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O direito de investigar

Olavo de Carvalho


Época, 25 de novembro de 2000

Enfraquecer a Abin é dar ao PT o monopólio da espionagem

Já que tanto se fala de “arapongas”, vale a pena lembrar que o termo, extraído de uma novela cômica da Globo, entrou em circulação na política, uns anos atrás, para designar não os agentes secretos do governo, mas os de um serviço de espionagem privado, ilegal, mantido pelo PT sob a direção de um técnico treinado em Cuba, o deputado José Dirceu.
Naquele tempo, as denúncias do governador Esperidião Amin contra a pequena KGB foram rapidamente abafadas, e os arapongas petistas puderam continuar até hoje seu trabalho, tranqüilamente surrupiando documentos e bisbilhotando a vida de meio mundo sem ser jamais incomodados ou investigados. Os agentes da Abin não desfrutam igual privilégio. Ao menor abuso, são submetidos àquele “controle externo” do qual a espionagem petista, by special appointment, está completamente isenta.

No entanto, se a Abin cometeu algum abuso, a existência mesma de seu rival petista é mais que abuso: é crime. A gritaria geral contra o abuso, já que acompanhada de não menos geral silêncio no que diz respeito ao crime, tem por óbvia finalidade amarrar as mãos da autoridade constituída e conferir ao serviço secreto ilegal o monopólio dos meios de investigar. Se o governo aceitar esse jogo, acabará transformando a Agência Brasileira de Inteligência em Agência Brasileira de Burrice. Não é nada impossível que as informações reservadíssimas veiculadas pela imprensa na semana passada tenham sido, elas próprias, obtidas por agentes petistas, numa operação montada para consolidar a superioridade da espionagem ilegal sobre o serviço secreto oficial – um avanço formidável na montagem do poder paralelo preconizado por Lênin, que, segundo demonstrou José Giusti Tavares no estudo Totalitarismo Tardio: o Caso do PT (Porto Alegre, Mercado Aberto, 2000), é a quintessência da estratégia petista.

Mas, além disso, é simplesmente obsceno aceitar como pressuposto indiscutível a afirmação de que houve abuso por parte da Abin. Qualquer brasileiro que seja persona grata aos altos escalões do governo cubano é suspeito de envolvimento numa estratégia revolucionária continental associada aos narcotraficantes colombianos e deve, no mínimo, ser observado.

Um governo que, sabendo da existência de uma revolução em marcha nas fronteiras, se abstivesse de investigar os possíveis colaboradores internos da operação estaria simplesmente entregando o país aos revolucionários. E o que muita gente está exigindo do governo é que ele não apenas abdique de investigar os agressores, mas consinta docilmente em ser investigado por eles.

No entanto, se nosso presidente, depois de tantas concessões degradantes, fizer mais essa, não haverá nisso nada de estranho. Há sérios indícios de que, seguindo estritamente a sugestão que recebeu do cientista político Alain Touraine, ele prepara para o ano que vem uma guinada à esquerda, de modo a tornar-se o virtual chefe da transição brasileira para o socialismo. Que mais poderia ele querer dizer com “a grande virada” que anuncia para 2001? Eleito com o apoio suicida de liberais iludidos com a cantilena do “fim do comunismo”, ele parece não ter mesmo outro sonho na vida senão o de se tornar o Kerenski que deu certo.

PS.: Um leitor acusa-me de ser avesso ao debate e para prová-lo alega que respondi aos argumentos do doutor Borroni-Biancastelli. Mudou o conceito de debate ou mudei eu?

