Olavo de Carvalho

O Globo, 23 de junho de 2002

Com regularidade quase infalível, os luminares da cultura nacional que critico em meus artigos respondem-me numa linguagem em que abundam menções a fezes e urina, não raro também a vômito, pus e saliva. Já assinalei esse padrão repetitivo na quarta edição de “O imbecil coletivo”, em 1998, e os novos exemplos que se multiplicaram desde então não fizeram senão enfatizar a constância estatística do fenômeno.

A recorrência obsessiva de tão torpe cacoete estilístico é índice sociologicamente confiável de uma propensão mental comum a todo esse grupo de pessoas: a tendência incoercível de reagir às minhas palavras antes mediante uma agitação confusa de sensações ruins do que por qualquer elaboração intelectual capaz de produzir ao menos um esboço de argumento.

É significativo que, logo após exibir com tão cândido despudor o miserável estado em que a leitura de minhas críticas os deixou, essas criaturas passem a me rotular de furioso, hidrófobo, belicoso e outras coisas do gênero. Quase posso vê-las, trêmulas de revolta, saltitando nervosamente como sagüis alucinados, fuzilando-me com os olhos, apontando-me com o dedo e denunciando-me umas às outras: “É raivoso! É raivoso!”

Não é de espantar que, em tamanho alvoroço, acabem escrevendo mal, atropelando a lógica, o bom senso e o bom gosto. O mais recente exemplar da espécie, professor Rubem Alves, é talvez o mais deplorável, tal o estado de perturbação em que a leitura do meu artigo da semana passada lançou o seu intelecto. Em nota divulgada dois dias depois, o professor, após as menções de praxe às funções excretivas do corpo humano, entrava na parte, digamos, inodora da argumentação.

Apelava então à autoridade de Descartes para passar-me um pito filosófico e condenar a falta de precaução crítica com que, ao deparar na internet com um estúpido paralelo entre Lula e Abraham Lincoln, assinado por ele, eu atribuíra apressadamente sua autoria àquele que o assinava. De fato, como aceitar, sem exame, que uma aberração daquelas, coisa mesmo de patife, pudesse ter sido escrita pelo autor de “O que é religião?”, homem de talento insigne, professor emérito da Unicamp? Para reparar tamanha injustiça, só restava ao ofendido tomar logo uma medida drástica: informar ao mundo que o autor da patifaria tinha sido… ele mesmo! Foi a acusação mais maravilhosa que alguém já me fez: a de imputar levianamente a autoria de um escrito àquele que, no instante mesmo em que me acusava disso, confessava ser de fato o autor da coisa!

Mais adiante, protestando contra minha afirmação de que ele fazia demagogia de cátedra, o homem alegava que, aposentado, não tinha mais cátedra nenhuma, ficando provada a impossibilidade do delito por falta da arma do crime. Dito isto, informava, de passagem, que o escrito demagógico fora produzido por ele doze anos antes, isto é: no tempo em que tinha cátedra. Naquela cabeça de pedagogo, portanto, a supressão do instrumento após consumado o ato provava que o ato não poderia ter-se consumado antes de suprimido o instrumento.

Diante disso, avaliando os temíveis padecimentos que a lógica peculiar do grande educador podia ter imposto aos cérebros de seus alunos, não consegui reprimir um suspiro de alívio pelo fato de que o cidadão tivesse finalmente se aposentado.

Mas, no meio da confusão, admito, o professor inseria uma alegação razoável: ele tinha acabado de publicar num jornal de São Paulo um artigo de crítica ao candidato do PT, não podendo portanto ser acusado de fazer propaganda eleitoral em favor dele.

Com o maior prazer retiro, pois, minha acusação de que o professor Rubem Alves esteja mentindo em favor de Lula agora. Troco-a, sem regateios, pela de haver feito o mesmo doze anos atrás e de permitir que, na ausência de um desmentido explícito, a intrujice continue circulando e convencendo os incautos de que Lula é um novo Abraham Lincoln.

Ter sido produzida há tanto tempo não atenua, aliás, em nada a gravidade dessa tentativa artificiosa de embelezar a incultura do candidato petista, pois não me consta que na época Lula fosse mais culto do que é hoje. Se o emérito quisesse mesmo impedir que seu desatinado texto servisse tardiamente à propaganda de uma causa que ele já não subscreve, bastaria para isso uma confissão franca: “Menti em favor de Lula e hoje me arrependo.” Se, em vez de fazer o mais simples, o emérito prefere investir contra mim de Melanie Klein em punho, isto só denota aquele excesso de amor ao próprio umbigo, que leva o mentiroso, quando pego em flagrante, a defender sua velha mentira com ciúme atávico e rancoroso, como se fosse um tesouro, em vez de aproveitar a oportunidade de libertar-se dela para sempre.

Tanto é assim que, lendo meu artigo, ele o achou repleto de louvores a mim próprio, quando na verdade a única coisa que eu ali disse em meu favor foi que jamais descera tão baixo quanto Lula ou o demagogo de cátedra que o exaltava. Um sujeito precisa ter um conceito anormalmente elevado de si para julgar que a simples alegação de não ser tão ruim quanto ele já constitua um auto-elogio. Na verdade essa alegação não me coloca nem um pouco acima da média humana. A média humana é que está acima da tolice emérita do professor Rubem Alves.

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