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Enquanto a Zé-Lite dorme

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 4 de dezembro

Se tenho insistido no tema do desconstrucionismo, é para mostrar que toda tentativa de discussão democrática com intelectuais ou líderes esquerdistas, hoje em dia, é tempo perdido. Eles criaram instrumentos verbais altamente sofisticados para escapar de toda cobrança racional e impor seus desejos e caprichos sem ter de dar satisfações senão à sua vontade de poder. Mais ainda: inventaram um sistema de pretextos infalíveis para sentir que, ao fazer isso, são as melhores pessoas do universo, contra as quais só monstros de egoísmo e crueldade poderiam objetar alguma coisa. Pior: transmitiram essas atitudes e sentimentos a duas gerações de estudantes universitários, que hoje ocupam os espaços fundamentais na educação, na mídia, na administração pública, na justiça e, é claro, numa infinidade de ONGs e “movimentos sociais”.

Hegel dizia que aquele que nas discussões públicas se abstém de razões e apela à autoridade secreta da sua “voz interior” é um inimigo da espécie humana. Extinta a possibilidade de aferição objetiva, suprimidos os instrumentos de prova, reduzido o debate a um confronto de vontades, a única autoridade que resta é a pura habilidade de impressionar, de assombrar, de seduzir, de hipnotizar. E para isso vale tudo: desde o sex appeal até a intimidação autoritária, passando pela ostentação de títulos e cargos, a forma mais tosca e besta do argumento de autoridade, característica do bacharelismo provinciano que volta à moda meio século depois de parecer definitivamente superado. Uma vez conquistada a adesão estudantil pelo fascínio vulgar de charlatães bem-falantes, a autoridade se transfere a gerações inteiras de jovens enragés que saem da faculdade imbuídos do dever de “transformar o mundo” por meio da mentira e do engodo.

Por toda parte, esses “agentes de transformação social” se empenham em fazer com que as engrenagens da sociedade funcionem ao contrário das suas finalidades nominais, criando o caos em lugar da ordem, a revolta e o ódio em vez da paz, a malícia em vez da confiança. Em suma, caro leitor, você está rodeado de ativistas cínicos, capazes de mentir e trapacear ilimitadamente no interesse do seu grupo político. Se você abre um jornal, não pode ter a certeza de ler fatos em vez de balelas interesseiras. Se tem uma demanda na justiça, não pode estar seguro de que não cairá nas mãos de um comissário do povo, decidido a julgar não segundo as razões do processo, mas segundo a classe social das partes. Se envia a esposa nervosa a um consultório de psicoterapia, não sabe se ela será tratada dos seus males ou envenenada de ódio ao marido. Se envia os filhos à escola, sabe que eles voltarão de lá tatuados e viciados, admirando bandidos e abominando as leis, falando alto, dando ordens ao pai e à mãe, indignados com a proibição das drogas, cheios de revolta sacrossanta contra a instituição familiar que os sustenta e protege.

E ainda há quem, no meio disso, acredite poder confiar nas leis e instituições, no funcionamento normal da sociedade, na sanidade do processo democrático.

