do horizonte é que as idéias de “origem” e “fim”, já não remetendo a uma dimensão supratemporal, passam a ser concebidas como meros capítulos “dentro” do tempo – uma incongruência quase cômica que infectará com o germe da irracionalidade muitas conquistas de uma ciência que se anunciava promissora. Entre as inúmeras manifestações da teratologia intelectual que desde então sugam as atenções de pessoas bem intencionadas destacam-se, por exemplo, as tentativas de datar o começo dos tempos a partir de uma suposta origem da matéria, como se as leis que determinam a formação da matéria não tivessem de preexistir-lhe eternamente; ou os esforços patéticos para abranger o conjunto do transcurso histórico num sistema de “leis” que presumidamente o levam a um determinado estágio final, como se o estágio final não fosse apenas mais um acontecimento de uma seqüência destinada a prosseguir sem término previsível.

Se nas esferas superiores do pensamento florescem então por toda parte concepções pueris que empolgam as atenções por umas décadas para depois ser atiradas à lata de lixo do esquecimento, o distúrbio geral da percepção do tempo não poderia deixar de se manifestar também, até com nitidez aumentada, em domínios mais grosseiros da atividade mental humana, como a política. E é aí que as balizas eternas do tempo, reduzidas a capítulos especiais da seqüência temporal, passam a ser vivenciadas como dois símbolos legitimadores da autoridade política.

De um lado, a mera antigüidade temporal do poder existente (que na realidade podia nem ser tão antigo assim, apenas mais velho que seus inimigos) parecia investi-lo de uma aura celeste. O famoso “direito divino dos reis”, que de fato não era uma instituição muito antiga, mas o resultado mais ou menos recente do corte do cordão umbilical que atava o poder real à autoridade da Igreja, não é senão a tradução em linguagem jurídico-teológica de uma vivência de tempo que identificava a antigüidade relativa com a origem absoluta.

De outro lado, a perspectiva do Juízo Final, com o prêmio dos justos e o castigo dos maus quando da reabsorção do tempo na eternidade, era espremida para dentro da imagem futura de um reino terrestre de justiça e paz, de um regime político perfeito, que, paradoxalmente, seria ao mesmo tempo o fim da história e a continuação da história.

Tal é a origem respectiva dos “reacionários” ou “conservadores” e dos “revolucionários” ou “progressistas”. A direita e a esquerda modernas surgem de adaptações degradantes de símbolos mitológicos, roubados à eternidade, comprimidos na dimensão temporal e transfigurados em deuses de ocasião.

É evidente que, na estrutura do tempo real, não existe nem antigüidade sacra nem apocalipse terrestre – nem direito divino dos reis nem carisma do profeta revolucionário. São, um e outro, menos que mitos (pois uso o termo “mito” no sentido nobre de narrativa arquetípica, e não como oposto de “verdade”). O rei não é o poder de Deus e o revolucionário não é um profeta. São apenas dois sujeitos que se imaginam importantes, o primeiro porque toma a antiguidade da sua família como se fosse a origem dos tempos, o segundo porque atribui a seus projetos de governo a grandeza mítica do Juízo Final.

Direita e esquerda passaram por inúmeras variações e combinações ao longo dos últimos séculos. Mas, onde quer que se perfilem com força suficiente para hostilizar-se mutuamente no palco da política, essa distinção permanece no fundo dos seus discursos: direita é o que se legitima em nome da antigüidade, da experiência consolidada, do conhecimento adquirido, da segurança e da prudência, ainda quando, na prática, esqueça a experiência, despreze o conhecimento e, cometendo toda sorte de imprudências, ponha em risco a segurança geral; esquerda é o que se arroga no presente a autoridade e o prestígio de um belo mundo futuro de justiça, paz e liberdade, mesmo quando, na prática, espalhe a maldade e a injustiça em doses maiores do que tudo o que se acumulou no passado.

O fato de que tantas vezes os conteúdos dos discursos de direita e esquerda se mesclem e se confundam explica-se facilmente pela precariedade mesma de seus símbolos iniciais de referência – a antigüidade e o futuro –, os quais, não podendo dar conta da realidade concreta, exigem dialeticamente ser complementados pelos seus respectivos contrários, fazendo brotar, dentro de cada uma das duas regiões mentais em luta para distinguir-se e sobrepujar-se mutuamente, uma área que já não é antagônica à sua adversária, mas é a sua imitação. É assim que, por exemplo, a permanência conservadora pode ser projetada no futuro, numa espécie de utopia do existente, como as aventuras coloniais com que os reis prometiam a expansão da fé. E é assim que o hipotético mundo futuro do revolucionário busca revestir-se do prestígio das origens, apresentando-se como restauração de uma perdida idade de ouro, como na doutrina do “bom selvagem” de Rousseau ou no “comunismo primitivo” de Karl Marx. É inevitável, pois, que os conteúdos dos discursos respectivos por vezes se confundam, mas só retoricamente, pois, na esfera da ação prática, tanto o reacionário quanto o revolucionário se apegam firmemente às suas respectivas orientações no tempo.

