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Na base da adivinhação

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 20 de outubro de 2005

Quando as ONGs subiram ao primeiro plano da luta política, houve quem o festejasse como uma apoteose da democracia. Nunca me deixei enganar por isso. Era óbvio, no meu entender, que entidades habilitadas a determinar o rumo das coisas sem ter de prestar satisfação às limitações legais que pesavam sobre os partidos políticos eram uma arma perigosa e só acessível a quem tivesse muito dinheiro para comprá-la. A aparente democratização dos meios de ação era na verdade uma formidável concentração de poder nas mãos de corporações milionárias, de movimentos terroristas e de governos interessados em interferir em outros países por vias extra-oficiais, escapando a toda fiscalização direta. Hoje, a rede mundial de ONGs é um sistema de manipulação das massas como nem mesmo o dr. Goebbels e Willi Münzenberg, juntos, poderiam ter concebido.

Pior ainda, o novo instrumento veio junto com técnicas publicitárias que transformam num cândido exercício de sinceridade a velha propaganda partidária. O maquiavelismo explícito, a patifaria descarada, podem aí ser praticados à vontade, alcançando resultados espetaculares muito antes de que mesmo os estudiosos da área – para não falar do público em geral – possam ter a menor idéia de como esses resultados se produziram. O efeito parece sempre inexplicável, como se nascido de forças históricas anônimas, de mudanças culturais espontâneas ou da própria vontade de Deus. Para reconstruir a laboriosa fabricação por trás de tudo é preciso muitos anos de pesquisa: quando se chega à elucidação desejada, é tarde para reverter o mal.

Felizmente, os próprios orquestradores desses efeitos, por vaidade ou instinto pedagógico, às vezes contam como o produziram. “Making the News. A Guide for Activists and Nonprofits”, de Jason Salzman, é um breve tratado da empulhação política, escrito por alguém que a praticou com enorme êxito a serviço de uma das ONGs mais eficientes e cínicas do planeta, o Greenpeace. Os ativistas Marshall Kirk and Hunter Madsen escreveram “After the Ball: How America Will Conquer Its Fear and Hatred of Gays in the ’90s”, a bíblia publicitária do movimento gay , onde ensinam como gerar uma epidemia de notícias convenientes sem a menor preocupação de distinguir as verdadeiras das falsas. Líderes de ONGs abortistas confessaram recentemente como transformaram a adulteração de estatísticas numa rotina de trabalho e treinaram testemunhas falsas para produzir sentenças judiciais pró-aborto.

Praticamente todas as “causas sociais” postas em circulação nas duas últimas décadas nasceram de uma elite de ativistas milionários e altos funcionários de organismos internacionais, disseminando-se no mundo por meio dessas técnicas criminosas ou no mínimo imorais.

A campanha nacional pelo desarmamento das vítimas – uma idéia tão absurda no seu conteúdo nominal que, em circunstâncias normais, nem mereceria a atenção de pessoas intelectualmente adultas – chegou a ganhar espaço na sociedade brasileira graças à associação discreta ou clandestina entre grandes empresas de mídia, planejadores sociais da ONU, ONGs bilionárias a serviço do sr. George Soros e fábricas estrangeiras de armamentos interessadas em desmantelar a indústria nacional de armas, algumas planejando tornar-se detentoras monopolítisticas do ramo da segurança privada, necessariamente favorecido pela campanha. Não menciono aí os narcotraficantes e contrabandistas de armas porque seu interesse no “Sim” é demasiado óbvio.

É cedo ainda para descrever toda a rede de conexões criminosas que há anos vem tentando ludibriar o público brasileiro para que aceite uma proposta imoral e suicida. Alguns laços já se tornaram evidentes, mas o sistema inteiro é vasto e complexo demais para poder ser apreendido numa visão rápida.

Milhões de cidadãos vão ter de votar no referendo sem saber quem, afinal, quer desarmá-los, e com que fins. Mais do que nunca, a sorte do país depende agora do talento imponderável do povo para adivinhar o que não lhe dizem.

