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Precauções de leitura

Olavo de Carvalho

O Globo, 18 de novembro de 2000

Uma grande bobagem que você pode fazer ao estudar a história das idéias filosóficas é compará-las umas às outras no mesmo plano, como teorias científicas ou visões da realidade, diferentes apenas segundo o ponto de vista adotado, os talentos pessoais de seus criadores e a mentalidade das épocas.

Muitas doutrinas famosas não são de maneira alguma teorias sobre a realidade, nem tiveram jamais a pretensão de sê-lo. Surgidas no bojo de grandes projetos de ação política, são ficções propositais calculadas para produzir impressões na opinião pública e predispô-la às condutas que se supõem adequadas à consecução desses projetos. São, no sentido mais estrito, informação estrategicamente manipulada. Não se destinam a diagnosticar, descrever ou compreender a realidade, mas a produzi-la – ou melhor, a produzir uma falsa realidade que atue sobre a realidade efetiva, no mesmíssimo sentido em que um falso rumor de traição conjugal, soprado aos ouvidos de um marido ciumento, pode induzi-lo a um crime passional de verdade.

Não são teorias: são atos políticos. Discuti-las como teorias pode ser útil apenas para desmascarar a falsa identidade científica que se arrogam, mas, precisamente, esse desmascaramento não pode ser feito sem um conhecimento prévio do projeto que encobrem e que ocultamente as modela.

Uma precaução elementar no estudo de qualquer doutrina é averiguar se seu autor corresponde ao tipo do homo theoreticus, do estudioso sincero que irá às últimas conseqüências na investigação da verdade, pouco importando a quem favoreçam ou desfavoreçam os resultados de suas investigações, ou se, ao contrário, é um líder, um chefe, um homem de ação e revolucionário interessado em transformar o mundo. Neste último caso, a hipótese de que a verdade objetiva prevaleça em seu pensamento é uma casualidade que pode se dar aqui ou ali, em afirmações parciais, mas que no conjunto deve ser considerada improvável e remota.

Há, evidentemente, o caso intermediário do educador, que é homem de ação e produz teorias. A diferença é que a ação do educador visa a transformar almas individuais – as de seus alunos atuais e virtuais – e não o Estado, as leis e a sociedade, pelo menos de maneira direta e intencional. Esse tipo de ação não só é compatível com a fidelidade ao saber objetivo, mas de certo modo a exige.

Até certo ponto, todo filósofo é um educador e não pode deixar de sê-lo. Idêntica observação pode-se fazer, mutatis mutandis, quanto ao “médico de almas”, que é um tipo especial de educador.

Há também a possibilidade de que o autêntico homem de saber, em certas circunstâncias, tome posição em questões políticas específicas, sem comprometer-se num plano de reforma do mundo que chegue a determinar, por si, os princípios de sua doutrina. Se esse é o caso, suas opções políticas refletirão sua orientação teórica geral (ou as mudanças dela), e não ao inverso.

Mas, feitas estas ressalvas, vigora a distinção entre o homo theoreticus e o homo politicus. A noção marxista de ideologia, com sua hipótese pueril de que todas as idéias têm, por igual, objetivos políticos inconfessados, só serviu para obscurecer essa distinção, que não obstante continua indispensável.

Platão, por exemplo, é caracteristicamente homo politicus. Na sua famosa “Carta sétima”, ele admite que o objetivo de sua obra é a reforma do Estado. Mas não seria preciso isso para alertar-nos da conveniência de ler os seus escritos não como descrições da realidade, e sim como montagens de uma realidade postiça que ele quer impingir a seus discípulos em vista de um resultado. Como autor de um projeto político, Platão não deve ser julgado só pelo teor intelectual de suas idéias, mas segundo a elevação das intenções, a lisura dos métodos e o caráter útil ou danoso dos resultados de sua ação na História.

Se não fosse por isso, certas argumentações capciosas que ele atribui a Sócrates — e que não teriam o menor sentido justamente no contexto de uma disputa entre o novo espírito de rigor socrático e o arsenal consagrado de prestidigitações sofísticas que ele pretende desmascarar – teriam de ser explicadas como lapsos de lógica ou como mentiras gratuitas.

A primeira hipótese deve ser afastada porque muitos desses erros são demasiado grosseiros para alguém que não podia ignorar os critérios dialéticos que, na sua própria academia, já vinham sendo ensinados por um seu discípulo (Aristóteles). A segunda faria de Platão um leviano indigno de atenção.