Por meio dessa distinção é possível captar a unidade entre diferentes tipos históricos de direitismo e esquerdismo cuja variedade, de outra maneira, nos desorientaria. Um adepto do capitalismo liberal clássico, portanto, podia ser um esquerdista no século XVIII, porque apostava numa utopia de liberdade econômica da qual não tinha experiência concreta num universo de mercantilismo e estatismo monárquico. Mas é um conservador no século XXI porque fala em nome da experiência adquirida de dois séculos de capitalismo moderno e já não pretende chegar a um paraíso libertário e sim apenas conservar, prudentemente intactos, os meios de ação comprovadamente capazes de fomentar a prosperidade geral. Pode, no entanto, tornar-se um revolucionário no instante seguinte, quando aposta que a expansão geral da economia de mercado produzirá a utopia global de um mundo sem violência. Em cada etapa dessas transformações, o coeficiente de esquerdismo e direitismo de sua posição pode ser medido com precisão razoável.

É inevitável, também, que, pelo menos em certos momentos do processo, esquerdistas e direitistas se equivoquem profundamente no julgamento de si próprios ou de seus adversários. Da parte dos direitistas, tanto hoje como ao longo de todo o século XX, a grande ilusão é a da equivalência. Como estão acostumados à idéia de que direita e esquerda existem como dados mais ou menos estáveis da ordem democrática, acreditam que essa ordem pode ser preservada intacta e que para isso é possível “educar” os esquerdistas para que se afeiçoem às regras do jogo e não tentem mais destruir a ordem vigente. Pelo lado esquerdista, porém, essa acomodação é impossível. No mundo dos direitistas pode haver direitistas e esquerdistas, mas, no mundo dos esquerdistas, só esquerdistas têm o direito de existir: o advento do reino esquerdista consiste, essencialmente, na eliminação de todos os direitistas, na erradicação completa da autoridade do antigo. Foi por essas razões que os EUA retiraram pacificamente suas tropas dos países europeus ocupados depois da II Guerra Mundial, acreditando que os russos iam fazer o mesmo, quando os russos, ao contrário, tinham de ficar lá de qualquer modo, porque, na perspectiva da revolução, o fim de uma guerra era apenas o começo de outra e de outra e de outra, até à extinção final do capitalismo. A sucessão quase inacreditável de fracassos estratégicos da direita no mundo deve-se, no fundo, a uma limitação estrutural do direitismo: eliminar a esquerda completamente seria uma utopia, mas a direita não pode tornar-se utópica sem deixar de ser o que é e transformar-se ela própria em revolucionária, absorvendo valores e símbolos da esquerda ao ponto de destruir a própria ordem estabelecida que desejava preservar. O fascismo, como demonstrou Erik von Kuenhelt-Leddin no clássico “Leftism: From De Sade and Marx to Hitler and Marcuse” (1974), nasce da esquerda e arrebata a direita na ilusão suicida da revolução contra-revolucionária. Ser direitista é oscilar perpetuamente entre uma tolerância debilitante e acessos periódicos de ódio vingativo descontrolado e quase sempre vão. Mas a direita no Brasil está em decomposição há décadas e não tem graça nenhuma falar dela.

A esquerda, por sua vez, como se apóia integralmente na imagem móvel de um futuro hipotético, não pode julgar-se a si própria pelos padrões atualmente existentes, condenados “a priori” como resíduos de um passado abominável. Seu único compromisso é com o futuro, mas quem inventa esse futuro e o modifica conforme as necessidades estratégicas e táticas do presente é ela própria. Por fatalidade constitutiva do seu símbolo fundador, ela é sempre o legislador que, não tendo autoridade acima de si, legisla em causa própria, faz o que bem entende e, a seus olhos, tem razão em todas as circunstâncias, embriagando-se na contemplação vaidosa de uma imagem de pureza e santidade infinitas, mesmo quando chafurda num lamaçal de crimes e iniqüidades incomparavelmente superiores a todos os males passados que prometia eliminar. Ser esquerdista é viver num estado de desorientação moral profunda, estrutural e incurável. É mergulhar as mãos em sangue e fezes jurando que as banha nas águas lustrais de uma redenção divina.

