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Mentindo com candura

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de dezembro de 2011

No Brasil, a onda de autodestruição mental que descrevi em “O império do clichê” acabou por engolfar praticamente toda a intelectualidade esquerdista ao longo do processo mesmo da conquista da hegemonia e do poder pelos partidos de esquerda, o sucesso político reforçando a loucura ao mesmo tempo que se beneficiava dela.

Há anos não leio uma só linha escrita por intelectual de esquerda neste país onde não note esse fenômeno.

Um exemplo entre milhares é o artigo recém-espalhado na internet pelo sr. Caio Navarro de Toledo, professor (felizmente aposentado) da Unicamp, no qual ele informa a um estupefato mundo que nada vai dizer contra minhas opiniões, apenas expressar sua indignação ante o fato de que algumas delas tenham saído nas páginas da Folha de S. Paulo. O espírito com que ele redigiu essa coisa revela-se sobretudo em três pontos:

(1) Ele inverte a fórmula célebre de Voltaire: sem nem mesmo sugerir em quê e por que não concorda com o que eu disse, nega apenas o meu direito de dizê-lo.

(2) Da sua recusa de argumentar ele deduz que quem não tem argumentos sou eu. Tira a roupa e, olhando-se no espelho, jura que estou pelado.

(3) A renúncia a provar o que diz mostra que ele não deseja persuadir ninguém, apenas reforçar a atitude de quem já está persuadido, isto é, dos seus companheiros de militância. Como, no mesmo instante, ele me acusa de falta de argumentos, e obviamente não o faria caso se sentisse culpado de cometer o mesmo delito, torna-se claro que ele considera esse apelo à solidariedade do grupo não só um argumento, mas um argumento probante que prescinde de razões suplementares. Fica aí evidenciado que, na cabeça do sr. Toledo, o sentimento de unidade grupal é um critério de veracidade superior aos modos consagrados de demonstração lógica e documentação factual. É um exemplo didático do que expus no artigo anterior.

Para chegar a isso, no entanto, ele começa por um longo rodeio em que, após evocar a tradição de boas relações entre a Folha de S. Paulo e os “intelectuais críticos” (eufemismo que quer dizer “comunistas”), relembra os protestos furiosos desencadeados por um editorial daquele jornal (o mesmo referido no meu artigo “Todo es igual, nada es peor”), que, de passagem, ousava mencionar a diferença dos graus respectivos de brutalidade entre o nosso regime militar e outras ditaduras da época, chegando à conclusão de que, ao lado delas, a brasileira não tinha passado de uma “ditabranda”. Foi esta palavra que desencadeou a ira dos manifestantes. Omitindo-se, com astuciosa modéstia, de contar que ele mesmo organizou os protestos, o prof. Toledo tenta dar a impressão de que surgiram espontaneamente de um treco que ele chamaria “opinião nacional”, mas que consistiu apenas na opinião dos seus cumpinchas, convocados às pressas para dar uma lição exemplar no atrevido jornal que ousava desobedecê-los quando já o consideravam propriedade sua.

Por que esses comunistas, já que segundo o próprio sr. Toledo tinham tanto espaço aberto na Folha, não se contentaram com opor ao editorial uma réplica escrita, em espaço equivalente ao da argumentação abominada? Por que, em vez disso, armaram um escarcéu dos diabos, inundando a redação com cartas de protesto, fazendo circular mais um “manifesto de intelectuais”, promovendo uma gritaria de rua e uma campanha de boicote que resultou, ainda segundo o sr. Toledo, na saída de vários articulistas e até no cancelamento de algumas assinaturas do jornal? Por que fizeram todo esse barulho para constestar uma palavra, uma só palavra?

É simples: o que aquela palavra expressava era uma realidade incontestável, irrespondível. Ninguém, no uso normal dos seus neurônios, pode negar que em matéria de violência assassina o governo militar do Brasil, tendo matado três centenas de terroristas e seus colaboradores, nunca foi páreo para a ditadura cubana (cem mil mortos) e muito menos para a chinesa (76 milhões de mortos), isto é, para os dois governos genocidas que orientaram, armaram, subsidiaram, treinaram e ajudaram os comunistas brasileiros empenhados na derrubada do regime.

Diante de tamanha obviedade, só restava à patota enragée apelar a dois recursos desesperados, fingindo não perceber que eram contraditórios entre si: negar a importância dos números e ao mesmo tempo tentar vencer pela força do número.

