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Apagando o passado

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 8 de fevereiro de 2007

“Cometeríamos a pior das infidelidades à memória de nossos mortos se consentíssemos em pagar, pelas boas relações com os militares de hoje, o preço do esquecimento dos crimes cometidos pela ditadura”, adverte o ideólogo comunista João Carlos Kfouri Quartim de Moraes.

A recíproca não é verdadeira. Para tornar-se queridinhos da revolução bolivariana, o general Andrade Nery, o brigadeiro Ferolla e outros oficiais inflados de ódio anti-americano consentem em jamais estragar a festa com menções constrangedoras às vítimas do terrorismo. Nos conclaves esquerdistas de que participam, nas publicações comunistas em que brilham, eles se derramam em sorrisos e afagos ao esquema revolucionário continental, o mesmo que ainda ontem se esmerava em matar soldados brasileiros. E nem uma recordação amarga brota do fundo de suas almas.

A soberba inflexibilidade de Quartim de Moraes não me surpreende. Ele está especialmente qualificado para humilhar seus velhos inimigos, de vez que ele próprio matou um deles. Mandante do assassinato do capitão americano Charles Chandler — alvo escolhido a esmo como símbolo do execrado “imperialismo ianque” –, o orgulhoso professor da Unicamp sabe que, na falta de realizações intelectuais, o homicídio político é uma glória curricular mais que suficiente pelos atuais critérios do establishment universitário brasileiro, os mesmos que o embaixador Roberto Abdenur denuncia como vigentes no Itamaraty.

Mas Quartim não é um caso singular. Nada mais característico dos apóstolos da igualdade do que a desigual distribuição da dignidade humana: para os “seus” mortos, honra e glória; para os do outro lado, esquecimento e desprezo, quando não o tapa na cara, o insulto dos miseráveis trezentos reais mensais oferecidos pelo governo à família do sargento Mário Kozel Filho depois de trinta anos de espera e humilhações.

Para os comunistas, essa desigualdade é natural, justa e de direito divino. Os cem milhões de vítimas do comunismo são um detalhe irrisório no majestoso percurso da História. Os trezentos terroristas mortos pela ditadura brasileira são monumentos imperecíveis na memória dos tempos. Norman Cohn já assinalava, entre os traços inconfundíveis da mentalidade revolucionária, a autobeatificação delirante que redime e embeleza a priori todos os seus crimes enquanto torna os do outro lado eternamente imperdoáveis.

A mídia chique ajuda a consolidar a diferença, alardeando os pecados da ditadura e apagando do registro histórico os crimes dos terroristas, isto quando não os debita também na conta das vítimas, a título de reações compreensíveis e até meritórias do idealismo juvenil a uma situação desagradável.

A novidade é a afoiteza obscena com que certos militares brasileiros, em nome das boas relações com os assassinos de seus colegas de farda, se curvam docilmente a essa dupla moral, calando o que deveriam berrar desde cima dos telhados.

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PS – Errei ao dizer que ninguém na imprensa brasileira escreveu sobre o livro do rabino David C. Dalin. Hugo Estenssoro publicou uma excelente resenha na falecida Primeira Leitura.

O padrinho das Farc

Olavo de Carvalho


Zero Hora , 25 de janeiro de 2004

Um relatório da CIA, datado de 2000 e recém-revelado pelo jornal El Tiempo , de Bogotá, mostra que antes de lançar o Plano Colômbia o governo Clinton já estava avisado de que esse programa, de 3,2 bilhões de dólares, não reduziria em nada a entrada de cocaína colombiana nos EUA.

O Plano esperava destruir de 50 a 80 por cento das plantações de coca das regiões de Caquetá e Putumayo. O relatório afirma: “Ainda que esses resultados conduzam a algumas mudanças no padrão do tráfico, não alterarão o negócio de forma significativa”, produzindo apenas um aumento da importação de coca dos países vizinhos. Em entrevista dada em Bogotá domingo passado, o embaixador americano na Colômbia, William Wood, admitiu ao menos implicitamente que a previsão estava certa.

Isso não quer dizer, evidentemente, que o Plano tenha sido inócuo. Ele produziu, ao menos, as tais “mudanças no padrão do tráfico”. De um lado, o crescimento da importação colombiana transformou virtualmente a América Latina inteira numa espécie de Colômbia. De outro, a proibição de politizar o combate às drogas por meio de um ataque voltado seletivamente contra a guerrilha acabou transformando as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) na herdeira principal do patrimônio e das redes de distribuição deixadas pelo caminho por alguns cartéis, menos poderosos, cujos negócios foram arruinados pela destruição das plantações locais. Isso aconteceu porque nenhum cartel tinha nem poderia ter jamais uma rede de contatos internacionais comparável à das Farc, investidas que estão do privilégio de negociar ao mesmo tempo por baixo e por cima do pano, na sua dupla e inseparável condição de organização criminosa e de movimento político legitimado por muitos governos, entre os quais os do Brasil, hoje dominado por amigos da guerrilha colombiana. Não existe um “Foro de São Paulo” dos criminosos comuns, mas existe um da bandidagem politizada. Se alguém podia ganhar algo com o Plano Colômbia, eram as Farc. E ganharam.

A CIA sabia disso, avisou Clinton, e Clinton nem ligou.

Os leitores têm aí uma pista para descobrir por que o ex-presidente americano, hoje fortemente rejeitado em seu próprio país, recebe tantos aplausos no Fórum Econômico de Davos, assim como na mídia européia e especialmente na brasileira. William Jefferson Clinton pode ser acusado de tudo, menos de ser pró-americano. Afinal, foi o homem que, eleito com verbas de propaganda de uma estatal pequinense, lançou o manto do silêncio protetor sobre a espionagem nuclear chinesa, forneceu armas nucleares ao governo de Pequim, fez tudo para ceder aos chineses o controle do Canal do Panamá, desmantelou a CIA e cortou severamente as verbas militares americanas, ao mesmo tempo que a China inflava desmesuradamente as suas e colaborava abertamente com as organizações terroristas que os EUA combatiam.

No ambiente de provincianismo mental brasileiro, a hipótese de que um presidente americano possa estar a serviço da esquerda internacional contra o país que o elegeu parece rebuscada demais, porque contrasta com os estereótipos residuais das décadas de 60-80, quando os nossos compatriotas ainda acompanhavam, pela mídia, as manobras do movimento comunista mundial. Desde então o assunto desapareceu dos nossos jornais, e como para o público bocó o que não está nos jornais não está no mundo, William J. Clinton, para ser odiado ou venerado, ainda posa ante a imaginação brasileira como a encarnação viva do americanismo triunfante.

 

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