Por isso não se deve estranhar que o partido mais ladrão, mais criminoso, mais perverso de toda a nossa História, o partido amigo de narcoguerrilheiros e ditadores genocidas, o partido que aplaudia a liquidação de dezenas de milhares de cubanos desarmados enquanto condenava com paroxismos de indignação a de trezentos terroristas brasileiros, o partido que condena os atentados a bomba quando acontecem na Espanha e aplaude os realizados no Brasil, o partido que instituiu o suborno e a propina como sistema de governo, seja também o partido que mais bate no peito alegando méritos e glórias excelsos.

Ser esquerdista é ser precisamente isso.

***

Direita e esquerda são politizações de símbolos mitológicos cujo conteúdo originário se tornou inalcançável na experiência comum. Elas existirão enquanto permanecermos no ciclo moderno, cujo destino essencial, como bem viu Napoleão Bonaparte, é politizar tudo e ignorar o que esteja acima da política. Não existirão para sempre. Mas, quando cessarem de existir, a política terá perdido pelo menos boa parte do espaço que usurpou de outras dimensões da existência.

Mário Augusto Jacobskind: mentiroso e burro

Olavo de Carvalho

Mídia Sem Máscara, 1o de novembro de 2005

Alguém me alerta para uma estupidez publicada a meu respeito no site “Portal Popular” (http://www.portalpopular.org .br/opiniao2005/varios/varios -206.htm). Vou lá e, no meio de louvações ao Che e à narcoguerrilha colombiana, encontro a patifaria: fazendo-se de ofendidíssimo, e talvez encorajado pelos esgares patéticos da “linha dura” presidencial, o sr. Mário Augusto Jacobskind anuncia que está me processando na 47ª. Vara Cível do Rio de Janeiro por havê-lo chamado de “agente secreto à serviço de Cuba” ( sic , e com crase, porca miséria). Aproveita ainda a ocasião para informar à cândida platéia:

(1) que não sou jornalista profissional, só usei indevidamente esse título até 2003, quando fui desmascarado e desisti do embuste;

(2) que muito menos sou correspondente de algum jornal brasileiro nos EUA, devendo portanto minha presença nesse país ser explicada por algum outro motivo, decerto bastante tenebroso;

(3) que deixei de usar o “título de escritor” ( sic ) por ser este um privilégio dos membros do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro que eu vinha usurpando até ser comprovado que eu não pertencia a essa entidade;

(4) que participei de um debate filosófico na USP, com argumentos inconsistentes, sendo por isso “reprovado” ( sic ) pelos professores da instituição;

(5) que escrevi ser demasiado pequeno o número de vítimas da ditadura em comparação com o tamanho da população brasileira (ou seja, que no meu entender o regime militar até que poderia ter matado mais uma meia dúzia sem que isso fizesse grande diferença).

Bem, o sr. Jacobskind provavelmente não é mesmo “agente secreto” de Cuba, nem afirmei que o fosse, muito menos que tivesse capacidade para sê-lo (minha hedionda mendacidade tem limites). Afirmei, isto sim, que trabalhou para o governo de Cuba como propagandista do regime e que continua a fazê-lo até hoje, de maneira tão constante e sistemática que deve ser classificado não como um jornalista comum e sim como um “agente de influência”, o que, para quem sabe do que se trata, não é a mesma coisa que “agente secreto”, quando mais não seja porque esta última função é necessariamente profissional e aquela pode também ser exercida, ad hoc , por um militante, simpatizante ou companheiro de viagem, com ou sem remuneração. Não sei exatamente em qual dessas categorias se encontra o sr. Jacobskind, mas não há dúvida de que ele é um agente de influência não só a serviço de Cuba como do movimento comunista latino-americano em geral. Se dois anos como editor da revista oficial cubana Prismas já não fossem comprovação suficiente, bastaria, para tirar a dúvida, saber que o referido trabalha ainda hoje para a Rádio Centenário, do Movimiento 26 de Marzo, braço político da organização terrorista Movimiento de Liberación Nacional (Tupamaros). É provável que o sr. Jacobskind só tenha dito que o chamei de agente secreto por ser isso o que, em criança, ele sonhava tornar-se quando crescesse. Infelizmente, ele não cresceu, de modo que hoje só pode realizar seu desejo por meio de projeção inversa, acusando os outros de chamá-lo daquilo que ele queria ser.