A classe empresarial, os políticos pragmáticos e os analistas econômicos têm uma dificuldade quase intransponível de compreender o alcance político de modas culturais que, de início, parecem limitadas a um círculo de professores excêntricos e estudantes amalucados. Quase um século depois de Lukács, Gramsci, a Escola de Frankfurt e o próprio Stálin haverem descoberto que a cultura, e não a economia, é a força que move o processo revolucionário, esses observadores vesgos ainda acreditam que existe um abismo entre o mundo “prático” e a esfera dos interesses “abstratos”, “estratosféricos”, da intelectualidade acadêmica e artística. Estratosféricos são eles, habitantes do mundo da Lua. Quando o general Golbery do Couto e Silva inventou a teoria da “panela de pressão”, pontificando que a atividade repressiva do Estado deveria limitar-se à oposição armada, deixando as universidades e as instituições de cultura livres como válvula para o escoamento das pressões subversivas, mal sabia ele que, àquela altura, os esquerdistas mais avisados já haviam abandonado o projeto guerrilheiro e depositado todas as suas esperanças na “revolução cultural” gramsciana: a única arma de que precisavam era, precisamente, uma válvula. Ao optar implicitamente por não resistir ao comunismo em geral, mas só ao comunismo “violento”, o governo lhes forneceu essa arma. Um pouco de estudo teria bastado para mostrar ao sapientíssimo general que a “via pacífica” para o comunismo era nada mais que o adiamento da violência crua para depois da tomada do poder por meios anestésicos. Mas, no calor da luta contra as guerrilhas, a imagem de uma futura esquerda “pacífica” e “legalista” pareceu à elite militar uma alternativa roseamente desejável. Em poucos anos, essa esquerda, nascida das conversações gramscianas na USP, estava montada e em pleno funcionamento. Não houve, na “direita”, quem não celebrasse o seu advento como um formidável progresso da democracia. O general Golbery foi o pai da ascensão petista, restando apenas saber se o foi por pura presunção e ignorância ou se houve da sua parte um pouco de cegueira voluntária, alimentada por ambições nasseristas de absorver a esquerda continental num esquema militar nacionalista e anti-americano. Hoje sabemos que o esquema militar é que foi absorvido, subjugado e posto a serviço dos planos do Foro de São Paulo. Isso era perfeitamente previsível, mas não a quem alimentasse, como o general, a ilusão de poder manipular e “civilizar” o movimento comunista. A “queda” da URSS e a embriaguez triunfal dos liberais no início dos anos 90 levaram essa ilusão às últimas conseqüências, fazendo com que as “elites” (ou a Lite) celebrassem o sucesso do PT como uma promessa de melhores dias para a democracia capitalista. Frases como “o comunismo acabou” e “Lula mudou” adquiriram então o prestígio de dogmas inabaláveis, e quem sugerisse que as coisas não eram bem assim se tornava objeto de chacota da parte de banqueiros, empresários, políticos “de direita”, capitães da mídia e altos oficiais militares – a pura nata da Lite.

Hoje, quando esses senhores, de rabo entre as pernas, já entrevêem no colaboracionismo servil e trêmulo a sua única chance de sobrevivência, sinto-me até um tanto constrangido de lhes explicar, de novo, que os estrategistas da revolução comunista, por mais que lhes pareçam meros intelectuais avoados, de paletó sebento e barba por fazer, são um pouco mais espertos que eles. Um “homem prático” vive de olho nas cotações da bolsa e ri da sugestão de que algo tão abstrato e academicamente rebuscado como uma teoria literária possa ter alguma periculosidade política. O intelectual comunista aproveita-se dessa falsa sensação de segurança para fazer da teoria literária um instrumento de ação capaz de virar o mundo do avesso.

Vou contar, em linhas gerais, como isso aconteceu.

Na década de 30, Stálin estava persuadido de que a única função da arte e da literatura era a propaganda revolucionária. Parida às pressas pela Academia Soviética, a teoria estética do “realismo socialista” impregnou massas de escritores e artistas em todo o mundo comunista. Só não chegou a tornar-se um dogma universal porque, no Ocidente, Stálin reservava às celebridades das letras e artes uma função mais sutil. Queria usá-las como instrumentos de camuflagem: deviam abster-se da filiação explícita ao Partido Comunista (e portanto também às suas opções estéticas) e, conservando uma fachada de neutralidade, colocar o seu prestígio a serviço de causas específicas de interesse do Partido nos momentos decisivos. Isso deu aos escritores esquerdistas da Europa e das Américas a margem de liberdade que lhes permitiu escapar do realismo socialista e continuar fazendo literatura em sentido estrito. Por toda parte, poetas, romancistas e críticos – a começar pelo príncipe da crítica marxista, Georg Lukács em pessoa e seu fiel escudeiro Lucien Goldmann – desprezavam a estética oficial soviética e faziam a apologia dos cânones literários que construíram a grandeza de Shakespeare, Cervantes, Goethe, Balzac e Dostoiévsky. Lukács escreveu páginas notáveis em defesa do “grande realismo burguês”, alegando que a representação fiel da realidade histórica era uma força revolucionária em si, sem necessidade de concessões à propaganda. Até em congressos do Partido a hostilidade ao realismo socialista acabava se mostrando, às vezes de maneira explosiva. Referindo-se ao chefe da escola, o nosso Graciliano Ramos exclamava: “Esse Jdanov é um cavalo.” Assim a literatura foi salva do embrutecimento ideológico. Os anos 30-50 acabaram sendo uma época de criatividade literária incomum. No Brasil, então, nem se fala. Nunca tivemos tantos escritores bons e ótimos ao mesmo tempo.