Aids, Brasil e Uganda

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de outubro de 2005

O Brasil, como a propaganda governamental não cessa de alardear, conseguiu reduzir pela metade o número de mortes de aidéticos no país. Esse resultado foi obtido por meio da doação maciça de remédios pirateados, que custam aos cofres públicos 300 milhões de dólares por ano. O número de aidéticos em tratamento e portanto a verba para sustentar o programa tendem a aumentar indefinidamente, porque, como qualquer pessoa com QI superior a 12 poderia prever, a distribuição sem fim de camisinhas estatais e a glamurização da homossexidade por meio de anúncios tocantes não reduziram em nada o número de infectados. O Brasil tinha 60 por cento dos casos de Aids da América Latina, e continua tendo. Para completar, o modelo brasileiro não pode ser exportado, porque seu custo ultrapassa tudo o que as nações da África, as mais vitimadas pela doença, jamais ousariam sonhar.

Por ironia, uma dessas nações, a pobrezinha Uganda, conseguiu, com despesa incomparavelmente menor, reduzir a quota de infectados de dezoito para cinco por cento da população. Uma vitória espetacular. Nenhum outro país do mundo alcançou resultados tão efetivos.

Dito isso, dou agora um teste para o leitor avaliar se sabe em que mundo está vivendo: dos dois programas de combate à Aids, qual é aplaudido pela ONU e pela mídia internacional como um sucesso e um modelo digno de ser copiado? Respondeu “o ugandense”? Errou. É o brasileiro. O ugandense, ao contrário, é condenado como um perigo para a população e uma ofensa intolerável aos direitos humanos. O enviado especial da ONU para assuntos de AIDS no continente africano, Stephen Lewis, tem dado  entrevistas para denunciar o abuso, e a ONG Human Rights Watch acaba de publicar um relatório de 81 páginas contra o maldoso presidente de Uganda, Yoweri Museveni, responsável pela coisa toda.

Mas, afinal, qual a diferença entre o modo brasileiro e o ugandense de combater a Aids? Uganda não distribui remédios? Distribui. Não recomenda o uso de camisinhas? Recomenda. Não as distribui à população? Distribui. A diferença é que acrescenta a esses fatores uma campanha pela abstinência sexual antes do casamento e pela fidelidade conjugal depois. Tal é o motivo da sua eficácia, mas também o da profunda indignação da ONU. Essa nobre instituição (que recentemente tirou os EUA e colocou o Sudão na sua Comissão de Direitos Humanos depois de comprovado que a ditadura sudanesa só matou quatrocentos mil dissidentes e não dois milhões como diziam as más línguas) ficou ainda mais chocada porque, embora o governo de Uganda distribua mais camisinhas à sua população do que qualquer outro governo africano, o presidente Museveni e sua esposa Janet chegaram a sugerir repetidamente – em público!, vejam vocês, em público! – que esses artefatos só deveriam ser usados como segunda opção, se falhasse a abstinência dos solteiros e a fidelidade dos casados. Segundo o sr. Lewis, essa insinuação maligna, além de disseminar um preconceito fascista contra o adultério e o sexo pré-conjugal, ainda arrisca desestimular o uso das camisinhas, disseminando a prática do sexo inseguro e matando virtualmente de Aids milhões de ugandenses. Um verdadeiro genocídio. Se o leitor tem alguma dificuldade de entender o raciocínio do digno porta-voz da ONU, pode recorrer à técnica da análise lógica das conclusões para desenterrar a premissa implícita que o fundamenta. Essa premissa é, com toda a evidência, a de que os ugandenses, uma vez persuadidos a tentar a abstinência antes da camisinha, podem eventualmente sentir-se incentivados a continuar prescindindo da camisinha quando desistirem da abstinência. A verdadeira preocupação do sr. Lewis, portanto, deriva do seu temor humanitário de que o quociente de inteligência do povo ugandense seja igual ao dele. A ONU, nesses momentos, chega a ser comovente.