Da primeira dessas operações incumbiu-se a sra. Maria Vitória Benevides, com os resultados grotescos que assinalei no artigo anterior.

Da segunda, o próprio sr. Toledo, como quem acreditasse que multiplicar por centenas de vozes uma alegação insensata faria dela um argumento racional.

Ora, se ao reclamar agora contra a publicação de um artigo meu naquele jornal, o sr. Toledo se dispensa de fornecer qualquer argumento contra o que eu disse ali, e em vez disso procura apenas instigar um sentimento de ódio grupal, torna-se igualmente clara a razão pela qual, em vez de entrar logo no assunto, ele preferiu relembrar antes o episódio da punição que infligiu à Folha. É, sem a menor sombra de dúvida, uma advertência ao sr. Frias: tire logo esse reacionário do seu rol de articulistas, ou então armaremos o mesmo rolo de novo.

Um sujeito que se esquiva de argumentar contra o que um articulista disse, mas em vez disso recorre à força do grupo e à chantagem intimidatória, não deveria em seguida proclamar que o articulista, e não ele próprio, carece de argumentos. Se o faz, é com toda a evidência um fingido, um mentiroso cínico.

Com um atenuante: ele não sabe que é nada disso. Como aconteceu com todos os “intelectuais críticos” neste país, nele a mentira e o fingimento já se tornaram naturais, costumeiros, quase inocentes e cândidos.

Barbárie mental

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 15 de fevereiro de 2007

Outro dia, em discussão na internet, um rapaz que de vez em quando escreve artigos políticos assegurou que todos os santos e profetas da cristandade só queriam poder e dinheiro, que Jesus nasceu de um adultério e que os judeus são um povo de ladrões.

Fingindo não notar o quanto essas afirmações eram ofensivas e até passíveis de processo criminal, o indivíduo ainda teve o desplante de se fazer de donzela magoada quando lhe respondi com os poucos palavrões que me ocorreram no momento, aos quais eu acrescentaria ainda uma dúzia depois de refletir mais demoradamente na conduta do referido e medir a extensão da sua canalhice.

Para completar, o sujeito se dispensava de oferecer qualquer prova das três acusações além do fato de que as lera em Voltaire, e em seguida jogava sobre os cristãos e judeus o encargo de refutá-las com fatos e argumentos, proclamando que seriam culpados de desonestidade intelectual se não o fizessem. Como se pode responder educadamente a um ataque preconceituoso e odiento reforçado por uma cínica inversão do ônus da prova? Os palavrões, segundo entendo, foram inventados precisamente para as situações em que uma resposta delicada seria cumplicidade com o intolerável.

Por incrível que pareça, alguns estudantes correram em socorro do insolente, consolando-o dos maus tratos sofridos da parte de seu desbocado opositor, tão carente de “argumentos”.

No Brasil de hoje é assim: qualquer acusação cretina jogada ao ar sem o menor respaldo se arroga a dignidade intelectual de um “argumento” e exige resposta cortês daqueles cujos sentimentos acaba de ferir da maneira mais impiedosa e crua. Incitando a repulsa e ao mesmo tempo sufocando sua expressão, esse ardil prende o interlocutor numa camisa-de-força verbal, usando maliciosamente as regras mesmas do debate educado  como peças de uma armadilha psicológica maliciosa e sádica. É um truque inventado pela propaganda nazista e comunista, mas, “nêfte paíf”, tornou-se procedimento usual nas discussões públicas hoje em dia.

O episódio, irrevelante em si, é bastante significativo do presente estado de barbárie intelectual. Falar em “crise cultural”, nessas circunstâncias, é eufemismo. Na época em que um sociopata adolescente pode fazer em pedaços o corpo de um menino e ainda ser defendido como vítima do capitalismo, o discernimento elementar do certo e do errado já se tornou uma operação complexa demais para os cérebros dos brasileiros. Nas pequenas como nas grandes questões, vigora a mesma estupidez grandiloqüente, a mesma brutalidade mental ornada de belos pretextos.

***

Por falar nisso, o general Andrade Nery reagiu ao meu artigo da semana passada espalhando pela internet um protesto furibundo, repleto de auto-elogios grotescos e desconversas patéticas. Minha pergunta continua sem resposta: desde que começou a onda de indenizações a terroristas, o general, no meio da sua constante pregação anti-americana tão doce aos ouvidos da esquerda, disse uma só palavra em favor das famílias de vítimas do terrorismo? Ou evitou esse assunto desagradável, para não dividir o front chavista?

