Olavo de Carvalho

9 de abril de 2000

Agradeço a meu amigo Fernando Klabin ter-me chamado a atenção para o recém-publicado A Dúvida, de Vilém Flusser, filósofo judeu tcheco que viveu trinta anos no Brasil e escreveu em português vários livros de primeira ordem. Flusser, porque era um filósofo de verdade, permaneceu sempre um marginal em relação ao establishment uspiano e preferiu aproximar-se do grupo de Miguel Reale e Vicente Ferreira da Silva no Instituto Brasileiro de Filosofia. Não me espanta, e aliás muito me reconforta, que esse espírito superior tivesse me antecedido na linha de investigações que adotei ante o cartesianismo (v. 
Descartes e a Psicologia da Dúvida, nesta homepage). O livro A Dúvida, onde ele realiza esse exame fundamental, tinha permanecido inédito até agora. Ainda não o li e não sei como Flusser encaminha a investigação. Pelo que leio na excelente resenha de Gustavo Bernardo, parece que a diferença específica reside no fato de que ele propõe e intenta o “duvidar da dúvida” como uma meta ideal, como um capítulo seguinte na linha que vai de Descartes a Husserl, ao passo que eu asseguro que a dúvida da dúvida é simplesmente um fatopsicológico, que a estrutura mesma do ato de duvidar pressupõe duvidar da dúvida, algo que não foi percebido nem por Descartes nem por Husserl e cuja descoberta, até certo ponto ao menos, torna inviável o uso da dúvida sistemática como método filosófico. Flusser seria assim uma sentinela avançada da tradição cartesiana, enquanto eu me coloco decididamente fora dela e retorno ao método anamnético de Sto. Agostinho, no qual o cogito não surge como fundamento epistemológico, mas como simples momento no processo destinado a revelar o fundamento divino da autoconsciência humana. De outro lado, ele enfatiza a crença como ponto de partida da dúvida, ao passo que eu assinalo a presença de uma multidão de crenças afirmativas no próprio tecido interno do processo dubitativo. Parece que é isso, mas não sei. Vamos ler. O caso é apaixonante. E tudo o que Flusser disse merece ser ouvido com a maior atenção. – O. de C.

Resenha de A Dúvida por Gustavo Bernardo

O Globo, 28 de março de 2000

A Dúvida, de Vilém Flusser. Relume-Dumará 104 pgs. R$ 15.

‘Vilém Flusser foi um pensador vigoroso, denso e incisivo. Para ele, o pensar filosófico era uma urgência vital”. Assim Celso Lafer, no prefácio de “A dúvida”, define obra e personalidade do filósofo tcheco-brasileiro que escrevia em quatro línguas e pensava sempre como imigrante ou estrangeiro, permitindo-se perspectiva absolutamente original sobre textos, imagens e acontecimentos.

Flusser nasceu em 1920, em Praga, e morreu em 1991, em Praga; aos 20 anos fugiu dos nazistas para o Brasil, onde viveu 30 anos, para depois morar na França. Publicou mais de 30 livros – a maioria em alemão embora os tenha escrito também em português como “Língua e realidade” (1963), “A história do diabo” (1965), “Ficções filosóficas” (1998) e este “A dúvida”, inédito em qualquer língua e que é a síntese de sua obra.

Assim define Flusser seu mais espinhoso tema: “A dúvida é um estado de espírito polivalente. Pode significar o fim de uma fé, ou pode significar o começo de uma outra. Pode ainda, se levada ao extremo, instituir-se como ‘ceticismo’, isto é, como uma espécie de fé invertida. Em dose moderada estimula o pensamento, mas em dose excessiva paralisa toda atividade mental”.

Para haver a dúvida, é preciso haver pelo menos duas perspectivas, isto é, alguma dualidade. Antecedendo às duas perspectivas, é preciso que antes tenha havido “uma fé”. Logo, o ponto de partida da dúvida é sempre uma fé. Ora, o estado primordial do espírito é e tem de ser a crença, não a dúvida. A dúvida desfaz a ingenuidade e, embora possa produzir uma fé nova e melhor, esta não pode mais ser vivenciada como “boa”. As certezas originais, abaladas pela dúvida, são substituídas por novas certezas, mais refinadas e sofisticadas, porém não mais originais, exibindo a marca da dúvida que lhes serviu de parteira.

O último passo do método cartesiano, que nem Descartes nem Husserl se atreveram a dar, implica duvidar da dúvida. Flusser arrisca esse passo. Descartes, e com ele todo o pensamento moderno, aceita a dúvida como indubitável, e por isso não pode dar o último passo. A última certeza cartesiana, que o popularizou – “penso, logo, existo” – deve ser lida como: “duvido, logo, existo”. A certeza cartesiana é, para Flusser, a última certeza autêntica do pensamento ocidental, gerando as principais hermenêuticas da modernidade, não por acaso hermenêuticas da suspeita: marxismo e psicanálise.

A dúvida da dúvida é um estado fugaz do espírito e, também, um passo de Sísifo. Embora possa ser experimentado, ele não pode ser sustentado (como a pedra nas costas). Negando a si mesmo, vibra, indeciso, entre extremos opostos: ora o ceticismo absoluto, ora o positivismo ingênuo, do qual também só pode duvidar por princípio. A dúvida da dúvida impede qualquer descanso.

O caminho de Sísifo redemoinha-se se perseguimos a questão: por que duvido? Ora, porque sou. Então, duvido de que sou. Logo, duvido de que duvido, em última análise (abissal). Parece um jogo fútil de palavras, mas o pensamento contemporâneo reconhece vivencialmente esse dilema.

O retorno dos físicos a Deus e o apoio dos cientistas sociais em conceito tão vago como pós-modernidade indicam a beira do mesmo abismo. A problematização e o esvaziamento do conceito “realidade” acompanham o progresso, nessa medida perigoso, da dúvida. Nossa civilização construiu-se a partir da dúvida cartesiana, ou seja, dúvida limitada pelo cogito e, é claro, por Deus. Ultrapassar esses limites é experimentar o niilismo.

Confirmam o absurdo as reações desesperadas contra o absurdo. No campo da filosofia pululam os “neos”. Na ciência tentam-se reformular premissas em bases mais modestas. Na razão prática multiplicam-se seitas religiosas. Nas ciências sociais apela-se para o “pós-pós”. Na política ressurgem inautenticamente conceitos esvaziados.

É muito fácil ler nas palavras de Flusser ceticismo e apocaliptismo, para permitir oposição igualmente fácil com otimismos baratos e logicismos vazios. No entanto, o seu pensamento não cabe nessas chaves porque não finge que não sente ou não enxerga o limite da dúvida.

A procura da verdade em si mesma indica saúde mental e existencial; o que se acha através dessa procura revela muitas vezes, porém, doença e absurdo. Logo, a procura não deve perder de vista o momento fundador, a saber, o movimento mesmo de procurar. Nesse momento não somos nem apocalípticos nem integrados, nem pessimistas nem otimistas, mas sim conseqüentes.

GUSTAVO BERNARDO é professor de Teoria da Literatura na UERJ.

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