É verdade que, na luta contra a Aids, Uganda é a única nação vencedora (o tão louvado Brasil mal se equilibra num deficitário empate técnico). É verdade também que, em todo o restante do continente africano, onde ninguém prega abstinência nenhuma e todas as campanhas contra a Aids mantêm estrita fidelidade ao dogma da salvação pelas camisinhas tal como formulado ex cathedra pela ONU, as taxas de infecção pelo HiV continuam inalteradas ou crescentes, chegando, em alguns lugares, a trinta por cento da população. O sr. Lewis, por isso, fala com conhecimento de causa. Nada como o fracasso completo para dar a um sujeito (ou a uma instituição) a autoridade de criticar o sucesso alheio. Além disso, ponham a mão na consciência: vocês acham mesmo que alguns milhões de vidas ugandenses salvas valem o sacrifício de não sei quantos minutos de prazer cruelmente negados aos adúlteros e aos homossexuais? É, como se diz, uma questão de princípio: antes sucumbir à Aids do que abdicar do direito ao gozo ilimitado. Eis a alternativa moral que a ONU oferece à humanidade: ou ser salva pela camisinha, ou morrer com dignidade. Ceder à proposta indecente de Yoweri e Janet Museveni, jamais. O jornal inglês Guardian adverte aliás que a proposta tem uma origem das mais suspeitas. Yoweri e Janet Museveni, por inverossímil que isto pareça numa época esclarecida como a nossa, são… cristãos. Parece até mesmo que eles encontraram a idéia na Bíblia.

Esses povos atrasados são mesmo uns jumentos. Nós, brasileiros, um povo iluminado, jamais cairíamos numa esparrela dessas. Nosso negócio é ciência. Já em 2003, pouco antes de passar o cargo a Lula, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que tem entre seus inumeráveis méritos não só a criação do programa de trezentos milhões de dólares mas também a virtude de saber fazer-se de gostosão com muito mais naturalidade do que seu antecessor e xará Fernando Collor, nos ensinou com notável antecedência que essas campanhas de castidade juvenil e fidelidade conjugal não estão com nada. Falando numa conferência em Paris – ele fica tão bem em Paris, vocês não acham? –, ele disse que essas campanhas “só servem para confundir as pessoas”. Como exemplo dessa confusão, ele citou o caso das esposas brasileiras, fielmente monogâmicas, que vão para a cama com seus maridos e contraem Aids. “Elas não usaram camisinhas, porque tinham um parceiro só, e pegaram a doença.” O próprio sr. Lewis não alcançaria a profundidade desse argumento, segundo o qual a fonte do perigo não está nos maridos que traem, mas nas esposas traídas; não está no contaminador, mas na contaminada. O pensamento do grande intelectual uspiano chega, aí, às raias do sublime. Com poucas e fulminantes palavras o autor de Dependência e Desenvolvimento na América Latina – o único livro que se tornou clássico por meio do esquecimento geral – reduz a pó a tese de seu amigo Alain Peyrefitte, de que as sociedades progridem na medida em que nelas imperam os laços de lealdade e confiança. Sociedade normal, sociedade progressista, na doutrina FHC, é aquela na qual a deslealdade está tão generalizada que mesmo as esposas não podem confiar nos maridos. Quando a lealdade falha, como é justo e normal, não se deve portanto fazer uma campanha para restaurá-la, mas, ao contrário, oficializar a deslealdade tornando a camisinha, em vez da fidelidade, uma obrigação moral dos cônjuges. Da minha parte, acreditando piamente que o nosso ex-presidente não seria hipócrita ao ponto de desejar uma moral para as famílias brasileiras em geral e outra para a dele próprio, admito que Dona Rute não deve mesmo, em hipótese alguma, permitir que seu marido venha com coisa para cima dela sem uma camisinha. Talvez até duas. Se ele já veio para cima de nós todos sem nenhuma, é tarde para pensar nisso. Relax and enjoy .

Para quem absorveu os ensinamentos de Stephen Lewis e Fernando Henrique, a inconveniência absoluta de sugerir fidelidade e abstinência salta aos olhos. É de uma clareza lógica formidável, não é mesmo? Só aquela besta do Museveni é que não entende. Ele e a mulher dele. Também, que se pode esperar de uma idiota que acredita no marido? Além de preta, a cretina é cristã. Só falta agora quererem que a gente leve a sério Nossa Senhora Aparecida e a Condoleezza Rice.

