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Mário Augusto Jacobskind: mentiroso e burro

Olavo de Carvalho

Mídia Sem Máscara, 1o de novembro de 2005

Alguém me alerta para uma estupidez publicada a meu respeito no site “Portal Popular” (http://www.portalpopular.org .br/opiniao2005/varios/varios -206.htm). Vou lá e, no meio de louvações ao Che e à narcoguerrilha colombiana, encontro a patifaria: fazendo-se de ofendidíssimo, e talvez encorajado pelos esgares patéticos da “linha dura” presidencial, o sr. Mário Augusto Jacobskind anuncia que está me processando na 47ª. Vara Cível do Rio de Janeiro por havê-lo chamado de “agente secreto à serviço de Cuba” ( sic , e com crase, porca miséria). Aproveita ainda a ocasião para informar à cândida platéia:

(1) que não sou jornalista profissional, só usei indevidamente esse título até 2003, quando fui desmascarado e desisti do embuste;

(2) que muito menos sou correspondente de algum jornal brasileiro nos EUA, devendo portanto minha presença nesse país ser explicada por algum outro motivo, decerto bastante tenebroso;

(3) que deixei de usar o “título de escritor” ( sic ) por ser este um privilégio dos membros do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro que eu vinha usurpando até ser comprovado que eu não pertencia a essa entidade;

(4) que participei de um debate filosófico na USP, com argumentos inconsistentes, sendo por isso “reprovado” ( sic ) pelos professores da instituição;

(5) que escrevi ser demasiado pequeno o número de vítimas da ditadura em comparação com o tamanho da população brasileira (ou seja, que no meu entender o regime militar até que poderia ter matado mais uma meia dúzia sem que isso fizesse grande diferença).

Bem, o sr. Jacobskind provavelmente não é mesmo “agente secreto” de Cuba, nem afirmei que o fosse, muito menos que tivesse capacidade para sê-lo (minha hedionda mendacidade tem limites). Afirmei, isto sim, que trabalhou para o governo de Cuba como propagandista do regime e que continua a fazê-lo até hoje, de maneira tão constante e sistemática que deve ser classificado não como um jornalista comum e sim como um “agente de influência”, o que, para quem sabe do que se trata, não é a mesma coisa que “agente secreto”, quando mais não seja porque esta última função é necessariamente profissional e aquela pode também ser exercida, ad hoc , por um militante, simpatizante ou companheiro de viagem, com ou sem remuneração. Não sei exatamente em qual dessas categorias se encontra o sr. Jacobskind, mas não há dúvida de que ele é um agente de influência não só a serviço de Cuba como do movimento comunista latino-americano em geral. Se dois anos como editor da revista oficial cubana Prismas já não fossem comprovação suficiente, bastaria, para tirar a dúvida, saber que o referido trabalha ainda hoje para a Rádio Centenário, do Movimiento 26 de Marzo, braço político da organização terrorista Movimiento de Liberación Nacional (Tupamaros). É provável que o sr. Jacobskind só tenha dito que o chamei de agente secreto por ser isso o que, em criança, ele sonhava tornar-se quando crescesse. Infelizmente, ele não cresceu, de modo que hoje só pode realizar seu desejo por meio de projeção inversa, acusando os outros de chamá-lo daquilo que ele queria ser.

Acrescento, agora, os seguintes detalhes:

(1) Sou jornalista profissional com quase quatro décadas de exercício, registrado em 16 de setembro de 1970 a fls. 91 do Livro 25 do Serviço de Registro Profissional do Ministério do Trabalho, sócio número 3786 do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, número 8860 da Federação Nacional dos Jornalistas e número BR7699 na Faderação Internacional dos Jornalistas (Bruxelas). Quem quer que algum dia tenha negado minha condição profissional teve esses documentos esfregados no seu enxerido nariz e nunca mais se meteu a besta comigo.

(2) Estou nos EUA como correspondente do Diário do Comércio , de São Paulo, segundo contrato assinado em 1º de maio de 2005 com o diretor de redação, Moisés Rabinovici, e portador de Visto de Imprensa concedido pelo governo americano a jornalistas profissionais estrangeiros. Qualquer dúvida pode ser tirada mediante simples telefonema à redação do jornal, mas o sr. Jacobskind preferiu contornar esse extenuante trabalho por meio de uma consulta à sua própria imaginação, que lhe pareceu mais confiável.

