Olavo de Carvalho


O Globo, 07 de junho de 2003

Paulo Mercadante é um de meus melhores amigos. Isso talvez devesse me inibir de escrever sobre o seu livro “A Consciência Conservadora no Brasil”, que, fora do mercado por duas décadas, volta agora em quarta edição, com nova e excelente introdução de Nelson Mello e Souza, graças à oportuna parceria da Topbooks com o Instituto de Filosofia e Estudos Interdisciplinares da UniverCidade. Mas qualquer louvor literário que eu faça a Paulo Mercadante não nasce da afeição. Eu já lia e admirava o grande escritor muito antes de conhecê-lo em pessoa, e foi essa admiração que me fez procurá-lo um dia para solicitar a honra da sua amizade, que me foi generosamente concedida. Nada pois direi direi do livro que não dissesse antes de ser amigo do autor.

A palavra “clássico” está bem gasta, mas não há outra para qualificar “A Consciência Conservadora”. É um clássico dos estudos brasileiros, não só pelas suas qualidades de estilo, que valem as de um Oliveira Martins, mas pela facilidade genial com que apreende uma das constantes fundamentais da vida nacional e torna transparente a equação por trás de alguns mistérios da nossa política.

Sua tese central, sustentada numa rica profusão de argumentos e provas, pode ser resumida em três proposições:

1. A mentalidade conservadora em geral, tal como se delineia numa tradição que vem de Edmund Burke a Russel Kirk, define-se pelo senso da continuidade temporal, pela ojeriza às súbitas mutações revolucionárias, pelo desejo de preservar a integridade do legado civilizacional por baixo das lutas e traumatismos ideológicos de cada momento histórico.

2. No Brasil, essa mentalidade adquire uma nuance peculiar, que a diferencia de todos os conservadorismos conhecidos no mundo. É que entre nós ela se instaura e se mantém por meio de uma estratégia de conciliação que, no afã de evitar as rupturas, tenta harmonizar até mesmo o incompatível. O caso mais flagrante, entre mil outros citados no livro, é a quase candura com que os mentores da nossa independência adaptaram a ideologia do liberal-capitalismo às exigências da economia escravagista, em contraste com os americanos que não hesitaram em se matar nos campos de batalha para afirmar a preponderância de um dos lados.

3. A conciliação a todo preço, estando na base da unidade nacional, é a origem das venturas e desventuras do conservadorismo brasileiro. De um lado, ela permitiu que o país atravessasse mudanças profundas com pouquíssimo dispêndio de sangue humano. De outro, a acomodação pragmática aos impulsos desencontrados rebaixa o valor das idéias, degradando-as a meros pretextos para os arranjos de interesses, dessensibilizando as inteligências para a diferença entre a verdade e o erro, infectando toda a cultura nacional com o vírus do fingimento e sedimentando, de tempos em tempos, o “compromisso da banalidade” como fórmula mágica para a solução aparente de problemas que, por baixo dos sorrisos do establishment, conservam toda a sua carga explosiva.

A tese é imbatível. Sua veracidade reaparece agora, da maneira mais patente, na corrida geral dos “direitistas” para aderir a um partido que chegou ao poder prometendo exclui-los para sempre da arena política. E como não notar a ânsia de conciliações impossíveis num governo que quer ao mesmo tempo reprimir o narcotráfico e continuar amiguinho das Farc, harmonizando a lei e o crime? O “conservadorismo” brasileiro, tal como o descreve Mercadante, não é uma filosofia política, não é nem mesmo uma ideologia: é uma atitude — ou vício — do espírito, que, fugindo aos confrontos, foge à realidade. E que o faz, não raro, camuflando em efusões de triunfalismo retórico a sua impotência de agir. Direita e esquerda no Brasil são, nesse sentido, igualmente “conservadoras”.

O anseio da unidade divina, nostalgia da coincidentia oppositorum, já havia sido notado por Hermann Keyserling como uma das constantes da alma portuguesa. Mas os portugueses nunca acreditaram que a paz entre o lobo e o cordeiro pudesse ser realizada neste mundo. Nunca confundiram a esperança apocalíptica com a fé em promessas autocontraditórias de politicos espertalhões. O livro de Paulo Mercadante relata a degradação de um símbolo metafísico em miúda acomodação de mentiras. Nós transformamos a saudade celeste dos portugueses em aposta mundana na quadratura do círculo.

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Eric Voegelin foi um dos maiores filósofos do século XX. Sua obra “Order and History”, em cinco volumes, sintetiza e ordena numa reinterpretação global da história uma vastidão de conhecimentos quase inimaginável, das inscrições egípcias até as últimas novidades do direito, da economia e da lingüística. Dá de dez a zero em Hegel, Spengler e Toynbee somados. De origem pobre, Voegelin passou fome para estudar. Continuou homem simples, deslocado em ambientes chiques. No auge da glória acadêmica, usava ternos surrados, fumava charutos mata-rato e não tinha a menor classe no consumo de vinhos: bebia o bom e o ruim, incapaz de distingui-los, caindo de sono, vexaminosamente, ao fim do primeiro copo. Não raro esquecia-se de cortar as unhas, amareladas de fumo. Era, diziam seus confrades, “um aristocrata intelectual com gostos proletários”.

Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do maior país da América Latina, nasceu pobre e, ao longo de uma carreira de sucessos políticos espetaculares, foi mudando de hábitos. Aprendeu a apreciar bons vinhos, a selecionar os melhores charutos, a aparecer em público de unhas polidas, envergando ternos Armani, idêntico em tudo a um ricaço de nascença. No auge da glória mundana, gaba-se de não saber falar inglês, mas de seus discursos em português nada sobra exceto os erros de gramática. É um proleta intelectual com gostos aristocráticos.

Há muitos estilos de um pé-rapado subir na vida. Cada um, à medida que ascende na escala social, vai colhendo os bens que, no seu tempo de pobre, lhe pareciam os mais desejáveis. E cada um, vitorioso, tem em torno os admiradores que o merecem.

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