Já o relatório da Human Rights Watch enfatiza outro aspecto ainda mais repugnante da campanha ugandense: ela é feita — oh, horror! — com verbas doadas pelo governo americano. É verdade que, no planeta inteiro, os EUA contribuem mais para o combate à Aids do que todos os demais países somados. É verdade, portanto, que a maioria das campanhas anti-Aids em todo o mundo são feitas com dinheiro americano. Até as verbas distribuídas pela própria ONU para esse fim vêm quase todas da mesmíssima fonte. Mas ninguém precisa se rebaixar ao ponto de aceitar, junto com os dólares de Washington, a sugestão maldosa daquele outro casal de carolas, George W. e Laura Bush, de que camisinhas às vezes furam e de que em vez de apostar exclusivamente nelas a vida e a morte, talvez valesse a pena controlar um pouco o desejo sexual.

Uganda, cedendo a essas insinuações, refocilou na lama. Países altivos, briosos, dotados de amor próprio, pegam a grana e mandam George W. Bush enfiar sua religião naquele lugar – com camisinha, é claro. Ou então fazem logo como o Brasil, que rejeita o dinheiro. Se vocês não se lembram, a USAID, pouco tempo atrás, ofereceu 48 milhões de dólares para ajudar o nosso país a comprar remédios para os aidéticos, mas impôs uma condição: que do texto do convênio não constassem palavras que parecessem legitimar a prática da prostituição. O governo petista, que tem dignidade para dar e vender — sobretudo para vender –, não se curvou à imposição degradante. Ser contra a prostituição? Jamais. A reverência ante as marafonas é, entre os políticos brasileiros, arraigada como o amor filial, chegando, em muitos deles, a confundir-se com esse sentimento. Em outros é, como a camisinha do sr. Lewis, uma questão de princípio. Quarenta e oito milhões de dólares é um bocado de remédio para aidético, mas para que fazer uma concessão aviltante à moral burguesa — sobretudo americana, éeeeca! –, quando se pode facilmente subsidiar a honra dos puteiros pátrios com equivalente quantia em moeda nacional extraída aos contribuintes? Vocês todos, leitores e não leitores, pagaram 48 milhões de dólares para o governo nacional não melindrar as – como direi? — prestadoras de serviços eróticos. Tudo pelo direito zumano, né mermo?

 

Prenúncio macabro

Em plena legalidade democrática, um ano depois de assinada a Constituição de 1988, o  dr. Luiz Eduardo Greenhalgh pregava a revolução pelas armas, o desmanche do Exército, da Marinha e da Aeronáutica e a revisão da Lei de Anistia para transformá-la num instrumento de vingança jurídica contra todos os que cometeram o crime eternamente imprescritível de opor-se ao terrorismo comunista no Brasil.

Alertado pela coluna do Cláudio Humberto, fui conferir no livro “A Face Oculta da Estrela”, de Adolpho João de Paula Couto – leitura indispensável para quem ainda acredite que a corrupção petista começou em 2003 –, e de fato estava tudo lá. O programa do homenzinho, simples e brutal, abrangia:

– Remanejamento das Forças Armadas, transferindo para o Norte os oficiais que serviam  no Sul e vice-versa, para afastá-los das frações por eles comandadas, prevenindo possíveis ações armadas contra os planos revolucionários do futuro governo de esquerda.

– Reformar metade dos oficiais da ativa (ele já tinha a lista dos selecionados).

– Extinguir todos os órgãos de Inteligência e abrir seus arquivos para exame de uma “Comissão Popular”.

– Revisão da Lei de Anistia e processo em cima de todos os ex-colaboradores da repressão ao terrorismo.

Para maior claridade do esquema, Greenhalgh concluía: “Só através da luta armada é que conseguiremos garantir a realização do plano.”

Tudo isso, repito, em plena democracia restaurada, em plena legalidade. Mais ostensiva apologia do crime, mais descarado apelo à destruição das Forças Armadas e à derrubada violenta das instituições nunca se viu neste país ou em qualquer outro.

Esse é o indivíduo que o sr. presidente da República quer colocar de ministro do Superior Tribunal Militar. Se isso acontecer, o oficial ou soldado que aceite bater continência a esse sujeito, não digo só que será indigno da própria farda: será indigno de usar calças, se não também cuecas. Fraldão geriátrico, na mais nobre das hipóteses.