Mas foi uma salvação provisória. Aqui e ali, discretamente, intelectuais iluminados se davam conta de que a preservação dos cânones do realismo e, de modo geral, a concepção da literatura como conhecimento, eram incompatíveis com a meta escolhida pelo próprio Lukács: a destruição da civilização ocidental. Puseram-se então a trabalhar na idéia de que a literatura não podia conhecer a realidade, já que – segundo entendiam — a própria realidade era uma invenção literária. Para dar a essa idéia um arremedo de consistência, apelaram a um formidável arsenal de recursos extraídos da língüística, da antropologia, da lógica formal, da “teoria crítica” frankfurtiana e das filosofias de Nietzsche e Heidegger. Em menos de uma década a proposta havia evoluído para a formulação radical do desconstrucionismo: não existe realidade nem conhecimento, nenhum discurso tem significado, o significado é livremente inventado por “comunidades interpretativas” que aí projetam como bem entendem seus desejos e interesses, portanto tudo o que há para fazer é reunir a comunidade e ensinar-lhe os meios de usurpar o sentido dos textos em benefício próprio.

De súbito, a doutrina de Stálin-Jdanov era restaurada em todo o esplendor da sua brutalidade, mas agora resgatada da sua pobreza teórica originária e paramentada com todos os adornos da sofisticação acadêmica. O desprezo pela verdade, a legitimação da mentira politicamente útil, o cinismo das interpretações forçadas, enfim a prostituição total das atividades intelectuais superiores aos interesses de grupos de pressão tornaram-se não só legítimos e recomendáveis, mas intelectualmente elegantes e moralmente obrigatórios. Na mesma onda, as distinções entre o verdadeiro e o falso, entre cultura e incultura, entre o esteticamente superior e inferior, foram condenadas como instrumentos de opressão e substituídas pelo culto de qualquer bobagem politicamente oportuna que se apresentasse. Toni Morrison foi igualada a Shakespeare, as novelas de Gilberto Braga celebradas como portadoras da “universalidade de um Balzac” por ser bem aceitas em todos os mercados. Considerar Bach superior a Gilberto Gil tornou-se algo assim como um crime de racismo.

Não é preciso dizer que o primeiro resultado foi a pura e simples desaparição da grande literatura. A segunda metade do século XX não gerou nada que se comparasse nem de longe a um Thomas Mann, a um Proust, a um Jacob Wassermann, a um Hermann Broch, a um Robert Musil, a um Antonio Machado, a um Bernanos, a um Mauriac. Nas nações do Terceiro Mundo, as sementes da cultura superior em gestação foram impiedosamente arrancadas. O país que cinqüenta anos atrás tinha Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Annibal M. Machado, Marques Rebelo, José Lins do Rego, agora lê Luís Fernando Veríssimo e acha o máximo.

Se os efeitos se limitassem à esfera das letras, já seriam suficientemente perversos. À retração da criatividade literária corresponde, pari passu, a degradação da linguagem pública, a progressiva incapacidade de expressar a experiência real e, conseqüentemente, a fixação dos debates em estereótipos alienados, prenunciando a ascensão da loucura geral como alternativa política.

Mas, como não poderia deixar de ser, os procedimentos interpretativos da escola desconstrucionista e similares logo foram estendidos para as ciências humanas em geral, afetando todas as esferas do debate público. Aí os efeitos foram muito além do mero sucesso propagandístico. Ampliaram-se até à destruição de todo princípio de ordem e racionalidade na vida social. Avaliar, mesmo sumariamente, a extensão do dano, ocupará muitos artigos nas próximas semanas. Vou aqui dar um único exemplo, que depois explicarei melhor.

Um dos setores onde a influência desconstrucionista penetrou mais fundo é o Direito. Aí se evidencia como uma teoria literária pode ter conseqüências devastadoras sobre toda a ordem social. Juízes, promotores e advogados são hoje formados sob a crença dominante de que as leis, como qualquer outro texto, não têm nenhum significado originário objetivamente válido. Toda significação que elas possam ter é mera projeção de fora, vinda dos setores politicamente interessados. Só o que resta portanto é organizar uma “comunidade interpretativa” e impor a sua leitura dos textos legais por meio da gritaria, da chantagem, da intimidação. De um só golpe, a Justiça inteira se transforma em instrumento de subversão revolucionária. Para virar de cabeça para baixo a ordem pública, não é preciso mudar as leis: basta inverter-lhes o sentido.