Acrescento, agora, os seguintes detalhes:

(1) Sou jornalista profissional com quase quatro décadas de exercício, registrado em 16 de setembro de 1970 a fls. 91 do Livro 25 do Serviço de Registro Profissional do Ministério do Trabalho, sócio número 3786 do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, número 8860 da Federação Nacional dos Jornalistas e número BR7699 na Faderação Internacional dos Jornalistas (Bruxelas). Quem quer que algum dia tenha negado minha condição profissional teve esses documentos esfregados no seu enxerido nariz e nunca mais se meteu a besta comigo.

(2) Estou nos EUA como correspondente do Diário do Comércio , de São Paulo, segundo contrato assinado em 1º de maio de 2005 com o diretor de redação, Moisés Rabinovici, e portador de Visto de Imprensa concedido pelo governo americano a jornalistas profissionais estrangeiros. Qualquer dúvida pode ser tirada mediante simples telefonema à redação do jornal, mas o sr. Jacobskind preferiu contornar esse extenuante trabalho por meio de uma consulta à sua própria imaginação, que lhe pareceu mais confiável.

(3) Como se pode ver em inúmeros créditos de meus artigos e trabalhos acadêmicos, nunca parei de declarar que sou escritor, pelo simples fato de que o sou realmente e de que no Brasil ainda não chegamos àquele patamar sublime de evolução social do regime a que o sr. Jacobskind serviu e serve, no qual os escritores são forçados a deixar de sê-lo por falta de uma carteirinha (v. Guillermo Cabrera Infante, “Mea Cuba”). O Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, diga-se a bem da verdade, jamais me pressionou nesse sentido, embora solicitado a isso, em vão, anos atrás, por um amiguinho do sr. Jacobskind, agora seu colega na diretoria da ABI.

(4) Na USP só tomei parte, em pessoa, de um único debate, com um tal prof. Café, o qual, como é público e notório, saiu dali torrado e moído. Nenhum outro professor da instituição deu um pio a respeito, muito menos para reclamar de precário funcionamento intelectual da torrefação (v. http://www.olavodecarvalho.org /textos/debate_usp_1.htm ). Quanto a outras discussões que eu possa ter tido com professores de lá (ou de qualquer outra universidade brasileira) através da imprensa, invariavelmente eles calaram seus respectivos bicos logo após minhas respostas, sendo eu sempre o último a falar, o que já basta para mostrar quem reprovou quem. Esses episódios estão abundantemente documentados no meu livro “O Imbecil Coletivo” e no meu site www.olavodecarvalho.org , já tendo entrado para o rol dos fatos notórios nos quais não é preciso insistir.

(5) Nunca escrevi que os trezentos esquerdistas mortos da ditadura brasileira eram um número minguado na comparação direta com a população do país, mas sim, guardadas as proporções demográficas entre Brasil e Cuba, na comparação com os dezessete mil fuzilados do regime ao qual o sr. Jacobskind empresta, dá, vende ou aluga ( chi lo sà? ) os seus talentos de usuário da língua pátria, especialmente da crase (v. http://www.olavodecarvalho.org /semana/1964.htm ). Quem, não podendo contestar essa proporção matemática, tentou falsificá-la para dar ares de maldade intolerável a uma verdade óbvia, foi o supracitado colega do sr. Jacobskind, um covardão de farda que, devidamente denunciado como farsante chinfrim, consta como tal há seis anos em aviso publicado no meu site e jamais me desmentiu (cf. http://www.olavodecarvalho.org /textos/proenca.htm).

Recomendo, pois, ao sr. Jacobskind, que, ao acusar alguém de dizer uma mentira contra a sua pessoa, evite publicar ao mesmo tempo cinco contra o acusado. Uma ou duas, com sorte, ainda poderiam passar despercebidas. Com cinco de uma vez, o queixoso tira a máscara de vítima e põe à mostra, acima de qualquer possibilidade de dúvida razoável, sua condição de litigante de má-fé. Além das orelhas de burro, naturalmente.

Licenças poéticas

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 30 de outubro de 2005

Desde o advento da era Lula, superamos a ditadura da língua escrita e instauramos a democracia da oralidade. A grafia das palavras conforme o ouvido de cada qual tornou-se um direito constitucional assegurado a todos os brasileiros, as regras da concordância e da regência passaram a ser determinadas pelo automatismo vocal mais acessível, e a própria coerência racional do discurso é agora medida em decibéis.