Platão, pois, quando mente, tem algo em vista, como é próprio dos políticos, e muitos de seus erros são mentiras propositais. Isto deve ser levado em conta na interpretação da sua obra, enquanto a de Aristóteles se coloca mais na pura dimensão teorética e pode ser compreendida de maneira mais literal. Quando ele diz algum absurdo (y que los hay, los hay), é simples erro científico, que pode danificar em mais ou em menos o conjunto do sistema, mas não requer a sondagem de motivações ocultas.

Mas, se tais precauções são indispensáveis no estudo dos clássicos, quanto mais não o seriam no da produção científica de uma época em que praticamente toda a classe acadêmica vive a soldo de governos, serviços secretos, partidos políticos, ONGs e outras organizações decididas a moldar o mundo? Nessa época, a autoridade intelectual em estado puro é tão rara quanto o puro heroísmo ou a pura santidade. A quota de ação política embutida na produção acadêmica é tão imensa que, num impressionante número de casos, a leitura de teses universitárias só é proveitosa para técnicos em informação estratégica, aptos a identificar e neutralizar, nelas, o elemento de desinformação. Para os demais, é apenas auto-intoxicação mental.

Um lindo casamento

Olavo de Carvalho

Época, 11 de novembro de 2000

Capital monopolista e socialismo nunca foram tão felizes juntos

Quanto mais o socialismo reconhece sua inviabilidade econômica e se vê obrigado a transigir com a iniciativa privada, mais ele se volta para a luta cultural, para a busca do domínio psicológico sobre as multidões. Nos Estados Unidos e na Europa Ocidental a síntese já está tomando forma: economia capitalista, cultura e mentalidade socialistas.

Há quem ache isso lindo, mas há dois problemas. Primeiro: o capitalismo aí já não é o antigo liberalismo, é um capitalismo de monopólios gigantes, tão perfeitamente integrados na estrutura do poder mundial que funcionam quase como estatais globais. Segundo: o socialismo, quanto mais desiste de suas idéias econômicas e se contenta em controlar consciências e condutas, mais intolerante e despótico se torna. Nas universidades e nos debates científicos, por exemplo, o uso da intimidação física para calar os discordantes tornou-se uma modalidade institucionalmente válida de argumentação. O célebre episódio do professor judeu que, tendo falado mal de Hitler na Alemanha pré-nazista, foi surrado pelos alunos e depois, numa universidade americana, apanhou de novo por ter falado mal de Che Guevara é o resumo da ópera, com o detalhe significativo de que em ambos os casos a reitoria deu razão aos agressores. Pouca gente sabe que foi mais ou menos mediante esse tipo de argumentação que o homossexualismo saiu da lista de doenças mentais. Por idênticos métodos o estudo dos clássicos foi substituído, em muitas universidades, por subliteratura feminista, abortista, gay, black etc.

Nada disso foi imprevisto. Em 1970 Leszek Kolakowski já anunciava que o maior perigo do marxismo residia em seu potencial de destruição da cultura. O raciocínio imanente à nova barbárie era simples: se a cultura é superestrutura do domínio de classes, é obrigação da nova era igualitária fazer tábua rasa, destruir o patrimônio milenar de idéias e valores, substituir toda a bibliografia universal pelo Livro Vermelho dos Pensamentos do Presidente Mao ou porcaria equivalente.

De outro lado, os economistas liberais nunca cessaram de denunciar o mariage de raison entre o socialismo e os monopólios privados. Quem quer que entenda um pouco de economia sabe que o socialismo é impossível. Ora, os grandes monopolistas entendem muito de economia. Sempre souberam que qualquer regime socialista acabaria dependendo da ajuda deles e, a médio ou longo prazos, se tornaria dócil como um cãozinho treinado. Socialismo é big business – desde que a oficina fique longe do escritório, é claro.

A globalização da economia simplesmente mudou os termos do acordo de casamento. A antiga partilha territorial cedeu lugar a uma divisão de trabalho: a militância socialista não toca na economia, os grandes grupos econômicos dão suporte às reivindicações esquerdistas que convenham a seus planos globais. A uniformização mundial das legislações trabalhistas e dos direitos de imigrantes, o controle ecológico mundial, a dissolução de culturas religiosas tradicionais etc. – tudo isso é base suficiente para o mais harmonioso dos matrimônios. Por isso, hoje, a esquerda é maciçamente financiada pelo capital monopolista internacional, com a vantagem adicional de poder posar de nacionalista em países periféricos onde o público ignora essas coisas. No Brasil, por exemplo.

