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Licenças poéticas

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 30 de outubro de 2005

Desde o advento da era Lula, superamos a ditadura da língua escrita e instauramos a democracia da oralidade. A grafia das palavras conforme o ouvido de cada qual tornou-se um direito constitucional assegurado a todos os brasileiros, as regras da concordância e da regência passaram a ser determinadas pelo automatismo vocal mais acessível, e a própria coerência racional do discurso é agora medida em decibéis.

Isso não quer dizer, no entanto, que tenhamos abandonado a literatura escrita. Poucos países podem competir com o Brasil na produção de letras de raps, novelas de TV, crônicas digestivas, discursos parlamentares, slogans eleitorais inventivos e manifestos de intelectuais. Sobretudo manifestos de intelectuais, um gênero particularmente apropriado à economia socializada porque a maioria de seus praticantes não precisa escrevê-los e aliás nem lê-los, bastando assiná-los em confiança. A importância desses documentos na cultura brasileira de hoje é tal que o sujeito é reconhecido como intelectual precisamente na medida em que os assine com a devida presteza quando convocado a isso por uma causa nobre como a vitória de Hugo Chavez em referendo controlado por ele mesmo, o apoio a Fidel Castro quando ele manda três jornalistas para o paredón e mais duas dúzias para a cadeia, a libertação do narcoguerrilheiro Olivério Medina ou a sobrevivência política do sr. José Dirceu.

Em defesa deste último, ameaçado de cassação sob o argumento reacionaríssimo de que não poderia ignorar praticamente tudo o que se fazia à sua volta, alguns dos mais assíduos praticantes desse gênero literário desconhecido de Dante, de Shakespeare e de Goethe subscreveram recentemente uma peça de elevado conteúdo moral, exigindo aquelas provas materiais que no caso de Fernando Collor eles mesmos declararam dispensáveis e rejeitando a tese da legitimidade da “punição política” sem prova jurídica do crime, que eles mesmos subscreveram contra o ex-presidente e se abstiveram de rever quando a Justiça declarou que não existia mesmo prova nenhuma. A ausência de provas – assegura o manifesto no seu momento culminante — levou os denunciantes a um eufemismo, apelidando de julgamento político um processo que fere garantias constitucionais e ameaça transformar as instituições parlamentares em tribunal de exceção.” A única objeção que se pode fazer a esse argumento é que parece plagiado dos discursos de Roberto Jefferson em favor de Fernando Collor.

A eventual cassação do sr. Dirceu independentemente de sentença judicial prévia é ali declarada uma aberração sem limites, ao passo que a do sr. Jefferson em idênticas condições é por sua vez admitida ela própria como prova do crime e condenação transitada em julgado.

Não se pense porém que haja nisso alguma incongruência. Esses argumentos são integralmente fiéis aos princípios da lógica petista, aplicados, na mesma semana, contra o deputado gaúcho Onyx Lorenzoni (PFL). Este sofre processo de cassação, acusado de “falta de decoro parlamentar” por divulgar documentos secretos da CPMI dos Correios que provariam, segundo ele diz, um empréstimo ilegal do Partido dos Trabalhadores ao sr. José Dirceu. Lorenzoni desconfiou da coisa porque a quantia, R$14 mil, constava da declaração de rendimentos do partido, mas não da declaração pessoal de José Dirceu. O PT alega que não foi empréstimo, mas reembolso de adiantamento. Embora a única prova disso seja a palavra dos petistas, e embora adiantamento e reembolso também não constem da declaração do sr. José Dirceu, a alegação de inocência deste último é admitida imediatamente como prova dessa inocência e, por extensão, do crime de calúnia cometido pelo deputado Lorenzoni. Este crime, portanto, ao contrário daqueles atribuídos ao sr. José Dirceu, não precisa ser comprovado judicialmente para legitimar uma cassação de mandato.

O sr. José Dirceu, por sua vez, quando aparecia na CPI de 1993 com documentos de origem misteriosa e jamais comprovada (incluindo quebras de sigilo telefônico sem autorização judicial), não cometia nenhuma falta de decoro. Nem o fazia quando acusava sem provas um engenheiro da Odebrecht que nada sabia a respeito do crime ali investigado, nem quando lançava suspeitas temíveis sobre o então senador Roberto Campos baseado tão somente na casualidade da sua homonímia com um cidadão aliás também inocente, nem muito menos quando, para provar a presença no Parlamento de uma máquina de corrupção com as dimensões de “um Estado dentro do Estado”, apontava como sua peça-chave um determinado funcionário público que depois se verificou jamais ter existido.