Isso não quer dizer, no entanto, que tenhamos abandonado a literatura escrita. Poucos países podem competir com o Brasil na produção de letras de raps, novelas de TV, crônicas digestivas, discursos parlamentares, slogans eleitorais inventivos e manifestos de intelectuais. Sobretudo manifestos de intelectuais, um gênero particularmente apropriado à economia socializada porque a maioria de seus praticantes não precisa escrevê-los e aliás nem lê-los, bastando assiná-los em confiança. A importância desses documentos na cultura brasileira de hoje é tal que o sujeito é reconhecido como intelectual precisamente na medida em que os assine com a devida presteza quando convocado a isso por uma causa nobre como a vitória de Hugo Chavez em referendo controlado por ele mesmo, o apoio a Fidel Castro quando ele manda três jornalistas para o paredón e mais duas dúzias para a cadeia, a libertação do narcoguerrilheiro Olivério Medina ou a sobrevivência política do sr. José Dirceu.

Em defesa deste último, ameaçado de cassação sob o argumento reacionaríssimo de que não poderia ignorar praticamente tudo o que se fazia à sua volta, alguns dos mais assíduos praticantes desse gênero literário desconhecido de Dante, de Shakespeare e de Goethe subscreveram recentemente uma peça de elevado conteúdo moral, exigindo aquelas provas materiais que no caso de Fernando Collor eles mesmos declararam dispensáveis e rejeitando a tese da legitimidade da “punição política” sem prova jurídica do crime, que eles mesmos subscreveram contra o ex-presidente e se abstiveram de rever quando a Justiça declarou que não existia mesmo prova nenhuma. A ausência de provas – assegura o manifesto no seu momento culminante — levou os denunciantes a um eufemismo, apelidando de julgamento político um processo que fere garantias constitucionais e ameaça transformar as instituições parlamentares em tribunal de exceção.” A única objeção que se pode fazer a esse argumento é que parece plagiado dos discursos de Roberto Jefferson em favor de Fernando Collor.

A eventual cassação do sr. Dirceu independentemente de sentença judicial prévia é ali declarada uma aberração sem limites, ao passo que a do sr. Jefferson em idênticas condições é por sua vez admitida ela própria como prova do crime e condenação transitada em julgado.

Não se pense porém que haja nisso alguma incongruência. Esses argumentos são integralmente fiéis aos princípios da lógica petista, aplicados, na mesma semana, contra o deputado gaúcho Onyx Lorenzoni (PFL). Este sofre processo de cassação, acusado de “falta de decoro parlamentar” por divulgar documentos secretos da CPMI dos Correios que provariam, segundo ele diz, um empréstimo ilegal do Partido dos Trabalhadores ao sr. José Dirceu. Lorenzoni desconfiou da coisa porque a quantia, R$14 mil, constava da declaração de rendimentos do partido, mas não da declaração pessoal de José Dirceu. O PT alega que não foi empréstimo, mas reembolso de adiantamento. Embora a única prova disso seja a palavra dos petistas, e embora adiantamento e reembolso também não constem da declaração do sr. José Dirceu, a alegação de inocência deste último é admitida imediatamente como prova dessa inocência e, por extensão, do crime de calúnia cometido pelo deputado Lorenzoni. Este crime, portanto, ao contrário daqueles atribuídos ao sr. José Dirceu, não precisa ser comprovado judicialmente para legitimar uma cassação de mandato.

O sr. José Dirceu, por sua vez, quando aparecia na CPI de 1993 com documentos de origem misteriosa e jamais comprovada (incluindo quebras de sigilo telefônico sem autorização judicial), não cometia nenhuma falta de decoro. Nem o fazia quando acusava sem provas um engenheiro da Odebrecht que nada sabia a respeito do crime ali investigado, nem quando lançava suspeitas temíveis sobre o então senador Roberto Campos baseado tão somente na casualidade da sua homonímia com um cidadão aliás também inocente, nem muito menos quando, para provar a presença no Parlamento de uma máquina de corrupção com as dimensões de “um Estado dentro do Estado”, apontava como sua peça-chave um determinado funcionário público que depois se verificou jamais ter existido.

Os senhores, por favor, não julguem mal os signatários do manifesto e os acusadores de Onyx Lorenzoni por essas aparentes incongruências. Se não existisse licença poética, nenhuma criação literária seria possível. Refreiem suas exigências lógicas direitistas e admitam: Tudo pela cultura.

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