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Capitalistas cretinos

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 8 de janeiro de 2006

Com raríssimas e notórias exceções – e acredito que vocês encontrarão todas elas no Fórum da Liberdade do Rio Grande do Sul, no próximo 3 de abril –, os homens que mais lucram com o capitalismo não têm em geral a menor idéia das condições históricas, culturais e morais que tornaram isso possível. Manejam a máquina com a destreza pragmática do motorista amador que guia o carro sem saber coisa nenhuma de mecânica, muito menos dos principíos físicos do motor a explosão e menos ainda das complexas engrenagens econômico-administrativas da indústria automobilística. São usuários, não fabricantes ou técnicos. Desfrutam do equipamento, mas não sabem o que fazer quando ele quebra, muito menos como produzir outro igual quando ele se arruína completamente.

Até hoje, no mundo, nenhuma classe capitalista jamais conseguiu se organizar para abortar uma revolução socialista ou golpe fascista. A resistência a esses movimentos anticapitalistas veio sempre de intelectuais, padres, militares, estudantes, empregados de classe média e operários. Pessoas que defendiam a democracia capitalista por princípio e por amor às liberdades civis, não por expectativa de vantagens financeiras. Os capitalistas quase infalivelmente se limitaram a assistir a tudo sem entender nada, conservando ou perdendo seus bens e suas vidas com a passividade atônita de crianças sortudas ou desgraçadas, na mais clarividente das hipóteses tendo a iniciativa de fugir no último momento, raramente ajudando os combatentes no que quer que fosse e, bem ao contrário, com freqüência subsidiando os movimentos esquerdistas cuja afetação de intelectualidade exerce um fascínio irresistível sobre idiotas ricos, isto é, sobre a quase totalidade dos ricos. Nada mais generalizável do que a célebre advertência de Groucho Marx a um milionário: “Para sobreviver com a sua inteligência, só mesmo tendo muito dinheiro.”

Para piorar ainda mais as coisas, o empresário capitalista desfruta na nossa sociedade do prestígio do homem prático por excelência, do insider , do homem que sabe fazer as coisas. É uma verdade parcial. Capitalistas são ótimos para fazer dinheiro quando há uma ordem jurídica estabelecida, um regime estável, uma população imbuída de valores morais firmes e apegada a hábitos previsíveis. Eles nem sabem criar essas condições, nem sabem viver decentemente sem elas. Quando elas começam a falhar, tudo o que eles sabem fazer é sair correndo desesperados atrás do primeiro burocrata socialista que encontrem, lamber-lhe os pés como cãezinhos assustados e enchê-lo de dinheiro e favores em troca de umas migalhas de tolerância paternal ou de espréstimos em bancos oficiais, com juros escorchantes. A sabedoria dos capitalistas é patética. Mas, por uma incoercível reação humana, é justamente nessas ocasiões, quando começam a acordar às três da madrugada para confessar a si mesmos que estão morrendo de medo, que eles mais sentem necessidade de exibir durante o dia aquela pose de superioridade olímpica que aprenderam a imitar como símbolo do perfeito domínio intelectual da situação. E, como numa perfeita síndrome de Estocolmo, buscam vencer o medo mostrando afeição ao objeto que os intimida: aí ninguém segura mais seu impulso coercitivo de distribuir subsídios a partidos de esquerda e de aparecer sorrindo nas colunas sociais ao lado de algum comunista sebento ou de alguma mocréia enragée. Se, nessas horas, você tenta avisá-los de que correm algum perigo, mais que depressa eles lhe dão um chute no traseiro, tentando exorcisar as más notícias por meio da eliminação do mensageiro. Mas não fazem isso em privado. Convocam, para assistir ao lance, a platéia inteira de seus novos mentores e, com um inconfundível sorriso amarelo, gritam aos quatro ventos: “Estão vendo? Não tenho medo do socialismo. Não tenho medo do socialismo. Não tenho medo do socialismo.”