Os senhores, por favor, não julguem mal os signatários do manifesto e os acusadores de Onyx Lorenzoni por essas aparentes incongruências. Se não existisse licença poética, nenhuma criação literária seria possível. Refreiem suas exigências lógicas direitistas e admitam: Tudo pela cultura.

Remodelagem

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 16 de outubro de 2005

Quando a mídia brasileira assume o lado do bem e da decência, vocês podem ter certeza: ela o faz com atraso, faz pela metade e faz misturando à causa nobre tardiamente subscrita algum novo elemento de calhordice.

A Folha de S. Paulo do dia 13 tornou-se o primeiro jornal nacional a noticiar com algum destaque o genocídio sistemático da população do Sudão pela Frente Islâmica Nacional que domina o país.

A matéria, traduzida do jornal inglês Independent , diz: “O governo da Frente Islâmica já exterminou mais de 400 mil [negros] e expulsou outros 2 milhões de suas casas.”

Para o padrão jornalístico vigente, já é demais. Romper uma década de silêncio, admitir de repente que um governo islâmico, em tempo de paz, matou dez vezes mais gente do que a guerra do Iraque, é mais que coragem: é uma gafe, uma inconfidência, um ato falho freudiano, uma traição imperdoável aos altos princípios da vigarice obrigatória.

Se todos os morticínios praticados nos últimos anos pelos governos do Sudão, da Coréia do Norte, do Vietnã, da China e de Cuba fossem noticiados, as comparações se tornariam inevitáveis, e George W. Bush, se não assumisse as feições de Madre Teresa de Calcutá, passaria ao menos a ser visto como aquilo que é: um político como os outros, nem muito bom nem muito mau. Mas com isso a demonização prioritária da política exterior americana se tornaria impossível, frustrando a missão número um da classe jornalística brasileira.

Para evitar esse risco temível, os fatos mais importantes e brutais da década tiveram de ser suprimidos. Nenhum leitor ou telespectador brasileiro ficou sabendo da liquidação da tribo montagnard no Vietnã, dos “Aquários de Pionguiangue” (o Gulag norte-coreano), do extermínio de um milhão de tibetanos pelas tropas chinesas de ocupação, do “Livro Negro da Revolução Cubana” que calcula em cem mil o número de vítimas do regime de Fidel Castro.

Anos atrás, em sucessivos e-mails que enviei ao diretor da Folha , Otávio Frias Filho, cobrei dele o oceano de notícias faltantes. Ele disse que ia pensar no caso. Vejo que pensou. O resultado está no jornal do dia 13. Mas a verdade veio profundamente alterada.

Desde logo, o genocídio aparece transfigurado em efeito de perseguição racista, e não religiosa, quando ninguém no mundo civilizado ignora que não é uma guerra de brancos contra negros e sim de muçulmanos – eles próprios negros na maioria – contra as duas comunidades religiosas minoritárias: animistas e cristãos. Principalmente contra estes últimos.

Para encobrir a motivação religiosa da violência, o repórter distorce até a palavra “arabização”, que no contexto sudanês designa a imposição da língua litúrgica do Islam como idioma nacional, e lhe dá sentido genético, incompatível com a composição étnica do Islam em geral, onde os árabes são minoria.

Mas o detalhe mais maravilhoso é a questão das culpas internacionais.

Numa visão objetiva, o país mais culpado é a China, por ser, fora do círculo islâmico, o principal fornecedor de armas para os genocidas. Em contrapartida, o mundo inteiro sabe que as maiores pressões contra a violência sudanesa partiram dos EUA, a primeira nação, aliás, a usar o termo “genocídio” para descrever o caso. Quando a ONU tirou os EUA da Comissão de Direitos Humanos, colocando em seu lugar precisamente o Sudão, o sentido cínico da mensagem foi bastante claro.

O repórter do Independent consegue inverter a realidade, fazendo dos EUA o cúmplice essencial do genocídio – sem alegar para isso outra razão exceto a de que Bush aceitou do governo sudanês informações sobre o paradeiro de bin Laden (como se ele tivesse a obrigação de recusá-las de Satanás em pessoa) –, e mencionando a China apenas de passagem, entre outros países, como se fosse um personagem menor na história.

Por fim, ele acusa pesadamente as empresas capitalistas ocidentais presentes no Sudão do crime hediondo de pagar impostos… como se imposto fosse adesão voluntária.

Agora entendo por que a Folha esperou dez anos e de repente deu a notícia atrasada. A verdade longamente suprimida foi liberada para publicação tão logo remodelada para adequar-se à mentira usual.