Entre Girard e Boff

Olavo de Carvalho


O Globo, 25 de novembro de 2000

Vocês não sabem o que perderam. Não somente a conferência de René Girard na UniverCidade, dia 17, foi um esplêndido acontecimento intelectual, mas também raramente uma exposição tão límpida foi ilustrada, no ato, por um exemplo tão vivo: mal o autor de “O bode expiatório” tinha acabado de dizer que as ondas de violência coletiva contra inocentes são precedidas e legitimadas por imputações criminais absurdas, quando um dos debatedores convidados, o dr. Leonardo Boff, subiu ao púlpito para concitar as massas à vingança contra os adeptos da economia de mercado, acusando-os não só de matar pessoas, mas de fazê-lo numa média de… cem mil vítimas por dia. Com essa cifra, o dr. Boff garantiu seu lugar no Livro Guinness das Estatísticas Caluniosas e superou, ao menos em idéia, os oficiantes de rituais primitivos analisados no livro do grande antropólogo, cuja fama aliás ele vem parasitando já há alguns anos em proveito desse vasto discurso de inculpação delirante que é a “teologia da libertação”.

Mas nem por isso devemos fazer dele o bode expiatório da devastação mental brasileira, da qual ele não é pai e sim apenas filho, e tanto mais inocente porque não tem a menor consciência de que é a cara da mamãe.

No entanto, por essas e outras, a visita de Girard tornou-se uma magnífica oportunidade perdida. Ele é chamado o “Darwin das ciências humanas” por ter elucidado o papel fundamental que a violência inculpatória desempenha na organização das sociedades. Segundo sua teoria (magistralmente resumida no depoimento a João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello, que a Topbooks acaba de publicar sob o título “Um longo argumento do princípio ao fim”), o desejo humano, ao contrário dos apetites animais, não se dirige a bens ou prazeres do mundo objetivo, mas à imitação invejosa de prestígios consagrados. Não é desejo espontâneo, mas desejo copiado, mimético. Daí a universal frustração, que alimenta conflitos sem fim. Quando a tensão das invejas acumuladas chega ao insuportável, a guerra de todos contra todos é adiada mediante o sacrifício de bodes expiatórios, que restabelece o senso ilusório da união coletiva até a próxima crise. Amparado em documentação esmagadora, Girard demonstra que uma mudança radical aconteceu na passagem das antigas mitologias para o universo bíblico, onde a justiça mitológica é desmascarada e se proclama a inocência das vítimas sacrificiais. Mas, passados tantos milênios, a Bíblia ainda é uma novidade indigerível, e a todo momento o autêntico senso de justiça cede o passo a restaurações insanas da violência mitológica.

À luz dessa descoberta, nenhum intelectual sério pode exortar as massas a “fazer justiça” sem tornar-se cúmplice de uma farsa maligna, pois as massas, por definição, não fazem justiça, apenas descarregam sobre bodes expiatórios as tensões acumuladas do desejo mimético. A visita de René Girard (v. sua reveladora entrevista no site http://www.oindividuo.com) teria sido uma ótima oportunidade para a nossa classe letrada meditar as contradições do esforço “ético” nacional, que ilustram ainda melhor que o dr. Boff a veracidade da teoria mimética.

Só para dar um exemplo: numa época em que os assassinos espalham o terror nas ruas, a máfia dos detentos domina o sistema carcerário e os narcoguerrilheiros avançam fronteira a dentro, a mobilização maciça de entusiasmo belicoso para a caçada a um funcionário público que desviou dinheiro de uma construção é uma obscena operação diversionista, sem outro sentido senão o de fabricar uma união nacional postiça mediante o sacrifício ritual de um salafrário repelente mas pacífico, incapaz de atirar num cão sarnento com uma espingarda de chumbinho.

É que o salafrário, miúdo na escala da truculência, é grande, é gigante, é macrocósmico como símbolo apto a condensar ódios e frustrações da massa. O policial que arrisca a vida trocando tiros com quadrilheiros é um emblema da nossa miséria, da nossa violência. Por isso os primeiros a cobrar sua proteção são também os primeiros a renegá-lo, a escondê-lo, a exorcisá-lo, igualando-o aos bandidos que persegue. Um senador que, do alto da tribuna, cercado de seguranças, sem o menor risco para a sua pessoa, verbera com oratória balofa a invejada opulência dos “colarinhos brancos” iguais a ele próprio, este sim é um herói, um tribuno do povo, a convocar a maré montante da vingança redentora.