Vai acontecer? Não sei. Deveria haver um limite para a capacidade que um ser humano tem de degradar-se sorrindo, de acomodar-se a situações aviltantes com íntima deleitação e até com uma dose de orgulho. Talvez esse limite exista, mas no Brasil de hoje a sensibilidade para percebê-lo e recuar ante o abismo parece ter sido completamente desativada. Para não dar o braço a torcer, para não admitir que está preso numa arapuca comunista de dimensões continentais, cada um vai muito abaixo da fronteira do admissível e se supera, dia a dia, na produção de novos e novos subterfúgios anestésicos.

Podem procurar um precedente histórico. Não encontrarão. Em país nenhum, em época nenhuma a pusilanimidade intelectual se alastrou dessa maneira, ao ponto de constituir-se em princípio básico da vida em comum e atestado obrigatório de saúde mental.

Mas não há imprudência maior do que apostar a vida na possibilidade de fugir indefinidamente da verdade, no poder inesgotável dos derivativos levianos com que, escapando ao confronto com a própria degradação, um ser humano se degrada mais ainda. Pascal chamava essa aposta de “divertissement”. O divertimento pascaliano é o contrário da “alta seriedade” que para Matthew Arnold era a única justificação das criações culturais e, no fim das contas, de todo o convívio social. A mais alta seriedade é o confronto com a realidade da morte, quando cessará todo divertimento. É o instante final do Don Juan de Mozart, quando a festa é interrompida pelo “convidado de pedra”, simbolizando a fixação do destino na forma imutável da morte. A cultura brasileira já foi diagnosticada por vários estudiosos de primeira ordem, como Mário Vieira de Melo e José Osvaldo de Meira Pena, como uma cultura esteticista e lúdica. O que no Brasil da última década levou o nome de “ética” não foi senão um subterfúgio, um “divertissement” com que a esquerda dominante adornou, em sonhos evasionistas, a imagem da sua própria podridão. Todos os que têm alguma influência a ajudaram nisso: intelectuais, políticos, empresários, banqueiros, jornalistas, militares. Todos continuam se evadindo, brincando com o destino, levando o divertimento às últimas conseqüências. Mas a última das últimas conseqüências será a chegada do “convidado de pedra”. A leviandade obstinada e quase devota das classes falantes brasileiras é a autocondenação de toda uma cultura, de toda uma sociedade: é o prenúncio de um final macabro.

Correu de medo

Informado de que os refugiados políticos na Espanha vão pedir a sua prisão pelo fuzilamento de quinze mil cubanos e por mais outros tantos delitos que, segundo o “Livro Negro da Revolução Cubana”, elevam para cem mil o total de vítimas da sua revolução, Fidel Castro pulou fora: anunciou que não vai à Cúpula Ibero-Americana em Salamanca.

Claro: Loco sí, pero no tonto . Perto de Fidel, o general Pinochet é a inocência em pessoa. Mas as personalidades são incomparáveis. Pinochet foi cruel e implacável até o limite da insanidade, mas conservou o senso da retidão, a coragem moral que o fez expor-se ao julgamento popular e submeter-se ao veredito. Fidel Castro jamais teve fibra para isso. Muito menos teria para suportar um rosário de humilhações semelhante ao que Pinochet, velho, fraco e doente, enfrentou nos últimos anos. Fidel não é homem corajoso em sentido próprio, porque a coragem está essencialmente ligada à honra e à dignidade, que ele jamais teve. Ele é apenas um homem violento, um bandido vulgar com um talento invulgar para o histrionismo e a mentira, um sociopata verboso que começou sua carreira oferecendo-se para cometer assassinato político em troca de um cargo e subiu na vida ludibriando seu povo e o mundo. Se querem conhecê-lo, leiam as memórias de sua filha Alina, complementando-as com “Viaje al Corazón de Cuba”, de Carlos Alberto Montaner e “La Mafia de La Habana”, de Luis Grave de Peralta Morell.