O leninismo eterno

Olavo de Carvalho

O Globo, 11 de novembro de 2000

Durante anos a imprensa ocidental assegurou que havia um grave conflito entre os governos socialistas da Rússia e da Albânia. A fonte da notícia eram as rádios estatais dos dois países, captadas pelo serviço secreto americano, que transmitiam pesadas recriminações mútuas entre os déspotas soviéticos e os altivos governantes de uma naçãozinha que se cansara de ser satélite. As dissensões internas, afirmavam os comentaristas, prenunciavam a dissolução do monolito soviético, a modernização do regime, a abertura ao Ocidente, o retorno das liberdades civis. Enquanto isso, o intercâmbio diplomático e comercial entre Rússia e Albânia continuava normalmente, os representantes de cada lado eram bem recebidos no outro, mas a imprensa de Nova York e Londres explicava que eles estavam apenas tentando “resolver suas divergências”.

Passados 40 anos, ex-agentes da KGB revelaram que as emissões da rádio albanesa, além de vir em língua praticamente desconhecida na Rússia, só eram ouvidas em Moscou pelos funcionários do serviço secreto, ao passo que as russas nem sequer chegavam até a Albânia, porque não havia retransmissão pelas torres locais. A troca de insultos tinha sido, enfim, uma emissão exclusiva para o público ocidental…

Os habitantes de países democráticos, onde os jornalistas vasculham tudo e a oposição revela documentos secretos dos órgãos de segurança para esculhambar com o Governo, dificilmente podem imaginar a facilidade com que um regime totalitário, controlando as fontes de informação, logra impor, para aquém ou além de suas fronteiras, uma imagem totalmente falsa do que nele se passa.

De modo mais geral, o movimento socialista, no poder ou fora dele, notabilizou-se pelo talento de mostrar-se tanto mais dividido e debilitado – e por isto mesmo menos ortodoxo e mais aberto a inovações democráticas – justamente nos momentos em que mais estreitamente cerrava fileiras para um esforço conjunto em estratégias de longo prazo.

Poucos não-militantes compreendem o sentido dialético do raciocínio socialista, onde cada decisão traz em seu bojo o resultado oposto, calculado para germinar em segredo e vir à luz de repente, pronto e realizado, como se surgido do nada, confundindo e paralisando os adversários. Pelo menos três vezes o truque obteve sucesso em escala planetária, levando o mundo a acreditar que o socialismo havia desistido de sua ortodoxia e de seus planos de expansão, precisamente quando ele se preparava para ampliar seus domínios e exercer sobre eles um controle ainda mais rígido.

A primeira foi em 1921, quando Lenin abriu a Rússia aos investimentos estrangeiros. Foi uma onda mundial de alívio. Capitais acorreram em profusão, celebrando o fim do pesadelo revolucionário. Quando a injeção acabou de produzir seus efeitos curativos sobre a economia russa, veio a brutal antítese dialética: a repentina estatização total da indústria, dos bancos e da agricultura, a consolidação do Estado policial.

A segunda foi a dissolução do Comintern, em maio de 1943, um aceno de boa vontade aos aliados antinazistas, que o interpretaram como prova de que o comunismo abandonara suas ambições revolucionárias e se transformara em puro progressismo patriótico. Franklin Roosevelt chegou a assegurar que Stalin não era comunista de maneira alguma. O resultado, logo depois, foi a ocupação de meia Europa pelos exércitos soviéticos e a implantação do comunismo na China.

A terceira foi a “desestalinização”, em 1956, entre aplausos gerais do Ocidente à cansada ideologia revolucionária que generosamente abdicava de si mesma. Resultados: revolução cubana e expansão formidável do socialismo na Ásia e na África.

Por isso mesmo, não é nada estranho que, quanto mais a esquerda brasileira proclama seu estado de divisão, a perda de sua identidade ideológica e sua conseqüente disposição de abrir-se à modernização capitalista, mais firme e coesa ela avance rumo à conquista do poder, mais ela consolida seu braço armado, seu serviço de espionagem, sua posição de mando na mídia e seu domínio sobre a linguagem, o imaginário e as reações emocionais das classes cultas.

Ninguém mais, fora da esquerda, sabe o que é dialética ou como funciona o princípio leninista do “centralismo democrático”. Por isso ninguém entende que uma aparência de anarquia e pluralismo é a melhor e a mais tradicional fachada para a consecução de uma estratégia unitária de longo prazo.

Pela mesma razão, todas as análises do desempenho eleitoral do PT que li até agora se dividem em duas espécies: metade é falta de informação, a outra metade é desinformação.

Solidamente protegida da luz pela geral ignorância de seus métodos, a estratégia, no entanto, às vezes deixa o rabo à mostra. Numa entrevista recente, o sr. Luiz Inácio Lula da Silva, após dar por implícito que a meta do PT é o socialismo, rejeitou categoricamente a hipótese de uma social-democracia, inviável, segundo ele, num país tão pobre (ou que tal lhe parece). Mas um socialismo, se não é social-democracia, que raio de coisa há de ser senão o bom e velho leninismo?

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