O criminoso de colarinho branco não é odioso pelo crime, mas pelo colarinho. Nas notícias, nos comentários, nas conversas de rua que o condenam, a indignação geral enfatiza menos a ilegalidade específica de seus atos, detalhe técnico complicado e tedioso, do que a descrição espetacular de seus bens acumulados, de suas mansões cinematográficas, de seus carros importados, de suas noitadas em cassinos. Descrição que, sempre feita naquele tom perfidamente ambíguo, entre o escândalo e o deleite, injeta na alma do povo a peçonhenta indistinção entre o anseio de moralidade e o puro rancor invejoso, atiçando o fogo das culpas recalcadas para precipitar a grande descarga ritual. O estilo é o homem: a moral que nossos líderes estão ensinando ao povo não é uma moral de homens honestos — é uma moral de ladrões invejosos, revoltados contra o concorrente que roubou mais.

A degradação do senso ético nacional pela inversão de prioridades e pela manipulação do rancor mimético disfarçado em bom-mocismo é, ela própria, a causa psicológica principal dos alucinantes progressos da criminalidade ao longo de doze anos de pretensa “restauração da ética”. Meditar a lição de Girard poderia nos curar disso. Mas preferimos dar ouvidos ao dr. Boff.

Guerras santas

Olavo de Carvalho

Bravo!, novembro de 2000

Grande parte das culturas antigas concedia aos chefes, aos guerreiros e poderosos o direito de livrar-se, quando bem entendessem, dos fracos indesejáveis. Crianças, velhos e doentes podiam ser mortos por simples capricho de homens jovens e saudáveis que não queriam trabalhar para sustentá-los. Isso foi assim durante milênios. Foi assim no Egito, na Babilônia, no Império Romano, na China, na Arábia pré-islâmica. Foi assim entre os celtas, germanos, vikings, africanos, maias, aztecas e índios brasileiros. Foi assim quase por toda parte. O número de inocentes enterrados vivos, queimados, entregues às feras ou despedaçados em rituais sangrentos em nome dessa lei bárbara é incalculável.

É toda uma humanidade que foi eliminada do caminho dos fortes, ambiciosos e triunfantes senhores de antigamente.

O morticínio permanente só foi interrompido graças à ação de duas forças que emergiram bem tarde no cenário da História: o cristianismo, no Ocidente, o islamismo no Oriente. Antes delas, o judaísmo já conhecia a incondicionalidade do “Não matarás”. Mas o judaísmo não é uma religião proselitista: os judeus, nação minoritária, limitaram-se a praticar entre si um modo de vida mais elevado e mais humano, sem poder ou pretender ensiná-lo aos povos em torno. (O budismo e o hinduismo também tiveram acesso a verdades similares, mas seu caso é especial e deixarei para analisá-lo noutra oportunidade.) Essencialmente, foi graças à moral cristã e à lei muçulmana que o universal direito à vida, revelado inicialmente aos judeus, se tornou patrimônio de todos os homens.

Não houve, ao longo da história, fato mais decisivo. Pois ele não importou somente numa extensão quantitativa. Ao transferir-se para classes de pessoas que antes não o desfrutavam, ou que o desfrutavam somente como concessão de outras pessoas, o direito à vida sofreu radical mutação qualitativa: passou de relativo a absoluto, de condicionado a incondicionado e condicionante. Tornou-se o primeiro de todos os direitos, do qual todos os demais decorrem.

Conceder ao ser humano um direito qualquer, de propriedade ou herança, por exemplo, negando-lhe ao mesmo tempo o direito de existir, é, de fato, apenas uma piada demoníaca. Mas essa piada foi o “script” verdadeiro das vidas de milhões de seres humanos.

Hoje em dia qualquer criança compreende que a prioridade do direito à vida é algo simplesmente lógico, que flui da natureza das coisas. Apóstolos dos “direitos humanos” tomam-no como uma obviedade elementar, como o pressuposto indiscutido e indiscutível dos seus discursos.