Nos EUA, o alucinógeno desconstrucionista chegou até à Suprema Corte, transformando-a numa frente de combate contra a religião, os valores americanos tradicionais e a própria Constituição. Amparado em teóricos acadêmicos da reputação de Ronald Dworkin e Stanley Fish, o juiz William Brennan, ex-presidente da Suprema Corte, proclama abertamente que tentar ater-se ao significado originário da Constituição é “falsa humildade”: o verdadeiro sentido do texto constitucional tem de ser livremente inventado conforme as pressões dos grupos abortistas, feministas, gays etc. É isso o que o ex-vice-presidente Albert Gore entende por “Constituição viva”. A profundidade da subversão judicial ocorrida nos EUA já não pode ser medida. Um pequeno indício é que, em plena guerra contra o terrorismo islâmico, crianças de escola pública, em vários Estados, são obrigadas a ouvir horas e horas de louvações à religião muçulmana, sendo ao mesmo tempo proibidas de expressar em voz alta sua fé cristã, sob pena de expulsão ou de medidas policiais mais graves. É a guerra psicologia ao contrário, movida não contra o inimigo mas contra o próprio país, sob a proteção da Suprema Corte.

Revolução judicial nos EUA

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de junho de 2005

No Brasil ninguém está prestando atenção nisso, mas o acontecimento da semana nos EUA foi a sentença da Suprema Corte que, quinta-feira passada, permitiu aos governos locais desapropriar moradias e fazendas em favor de projetos de desenvolvimento privados.

A importância da medida, destinada a ter dentro e em torno dos EUA conseqüências histórico-sociais imensas se levada à prática em toda a sua extensão, reside em que ela modifica radicalmente o sentido da Quinta Emenda constitucional, a qual condicionava o direito de desapropriação ao “uso público” da terra desapropriada. Agora, esse direito beneficiará qualquer grande projeto de desenvolvimento apresentado por empresa privada que prometa gerar por meio dele algum “benefício social”, especialmente, é claro, impostos.

Entendam bem a diferença: não se trata de privatizar uma prerrogativa estatal. Ao contrário: é a prerrogativa estatal de arrancar dinheiro do contribuinte que se sobrepõe brutalmente ao direito de propriedade, arrogando-se o poder de beneficiar um interesse privado em detrimento de outro, e, pior ainda, de fazê-lo em nome da simples promessa dos ganhos fiscais decorrentes e não de uma concreta e imediata “utilidade pública”. Quando o governo desapropria casas para criar uma praça ou hospital, a praça e o hospital são postos diretamente a serviço do povo. A propriedade privada é sacrificada em favor de um ganho social direto. Agora, não é preciso mais isso. O ganho imediato, se vier, será do Estado somente. Para a população, restará a mera expectativa de ganhos indiretos, e em nome dessa expectativa os direitos de propriedade serão sacrificados.

A coiça começou quando um grupo de proprietários residenciais num bairro operário de New London, Connecticut, recorreu à justiça contra empresários que, com o apoio da prefeitura, queriam derrubar suas casas para dar espaço a um hotel, a um SPA e a um conjunto de escritórios – tudo isso privado, naturalmente. Quando o caso chegou à Suprema Corte, a maioria dos juízes deu ganho de causa aos empresários. O voto vencedor foi subscrito por John Paul Stevens, John Anthony Kennedy, David H. Souter, Ruth Bader Ginsburg e Stephen G. Breyer – a fina flor do esquerdismo judicial supremo.

A Juíza Sandra Day O’Connor, uma conservadora nominal que vive flertando com as causas esquerdistas, desta vez defendeu com firmeza o voto dissidente e continuou lutando contra a decisão depois de aprovada. “Qualquer propriedade pode agora ser tomada em benefício de outra parte privada, mas as conseqüências disso não serão randômicas”, escreveu ela: “Os beneficiários, mais provavelmente, estarão entre aqueles cidadãos que têm mais influência e poder no processo político, especialmente as grandes corporações e as empresas de desenvolvimento”. Os conservadores genuínos – William H. Rhenquist, Anthonin Scalia e Clarence Thomas – acompanharam o voto vencido da dra. O’Connor.

O caso basta para ilustrar como é falso o estereótipo – no Brasil, um dogma – que identifica a esquerda com as “causas populares” e a direita com os “interesses da elite”. Não é à toa que nos EUA o povão vota com os conservadores, o beautiful people com os esquerdistas. Também não é por acaso que as fundações bilionárias – Ford, Rockefeller, MacArthur e tutti quanti — despejam dinheiro nas organizações esquerdistas, inclusive na América Latina, ao passo que não dão um tostão a qualquer projeto que seja ou pareça conservador, pró-cristão, pró-Israel, etc.

A decisão de quinta-feira passada vai contra todas as tradições americanas, mas, quando mega-interesses empresariais se unem à fome de poder estatal dos esquerdistas contra os direitos consagrados, não há tradição que agüente.