(3) Como se pode ver em inúmeros créditos de meus artigos e trabalhos acadêmicos, nunca parei de declarar que sou escritor, pelo simples fato de que o sou realmente e de que no Brasil ainda não chegamos àquele patamar sublime de evolução social do regime a que o sr. Jacobskind serviu e serve, no qual os escritores são forçados a deixar de sê-lo por falta de uma carteirinha (v. Guillermo Cabrera Infante, “Mea Cuba”). O Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, diga-se a bem da verdade, jamais me pressionou nesse sentido, embora solicitado a isso, em vão, anos atrás, por um amiguinho do sr. Jacobskind, agora seu colega na diretoria da ABI.

(4) Na USP só tomei parte, em pessoa, de um único debate, com um tal prof. Café, o qual, como é público e notório, saiu dali torrado e moído. Nenhum outro professor da instituição deu um pio a respeito, muito menos para reclamar de precário funcionamento intelectual da torrefação (v. http://www.olavodecarvalho.org /textos/debate_usp_1.htm ). Quanto a outras discussões que eu possa ter tido com professores de lá (ou de qualquer outra universidade brasileira) através da imprensa, invariavelmente eles calaram seus respectivos bicos logo após minhas respostas, sendo eu sempre o último a falar, o que já basta para mostrar quem reprovou quem. Esses episódios estão abundantemente documentados no meu livro “O Imbecil Coletivo” e no meu site www.olavodecarvalho.org , já tendo entrado para o rol dos fatos notórios nos quais não é preciso insistir.

(5) Nunca escrevi que os trezentos esquerdistas mortos da ditadura brasileira eram um número minguado na comparação direta com a população do país, mas sim, guardadas as proporções demográficas entre Brasil e Cuba, na comparação com os dezessete mil fuzilados do regime ao qual o sr. Jacobskind empresta, dá, vende ou aluga ( chi lo sà? ) os seus talentos de usuário da língua pátria, especialmente da crase (v. http://www.olavodecarvalho.org /semana/1964.htm ). Quem, não podendo contestar essa proporção matemática, tentou falsificá-la para dar ares de maldade intolerável a uma verdade óbvia, foi o supracitado colega do sr. Jacobskind, um covardão de farda que, devidamente denunciado como farsante chinfrim, consta como tal há seis anos em aviso publicado no meu site e jamais me desmentiu (cf. http://www.olavodecarvalho.org /textos/proenca.htm).

Recomendo, pois, ao sr. Jacobskind, que, ao acusar alguém de dizer uma mentira contra a sua pessoa, evite publicar ao mesmo tempo cinco contra o acusado. Uma ou duas, com sorte, ainda poderiam passar despercebidas. Com cinco de uma vez, o queixoso tira a máscara de vítima e põe à mostra, acima de qualquer possibilidade de dúvida razoável, sua condição de litigante de má-fé. Além das orelhas de burro, naturalmente.

Relendo Nietzsche

Olavo de Carvalho

O Globo, 15 de fevereiro de 2003

Do fenômeno que denomino paralaxe conceitual — o deslocamento entre o eixo da concepção teórica e o da perspectiva existencial concreta do pensador –, os exemplos são tantos, nos últimos séculos, que não me parece exagerado ver nele o traço mais geral e permanente do pensamento moderno. As idéias tornam-se aí a racionalização ficcional com que um intelectual se esforça para camuflar, legitimar ou mesmo impor como lei universal sua inaptidão de se conhecer, de arcar com suas responsabilidades morais, de se posicionar como homem perante a vida.

Nas culturas européias ou mesmo nos EUA, esse impacto alienante é amortecido pela barreira residual da tradição cristã e clássica. Mas, num país como o Brasil, psicologicamente indefeso entre os muros de geléia de uma cultura verbosa e superficial, qualquer autor que faça algum barulho no mundo adquire as dimensões de uma potência demiúrgica, cultuada com temor reverencial. Suas mais gritantes fragilidades passam despercebidas, e qualquer tentativa de apontá-las é condenada como pretensão megalômana ou insolência blasfema.

Um caso particularmente desesperador é Friedrich Nietzsche, a quem tantos neste país veneram, talvez porque nele encontrem algo como um monumento à sua própria alienação.

Outro dia, conversando com uma amiga antropóloga, ela me lembrou que em certa época recente, na USP, ninguém no seu departamento era aceito como gente grande se não soubesse classificar na ponta da língua os fenômenos culturais em apolíneos e dionisíacos — uma distinção nietzscheana a que o livro de Ruth Benedict, “Padrões de Cultura”, dera foros de critério científico.