O leite das crianças

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 2 de outubro de 2005

Recentemente alertei aqui contra o uso abusivo de expressões como “lobby das armas” e similares, criadas para incutir no público a impressão de que a luta pelo direito aos meios de legítima defesa é empreendida a soldo de interesses bilionários vagamente perversos, enquanto o desarmamentismo vem de puros ideais brotados espontaneamente no jardim das belas almas.

Onde quer que você leia essas coisas, pode ter a certeza de que está sendo vítima de exploração da boa-fé popular.

Nunca as belas almas forneceram o nome de um só grupo financeiro por trás do antidesarmamentismo, nem poderiam fazê-lo, pelo simples fato de que não há nenhum. Em compensação, nada mais fácil do que nomear os interesses bilionários por trás do lobby desarmamentista – este sim, um verdadeiro lobby .

Outro dia, por exemplo, no Globo , o cientista político Gláucio Ari Dillon Soares, respondendo com quatro pedras na mão a um artigo antidesarmamentista do filósofo Denis Rosenfield, não só fez uso da expressão capciosa como chegou a atribuir as altas taxas de criminalidade em São Paulo, num certo período, ao que ele insinua ser o império local do “lobby das armas”.

Nada preciso responder às alegações do prof. Soares. Rosenfield dará conta delas sem a menor dificuldade. Atenho-me ao detalhe estilístico. “Lobby”, no vocabulário político, significa um conjunto orquestrado de pressões subsidiadas pelas partes interessadas. Mas a única indústria possivelmente interessada no comércio legal de armas no Brasil tem o governo como cliente principal e quase único, faltando-lhe razões para se opor ao desarmamentismo oficial. A campanha contra o confisco dos meios de defesa é uma confluência de políticos oposicionistas e de um punhado de pequenos grupos de cidadãos auto-organizados, sem nenhum respaldo financeiro considerável e em luta desigual contra a santa aliança de mega-empresas jornalísticas, fundações estrangeiras e organismos internacionais como a ONU e a Unesco.

Não existe nenhum “lobby das armas”, exceto, é claro, o dos contrabandistas, que nada têm a perder e tudo a ganhar com a proibição do comércio legal. Indiferente a esse fato, o prof. Soares joga a expressão no ar, seguro da sua eficácia psicológica automática criada por anos de repetição obsessiva, sem nem de longe tentar lhe dar alguma substância factual aliás impossível. É o procedimento-padrão da vigarice intelectual organizada, que já analisei anos atrás tomando como exemplo uns trechos da filosofante Marilena Chauí.

Mas o prof. Soares não age assim por pura maldade. Ele tem razões sérias para fazê-lo, razões do tipo que a fala popular resume na expressão “o leite das crianças”. De profissão, ele é pesquisador do Iuperj, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, vivendo das verbas dessa entidade. De onde vêm elas? Faça o leitor uma experiência. Ligue o computador, vá até a página do Google e clique o nome “Iuperj” junto com o das fundações Ford, Rockefeller, Open Society (George Soros), Carnegie e similares, financiadoras do desarmamentismo em escala mundial. Descobrirá que o instituto carioca não teria subsistido um só dia sem a ajuda dessas entidades, seja fornecida diretamente, seja através de verbas e bolsas concedidas individualmente aos pesquisadores que ali trabalham. Para atenuar essa evidência, pode-se alegar, é claro, que a parte mais substantiva do dinheiro do Iuperj não vem daí, mas do Finep. Tenha então o leitor a bondade de repetir a experiência clicando Finep e Ford, Finep e Rockefeller, etc. Verificará o óbvio: que por vias diretas ou indiretas, o dinheiro chega lá. Mesmo sem levar em conta que o Finep é órgão de um governo abertamente desarmamentista, que aliás também engorda o Iuperj por via do sempre generoso BNDES, será impossível fugir à conclusão de que, fora o dos contrabandistas, que prefere agir em silêncio, o único lobby bilionário presente no debate é o lobby anti-armas, que fornece ao prof. Soares o leite das crianças.

Sabendo das conotações sinistras adquiridas pelo termo lobby no vocabulário corrente da mídia, o prof. Soares então utiliza contra Denis Rosenfield o velho truque recomendado por Lênin para o trato com os inimigos do comunismo: “Acuse-os do que você faz. Xingue-os do que você é.”

Isso, no Brasil, é o máximo de honestidade intelectual que se pode esperar do esquerdismo acadêmico.

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