Remodelagem

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 16 de outubro de 2005

Quando a mídia brasileira assume o lado do bem e da decência, vocês podem ter certeza: ela o faz com atraso, faz pela metade e faz misturando à causa nobre tardiamente subscrita algum novo elemento de calhordice.

A Folha de S. Paulo do dia 13 tornou-se o primeiro jornal nacional a noticiar com algum destaque o genocídio sistemático da população do Sudão pela Frente Islâmica Nacional que domina o país.

A matéria, traduzida do jornal inglês Independent , diz: “O governo da Frente Islâmica já exterminou mais de 400 mil [negros] e expulsou outros 2 milhões de suas casas.”

Para o padrão jornalístico vigente, já é demais. Romper uma década de silêncio, admitir de repente que um governo islâmico, em tempo de paz, matou dez vezes mais gente do que a guerra do Iraque, é mais que coragem: é uma gafe, uma inconfidência, um ato falho freudiano, uma traição imperdoável aos altos princípios da vigarice obrigatória.

Se todos os morticínios praticados nos últimos anos pelos governos do Sudão, da Coréia do Norte, do Vietnã, da China e de Cuba fossem noticiados, as comparações se tornariam inevitáveis, e George W. Bush, se não assumisse as feições de Madre Teresa de Calcutá, passaria ao menos a ser visto como aquilo que é: um político como os outros, nem muito bom nem muito mau. Mas com isso a demonização prioritária da política exterior americana se tornaria impossível, frustrando a missão número um da classe jornalística brasileira.

Para evitar esse risco temível, os fatos mais importantes e brutais da década tiveram de ser suprimidos. Nenhum leitor ou telespectador brasileiro ficou sabendo da liquidação da tribo montagnard no Vietnã, dos “Aquários de Pionguiangue” (o Gulag norte-coreano), do extermínio de um milhão de tibetanos pelas tropas chinesas de ocupação, do “Livro Negro da Revolução Cubana” que calcula em cem mil o número de vítimas do regime de Fidel Castro.

Anos atrás, em sucessivos e-mails que enviei ao diretor da Folha , Otávio Frias Filho, cobrei dele o oceano de notícias faltantes. Ele disse que ia pensar no caso. Vejo que pensou. O resultado está no jornal do dia 13. Mas a verdade veio profundamente alterada.

Desde logo, o genocídio aparece transfigurado em efeito de perseguição racista, e não religiosa, quando ninguém no mundo civilizado ignora que não é uma guerra de brancos contra negros e sim de muçulmanos – eles próprios negros na maioria – contra as duas comunidades religiosas minoritárias: animistas e cristãos. Principalmente contra estes últimos.

Para encobrir a motivação religiosa da violência, o repórter distorce até a palavra “arabização”, que no contexto sudanês designa a imposição da língua litúrgica do Islam como idioma nacional, e lhe dá sentido genético, incompatível com a composição étnica do Islam em geral, onde os árabes são minoria.

Mas o detalhe mais maravilhoso é a questão das culpas internacionais.

Numa visão objetiva, o país mais culpado é a China, por ser, fora do círculo islâmico, o principal fornecedor de armas para os genocidas. Em contrapartida, o mundo inteiro sabe que as maiores pressões contra a violência sudanesa partiram dos EUA, a primeira nação, aliás, a usar o termo “genocídio” para descrever o caso. Quando a ONU tirou os EUA da Comissão de Direitos Humanos, colocando em seu lugar precisamente o Sudão, o sentido cínico da mensagem foi bastante claro.

O repórter do Independent consegue inverter a realidade, fazendo dos EUA o cúmplice essencial do genocídio – sem alegar para isso outra razão exceto a de que Bush aceitou do governo sudanês informações sobre o paradeiro de bin Laden (como se ele tivesse a obrigação de recusá-las de Satanás em pessoa) –, e mencionando a China apenas de passagem, entre outros países, como se fosse um personagem menor na história.

Por fim, ele acusa pesadamente as empresas capitalistas ocidentais presentes no Sudão do crime hediondo de pagar impostos… como se imposto fosse adesão voluntária.

Agora entendo por que a Folha esperou dez anos e de repente deu a notícia atrasada. A verdade longamente suprimida foi liberada para publicação tão logo remodelada para adequar-se à mentira usual.

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