Se você é um empresário capitalista e acha esta descrição demasiado cruel, é porque ela se aplica literalmente ao seu caso. Se, ao contrário, você acha que ela é realista e exata, é porque justamente você já está começando a ficar um pouco diferente dela. Seu lugar talvez seja no Fórum da Liberdade.

Consolo geral

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 27 de novembro de 2005

O Prêmio Imbecil Coletivo, que instituí em 1995 e distribuí generosamente a escritores, professores, artistas e jornalistas brasileiros até 2001, foi suspenso no ano seguinte por excesso de concorrentes. Para fazer justiça seria preciso atribuí-lo ao conjunto dos intelectuais públicos deste país, o que só pode ser feito em intenção e não de corpo presente. O cobiçado galardão tornou-se então uma entidade metafísica, um a priori kantiano que precede a manifestação material das opiniões e já vem anexado à simples intenção de dizer o que quer que seja, mesmo quando não se chegue a dizer coisa alguma.

A comissão julgadora, constituída da minha pessoa, deu-se por derrotada ante a avalanche de panegíricos ao candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Proclamando a identidade absoluta de estupidez pessoal e sabedoria infusa, esses borbulhos de entusiasmo eleitoral transcendiam infinitamente o fenômeno descrito no meu livro, que pressupunha ao menos uma certa precaução de salvar as aparências. A partir do momento em que a ojeriza ao conhecimento foi assumida abertamente, o Imbecil Coletivo passou da potência ao ato e tornou-se o estado natural de toda a classe falante, não tendo mais motivo para ser premiado.

Contribuiu também para a minha decisão o desencanto, a mágoa profunda que se apossou da minha alma diante de tantas insinuações pérfidas de que eu havia recebido propinas do dr. Emir Sader para premiá-lo todos os anos. O próprio dr. Sader piorou formidavelmente a situação quando escreveu que eu não existia, o que foi interpretado pelos maliciosos como tentativa desesperada de camuflar o suborno negando a materialidade física do subornado.

Essas coisas acabam com o ânimo da gente. Um dia acordei com a pá virada e dei um fim no raio do Prêmio.

No entanto, nem tudo está perdido.

Extinto o certame, o vácuo na alma dos saudosos pode agora ser preenchido vantajosamente por um desses diplomas dos cursos especiais que a Universidade de São Paulo planeja dar aos membros do MST. A posse de um desses objetos tubulares, não totalmente desprovidos de sex appeal para senhoras carentes e gays solitários, dará ao seu portador, mesmo imune a esses encantos suplementares, as honras do título superior sem necessidade de exame escrito, tendo em vista o reconhecimento, por parte daquela instituição de ensino, do direito de todos ao analfabetismo doutoral, até aqui só reservado a uns poucos privilegiados como o sr. presidente da República e o seu ministro da – como era mesmo o nome daquilo? – Cultura.

É o equivalente perfeito do Prêmio, com a vantagem adicional de não ser conferido desde fora, por um palpiteiro leigo como eu, mas desde a origem, desde a raiz, desde a fonte e centro produtor do fenômeno em si, do qual o meu livro não deu senão uma imagem apagada, distante e evanescente como as sombras na caverna de Platão. Fora, névoas da imitação barata! Do fundo das brumas da ilusão já se ergue o Sol da estupidez genuína, que por fim vai brilhar para todos.

Alegrai-vos, pois, candidatos a intelectuais ativistas do Terceiro Mundo! Nada tendes a perder exceto a vergonha na cara, propriedade privada que, segundo o ideal socialista, já abolistes em pensamento há muito tempo.