Vamos ver quanto vale essa distinção?

Em “A Origem da Tragédia”, Apolo, deus da luz e da ordem cósmica, é o senhor das aparências, do universo visível. Dionísio, caos e turvação, é causa e origem, é a realidade tenebrosa e fecunda por baixo do véu apolíneo. Assim diz Nietzsche, mas no mundo real as coisas às vezes são assim, às vezes não. Às vezes, é a aparência caótica dos fenômenos que oculta uma ordem profunda, a qual escapa ao comum dos mortais mas se revela aos olhos claros daqueles que Schiller denominava “filhos de Júpiter”. De fato, o contraste Apolo-Dionísio expressa, no mito grego, a tensão dinâmica entre os polos do caos e da ordem, da aparência e da realidade, em contínua rotação e intercâmbio no quadro do mundo. A compreensão de todo simbolismo mitológico ou religioso depende de um certo senso das inversões. Um símbolo, por definição, não tem sentido unívoco, podendo sempre transfigurar-se em seu contrário, conforme a esfera de ser a que se aplique num contexto dado. Por isto e só por isto tem força evocativa e geradora, não cabendo aprisionar na moldura de um conceito fixo aquilo que é antes, na feliz expressão de Susanne K. Langer, uma “matriz de intelecções possíveis”. Ao identificar de maneira estática a ordem com superfície, o caos com profundidade, Nietzsche eliminou artificialmente a tensão, congelando os opostos em papéis imutáveis. Degradou o símbolo em estereótipo. Transmutou o ouro em chumbo.

O pior é que ele cai nessa justamente no momento em que está protestando contra o racionalismo e clamando pela volta dos mitos como força renovadora da civilização. Neutralizar as inversões tensionais, prendendo os pares de opostos na grade fixa de uma correspondência biunívoca, é o suprassumo do racionalismo esterilizante. No caso, totalmente involuntário. Nietzsche simplesmente não entendia o que estava fazendo.

Abominando a dialética, preferindo à busca das sínteses a ostentação espalhafatosa das oposições estáticas, mas ao mesmo tempo querendo cavar efeitos de linguagem no vocabulário da simbólica tradicional, no qual nada pode opor-se definitivamente a nada porque tudo aí são aparências em incessante metamorfose, o que ele fez foi uma metafísica grosseiramente linear camuflada sob um manto de símbolos falsificados. E nestes o leitor então projeta as mais lindas sutilezas dialéticas que, é claro, não estão lá. Confunde o Apolo e o Dionísio do mito grego com os de Nietzsche, o símbolo com o estereótipo, e vê neste as profundidades daquele. Melhor para Nietzsche, pior para o leitor.

Mas a substancialização fetichista dos opostos é somente um dos vários cacoetes mentais que, no autor de “Zaratustra”, buscam suprir a falta de autêntica intuição filosófica. Pior é este: ele confunde a reiteração enfática de um acidente com a definição de uma essência, e então sai disparando deduções daí obtidas pela via de um conseqüencialismo furiosamente mecânico. Assim ele transforma os problemas mais banais em dilemas insolúveis que lhe parecem tragédias, sem perceber que uma tragédia fabricada na base do hiperbolismo verbal não é tragédia, é farsa.

Em “A Gaia Ciência”, após mostrar que em muito do que o homem faz está presente o instinto de sobrevivência, ele conclui que esse instinto é “a essência” (sic) do bicho homem, e então reduz todas as demais qualidades humanas a disfarces do instinto de sobrevivência. Mas esse instinto, sendo comum a todas as espécies animais, não pode ser essência de nenhuma delas em particular. Se o fosse, nas demais teria de ser mera propriedade ou acidente, o que resultaria em afirmar que só uma espécie sobrevive por instinto, as outras apenas por hábito, por acaso ou talvez por frescura. Não é preciso dizer que elas não concordam com essa tese de maneira alguma.

O melhor em Nietzche são as notas de psicologia pejorativa, que ele extrai da observação de si mesmo mas em seguida projeta, com autoconfiança adolescente, em Sócrates, em Jesus Cristo, na humanidade inteira. O ressentimento do doente contra as pessoas saudáveis é uma delas. Mas por que esse diagnóstico deveria aplicar-se antes a Sócrates, velho soldado robusto, do que ao próprio Nietzsche, paciente crônico que mal se levantava da cama?

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