Mas poucos se lembram de que o reconhecimento dessa obviedade natural não foi natural nem óbvio. Para disseminá-lo, foi necessário vencer as resistências prodigiosamente obstinadas das culturas antigas. Monges, pregadores, santos foram trucidados por toda parte aonde levassem essa mensagem, tão evidente em si mesma quanto hostil a toda organização social fundada na precedência de outros direitos: direitos de sangue, direitos territoriais, direitos de casta. Para muitas culturas, ceder nesse ponto era abdicar de instituições, leis, privilégios milenares. Era autodestruir-se, era dissolver-se na unidade maior da cultura recém-chegada, portadora da nova lei. Muitos povos souberam adaptar-se à transição sem grandes perdas, tornando-se eles próprios porta-vozes da melhor notícia que a humanidade já havia recebido. Outros obstinaram-se na defesa de direitos imaginários. Por isso foi necessário destruir suas culturas.

A cada guerra empreendida pelos exércitos cristãos e islâmicos contra as nações que rejeitavam sua lei, foram garantidas, à custa da morte de uns milhares de soldados, as vidas de milhões de seus descendentes. A extensão dessa obra salvadora é imensurável. Jamais um bem tão fundamental foi legado a tantas gerações de seres humanos.

Por isso essas guerras foram santas. Por isso foi santa a vontade de domínio que fortaleceu mais os portadores do novo direito universal do que os defensores de costumes locais. Dos descendentes dos povos derrotados, que hoje, movidos por um saudosismo artificial e fingido, se prevalecem dos direitos recebidos dos vencedores para fazer a apologia das culturas derrotadas e condenar sua destruição como um crime inominável, a maioria, se os vencidos tivessem triunfado, simplesmente não existiria. Em algum ponto da história de suas famílias a continuidade da sua linha ancestral teria sido interrompida: sua bisavó teria sido sepultada viva, seu tetravô entregue às feras, o tetravô de seu tetravô estrangulado no berço ou largado no chão até morrer de fome — tudo sob as bênçãos de reis, hierofantes e tradições veneráveis.

Em cada grupo de índios que aparecem gritando contra a destruição de sua cultura ancestral, uma coisa é certa: se ela não tivesse sido destruída, muitos deles não teriam vivido para ver a luz do dia.

Eu próprio, descendente de celtas e germanos, com muita probabilidade não estaria aqui escrevendo, se algum monge cristão não tivesse detido no ar o braço do sacerdote bárbaro, erguido para o sacrifício de um meu antepassado.

Por isso, alegar os “direitos humanos” como argumento para condenar a destruição de culturas que viveram de ignorá-los e desprezá-los é não apenas um contra-senso lógico, mas uma mentira existencial. Se os direitos do ser humano são primeiros e incondicionais, os direitos das culturas têm de ser, necessariamente, secundários e relativos. Para que os homens sejam iguais em direitos, é preciso que entre as culturas prevaleça não a igualdade, e sim a hierarquia que coloca no lugar mais alto aquelas que reconhecem a igualdade dos homens, a começar pela incondicionalidade do direito à vida. Entre a igualdade dos homens e a igualdade das culturas há uma incompatibilidade radical, que somente pode ser ignorada por uma ideologia autocontraditória, esquizofrênica e perversa.

Não obstante, é essa ideologia que prevalece hoje no ensino e nos meios de comunicação, induzindo crianças e jovens a revoltar-se, em nome do direito e da liberdade, contra as condições sem as quais esse direito e essa liberdade jamais teriam podido vir a existir.

Transmitir semelhante ideologia às novas gerações é cindir as inteligências em formação, cavando um abismo intransponível entre sua visão estereotipada do passado histórico e sua percepção da realidade presente. É destruir na base a possibilidade de toda consciência histórica, e, com ela, as condições de acesso à maturidade intelectual responsável.

É verdade que o discurso incriminatório contra as grandes culturas que humanizaram o planeta está na moda, que repeti-lo faz um professor brilhar ante a classe — ou ante as câmeras — como modelo de sujeito moderninho e de mente aberta. Mas até quando nós, pais, havemos de tolerar que a inteligência de nossas crianças seja sacrificada no altar das vaidades de professores que não sabem o que dizem?

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