Olavo de Carvalho


O Globo, 27 de outubro de 2001

Uma breve pesquisa entre os intelectuais de meia-idade com maior destaque na academia e na imprensa bastará para mostrar que, na maioria deles, as idéias atuais não diferem substancialmente das crenças de juventude, subscritas no entusiasmo de filiações políticas assumidas nos seus tempos de movimento estudantil. As mudanças, quando as há, são adjetivas.

A vida intelectual neste país ainda consiste sobretudo em legitimar retroativamente, com artifícios da idade madura, uma aposta juvenil feita às cegas, irracionalmente e com portentoso desconhecimento do assunto. A singular ausência de evolução pessoal, apresentada às vezes como louvável “coerência ideológica”, faz com que a biografia dessas pessoas, às vezes repleta de acontecimentos exteriores, seja notavelmente desprovida de tensão espiritual. O reconhecimento do direito à divergência, nessas condições, resume-se a uma ostentação de polidez sem nenhum contato existencial com a mente do interlocutor.

Até a “dialética”, da qual tantos reclamam, reduz-se aí a mero adestramento mecânico pela exposição epidérmica a contradições menores, domesticadas de antemão, incapazes de exercer qualquer efeito vivificante ou até de serem percebidas como um problema real. O resultado é uma vida intelectual que patina em falso, recaindo ciclicamente nos mesmos lugares-comuns de inocuidade já mil vezes comprovada.

O exemplo mais contundente é dado pela sucessão de tentativas de formular doutrinalmente um nacionalismo brasileiro. O sucesso de um nacionalismo militante depende de duas coisas. Primeiro, ele tem de ser a expressão consciente e elaborada de valores positivos em circulação no tecido mesmo da vida de um povo. Segundo, ele tem de ser um diagnóstico adequado dos obstáculos que se oponham, seja à plena realização política desses valores no plano interno, seja à sua projeção internacional. Nossos nacionalismos têm falhado deploravelmente em atender a essas duas condições.

À última, porque as doutrinas gerais assumidas na juventude já trazem um diagnóstico prévio dos males do mundo, só restando à variante nacionalista a tarefa de adaptá-lo mecanicamente às condições locais observadas, submetidas assim a um recorte automático e previsível que torna qualquer um cego, a priori, para tudo o que divirja da expectativa adotada.

À primeira, porque entre essas doutrinas se destaca em prestígio aquela que recomenda desmascarar sempre os valores positivos como artifícios ideológicos da classe dominante, não restando na mão do doutrinário nacionalista, portanto, senão os valores opositivos e de revolta que, longe de enaltecer o espírito da nação, só fazem reiterar, com obsessão masoquista, tudo aquilo que ela odeia em si mesma.

Não é de espantar que esse nacionalismo às avessas busque então alívio no apego a um resíduo de subvalores mesquinhos e provincianos que, por serem “populares”, podem ser preservados da crítica ideológica e celebrados acima de toda medida do razoável, fazendo de vulgares sambistas de rádio os equivalentes nacionais de Bach e Haendel, enaltecendo o esculacho macunaímico como a versão local da ética heróica, e — last but not least — tomando como expressões autênticas de religiosidade as mais grosseiras superstições e simulacros.

Talvez mais ainda que o negativismo explícito, essa exaltação do feio, do vulgar e do estúpido exerce um efeito paralisante sobre as energias criadoras que pudessem restar no fundo da alma aviltada de um povo cuja vergonha de si mesmo já chega ao paroxismo da total auto-abjuração.

Acessos periódicos de ufanismo fingido, por ocasião de eventos esportivos perfeitamente idiotas ou da destruição de algum político apontado à execração popular como bode expiatório, podem restaurar por instantes um sentido aparente de unidade, mas atestam, acima de tudo, uma baixeza de sentimentos sobre a qual só um pateta imaginaria poder erigir um nacionalismo psicologicamente verdadeiro e politicamente funcional.

Resta, é claro, o subterfúgio da negação projetiva: exorcizar o sentimento de desprezo e de ódio a nós mesmos, projetando-o sobre um povo que, por ter autêntico orgulho nacional e amor às suas realizações históricas, ergue-se diante de nós, triunfante e autoconsciente, como o emblema vivo do nosso fracasso, da nossa humilhação, da nossa absurdidade.

Mas não é significativo que a mesma corrente ideológica que abomina os símbolos do american way of life, cobrindo de vaias a execução de “God bless America”, empenhe-se com idêntica paixão iconoclasta em destruir os nossos próprios símbolos nacionais, cuspindo no vulto dos heróis e amaldiçoando até o descobrimento do Brasil? Não é significativo que o clamor de ódio à bandeira americana venha da mesma ala que se baba de gozo insano quando descobre um pretexto para enlamear a memória do maior dos nossos líderes militares? Não é significativo que essa mesma militância, sem deixar de apregoar-se nacionalista, aceite dinheiro de fundações americanas para desmoralizar o Brasil como “país racista” e erradicar da memória nacional a tradição gilbertofreyreana da cultura miscigenada, a única tentativa séria que já se fez para formular um nacionalismo a partir de uma consciência aprofundada da nossa identidade histórica?

Somente um povo doente, louco, fora de si, imaginaria poder construir um nacionalismo com base no ódio a si mesmo, mal compensado por um ódio maior ainda a um país estrangeiro.

Mas, na verdade, o povo brasileiro está longe disso. Ele segue sua vida e, na lida diária, conserva a confiança instintiva que as pessoas normais têm nos valores positivos. Só de maneira esporádica e periférica ele participa do drama acima descrito, quando por acaso abre um jornal, liga a TV e depara com um intelectual despejando bile.

Pois esse é, essencialmente, um drama dos intelectuais. A imagem do Brasil que se discute nas academias e na mídia não tem nada a ver com o Brasil onde vivem os brasileiros: ela é apenas a gigantesca autoprojeção de uma casta enlouquecida de ambição, envenenada de frustrações, e no fundo bem consciente, dolorosamente consciente da completa futilidade da sua existência.

Se, em vez de gastar uma década em expurgos rituais de políticos corruptos — uma raça que se multiplica na proporção geométrica da proliferação dos discursos “éticos” — tivéssemos feito uma limpeza geral nas nossas cavalariças intelectuais, o Brasil hoje estaria mais arejado e mais saudável. Mas isso seria trabalho para várias dúzias de Hércules.

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