Abaixo a verdade

Olavo de Carvalho


O Globo, 26 de fevereiro de 2005

O típico charlatão acadêmico contemporâneo pode ser reconhecido à distância por uma determinada frase que, com variações formais mínimas, brota dos seus lábios com a uniformidade infalível com que os zurros saem da boca dos asnos. A frase é a seguinte: “A verdade é fascista.” No entender desse tipo de criaturas, só é libertário e democrático negar à inteligência do cidadão comum o dom do conhecimento, reduzi-la a um mecanismo cego que, não podendo orientar-se por si mesmo na realidade, deve ceder docilmente às injunções, seduções e palavras-de-ordem do charlatanismo acadêmico.

Tão drástica e orwelliana inversão das relações normais entre liberdade e autoritarismo não poderia sustentar-se sem falsificar previamente os termos mesmos usados para formulá-la. A associação difamatória entre o fascismo e a fé no poder de alcançar a verdade é, com efeito, uma falsificação em toda a linha, pois o fascismo e o nazismo foram, desde o início, orgulhosamente relativistas e hostis a toda pretensão de conhecimento objetivo. Entre os inumeráveis documentos históricos que o comprovam, escolho a esmo a seguinte declaração com que Benito Mussolini, em 1924, definiu a origem filosófica do espírito fascista:

“Se o relativismo significa o desprezo às categorias fixas e às pessoas que se proclamam portadoras de uma verdade objetiva, imortal, não há nada mais relativista que nossas atitudes e nossas atividades. Do fato de que as ideologias são de igual valor, de que as ideologias não passam de ficção, o relativista moderno infere que cada um tem o direito de criar para si uma ideologia própria, e de buscar afirmá-la com toda a energia de que seja capaz.”

Quando, portanto, o leitor ouvir mais um guru universitário propor o relativismo como alternativa ao fascismo, saiba que está sendo induzido ao fascismo por meio de um golpe de jiu-jitsu verbal.

***

Mas não há nada de estranho nesse fenômeno, porque o traço mais geral e constante da mentalidade revolucionária, desde o seu surgimento no século XVIII, é uma mendacidade em grau quase inimaginável para seus adversários conservadores.

Aí também reside uma das razões do seu sucesso fácil, porque a inteligência da média humana é bem capaz de identificar mentiras esporádicas, mas fica desamparada ante um assédio geral de mentiras incessantemente renovadas.

A má-fé revolucionária difere da mentira comum porque esta tem uma finalidade prática ou psicológica imediata para além da qual conserva, como referência de fundo, a possibilidade de um retorno à verdade. O mentiroso comum sabe que mente, sabe que o seu é um discurso de segunda mão, bom para ser usado da boca para fora mas não para orientar substantivamente a sua conduta no mundo real.

A mentira revolucionária pretende ocupar definitivamente o lugar da verdade, eliminar o senso mesmo da diferença entre verdade e mentira.

A espécie humana em geral sabe que vive num mundo determinado pela verdade – pela verdade do seu passado, pela verdade da sua condição corporal e mortal, pela verdade da situação objetiva na qual suas ambições devem ser severamente limitadas.

É contra isso que se rebela o revolucionário. A verdade, para ele, é uma prisão intolerável. Ele sabe que não pode fugir dela, mas pressente que, se conseguir apagar-lhe a lembrança nas mentes de seus contemporâneos, eles não poderão fazer-lhe cobranças em nome dela, e então a situação em torno se tornará mais folgada, aumentando seu poder de ação dentro dela.

Por isso é que Voltaire ou Diderot, quando formulavam um argumento racional contra o cristianismo, sentiam menos satisfação do que quando inventavam uma mentira cabeluda contra os padres, contra o Papa ou contra o próprio Cristo. O argumento racional podia ser discutido, às vezes com vantagem para o adversário. A mentira cínica jogava sua vítima num tal estado de perplexidade, de indignação, de confusão, que o desmentido soava falso e a obrigava a explicações sem fim, dando tempo ao atacante para inventar novas e novas mentiras, divertindo-se a valer e colocando a infeliz numa posição cada vez mais vexatória e indefensável.

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