Critério certeiro

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 13 de novembro de 2005

Mais de uma vez aludi aqui à máxima leninista “Acuse-os do que você faz, xingue-os do que você é.” Ela fornece um critério certeiro para discernir a lógica de muitas manobras estratégicas e táticas do esquerdismo organizado: sempre que os partidos de esquerda lançam uma campanha de denúncias ferozes contra algum delito real ou imaginário, é porque eles mesmos, naquele preciso instante, estão preparando ou praticando outro crime da mesma espécie e de dimensões incalculavelmente maiores. Isso é assim desde os tempos do próprio Lênin, e o sr. Fidel Castro o ilustra novamente ao tentar alarmar a platéia quanto a uma impossível invasão americana do continente no instante mesmo em que vai preparando um ataque à Colômbia. Igualmente pedagógico é o timing dos esquerdistas chiques do Partido Democrata americano, que armam um escarcéu dos diabos acusando o vice-presidente de vazar informações sobre uma inócua agente da CIA ao mesmo tempo que abrem um rombo na segurança nacional revelando os locais onde o Exército guarda importantes terroristas presos.

Mas os exemplos locais não são menos edificantes.

O começo da década de 90, o tempo da “campanha pela ética na política”, da gritaria anti-Collor e das CPIs em que o sr. José Dirceu brilhava diagnosticando conspirações e golpes de Estado em cada intercâmbio chinfrim de propinas e favores, quase sempre aliás inexistentes, foi precisamente a época em que ele próprio e seus companheiros de cúpula do PT começavam a montar, por trás da cena, o mais vasto empreendimento de ladroagem política já observado neste país.

Imaginar que fosse tudo coincidência, que uma coisa não tivesse nada a ver com a outra, que o sr. José Dirceu fosse apenas um caso de personalidade dupla, passando do papel de Eliott Ness ao de Al Capone sem nem se dar conta da transformação, é abusar do direito à estupidez. É claro que a campanha de ódio moralizante foi, desde o início, parte integrante da estratégia criminosa, como a camuflagem faz parte de uma operação de guerrilhas. Por isso não tem cabimento dizer que a roubalheira do Mensalão é um desvio, uma ruptura com os belos ideais petistas do passado. Os belos ideais eram instrumentos da roubalheira, e o mais óbvio sinal disso era que jamais se traduziam em atos de virtude mas somente em discursos histéricos contra os pecados alheios, sem ter nem ao menos a prudência de distinguir os verdadeiros dos inventados.

Na época, tendo aprendido com um sábio guru que não existe genuíno ódio ao mal quando não acompanhado do correspondente amor ao bem, não me deixei enganar pelas intenções nominalmente elevadas da retórica de acusação, incomparavelmente mais brutal e implacável do que as tímidas especulações, entremeadas de atenuantes lisonjeiros, que hoje o PT rotula hipocritamente de “massacre”. Afirmei resolutamente que o abuso malicioso do apelo à ética não poderia senão embotar ainda mais o senso moral da nação, prenunciando devassidões perto das quais os Anões do Orçamento, já então pequenos demais para o barulho que se fazia em torno deles, se tornariam miniaturas de anões num bolo de aniversário. Fundado na análise das discussões internas do PT lidas à luz da estratégia gramsciana que as orientava, meu prognóstico estritamente objetivo foi desprezado, com sorrisos de superioridade, por todos os sabichões da mídia, do empresariado, do judiciário e até das Forças Armadas a quem tive a ocasião de apresentá-lo. Se lhe tivessem prestado atenção, muitas perdas e humilhações teriam sido poupadas a este país já esgotado. Não hesito em dizer que a indiferença dessas pessoas foi irresponsável, covarde e criminosa. Mas seria tolice esperar que se arrependessem. A presteza solícita com que hoje aceitam as desculpas mais esfarrapadas para esquivar-se ao dever de investigar a sério a denúncia da ajuda ilegal de Cuba à candidatura Lula mostra que a passagem do tempo não lhes ensinou nada nem lhes ensinará jamais coisa alguma. Nesse sentido, os Dirceus, os Lulas e tutti quanti podem dormir tranquilos. Nada lhes acontecerá. É, no fundo, uma simples questão de justiça. Quem poderia ter tido a autoridade moral para puni-los tratou de vendê-la por pequenas vantagens, às vezes apenas por uns minutos de sossego anestésico, longe da própria consciência. Um povo que tem horror à verdade merece ser enganado indefinidamente.

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