“É um tanto chocante acreditar que você pode perder sua casa neste país”, disse Bill Von Winkle, um dos proprietários lesados. Mas Bill vai resistir: diz que não sairá da casa nem quando os tratores aparecerem. “Não vou a parte alguma”, assegura ele: “Essa sentença, definitivamente, não é a última palavra.”

E não é mesmo. No complexo sistema federativo americano, essa decisão da Suprema Corte não obriga em nada os tribunais superiores estaduais, onde a briga vai prosseguir agora, podendo acontecer que o novo critério seja adotado em uns Estados e rejeitado em outros.

Mas o sentido histórico, social e cultural da medida é evidente. Mais que um ataque a determinado direito de propriedade, ela é uma mutação completa dos fundamentos gerais desse direito. A troca do conceito de “uso público” para o de “benefício social” como critério de desapropriação é uma revolução judicial comparável às aberrações propostas no Brasil pelo chamado “direito alternativo”. Funda-se inteiramente na lógica socialista de que os méritos hipotéticos do futuro, bastando ser alegados, tornam-se ipso facto justificativa bastante para a supressão ou modificação dos direitos presentes.

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O episódio exemplifica, mais uma vez, o abismo que se abriu entre o Brasil e os EUA, países antigamente tão próximos. A imagem dos EUA na opinião pública brasileira chega hoje à completa inversão. A novela “América”, por exemplo, mostra como traços típicos da cultura americana justamente aquelas práticas que foram introduzidas pela esquerda “politicamente correta” para destruir essa cultura. Aqui ninguém ignora que a onda de intromissão estatal na vida privada dos cidadãos é uma novidade criada pelos “liberals” (“liberal” nos EUA significa esquerdista; o que no Brasil é “liberal” chama-se “conservative”, conservador) para implantar o socialismo pela via anestésica da legislação progressiva e do ativismo judicial. Jornais, revistas e livros conservadores denunciam isso dia e noite, mas, para o público brasileiro, a culpa não é dos esquerdistas: é da América.

Um dos mais gostosos privilégios da esquerda internacional é justamente o de ser internacional, enquanto as direitas são locais e sem nenhuma conexão no estrangeiro. Isso permite que, num país, ela explore em vantagem própria a denúncia dos crimes e desvarios que ela mesma praticou em outro.

Uma sociedade em que os pais têm medo de que o Estado tome seus filhos ao menor deslize é mesmo uma monstruosidade. A esquerda americana tem se esforçado muito para que os EUA se transformem precisamente nisso, segura de que, aos olhos do mundo, os resultados deprimentes não serão atribuídos a ela, mas ao país que ela deformou. Se, amputados da identidade do autor, os feitos malignos da esquerda americana podem ser usados para fomentar o anti-americanismo brasileiro, por que não fazê-lo?

Do mesmo modo, o Plano Colômbia de Bill Clinton, obviamente concebido para desmantelar as organizações paramilitares de direita e transferir às FARC o poder dos antigos cartéis, pode ser apresentado aos bocós do Terceiro Mundo como um odioso empreendimento anti-esquerdista do imperialismo americano. A esquerda ganha dinheiro e poder, com a vantagem adicional de aparecer como vítima.

Contribui para dar credibilidade à intrujice a aberrante crença popular brasileira de que nos EUA “não existe esquerda” – quando, na verdade, a esquerda dominou toda a história política e cultural americana do século XX e só a partir da década de 50 surgiu um movimento conservador, raquítico no começo, depois crescendo aos poucos até alcançar sua primeira vitória significativa na eleição de Ronald Reagan. Contarei a história desse movimento numa das próximas colunas.

Por enquanto, só o que falta é a mídia brasileira apresentar a decisão dos esquerdistas da Suprema Corte como prova da maldade dos conservadores americanos.

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Nestas semanas em que tudo no país está dando errado, está na hora de ler “O Brasil Que Deu Certo”, de José Monir Nasser e Gilberto Zancopé. Publicado pela Editora Tríade do Paraná, já deve estar em todas as livrarias de São Paulo e do Rio. Baseado numa exaustiva pesquisa, escrito com elegância e brilho como raros livros nacionais hoje em dia, conta a história de um sucesso majestoso, a epopéia dos plantadores de soja no Oeste brasileiro. A lição que encerra não é nova, mas vem ilustrada com uma profusão de fatos que a tornam mais clara e didática do que nunca: para o Brasil dar certo, é preciso que os empresários desistam de viver da proteção do Estado e o Estado desista de manter os empresários de joelhos.

Saramago e os judeus

Olavo de Carvalho

O Globo, 20 de abril de 2002

O sr. José Saramago proclama que a Igreja não tem nenhum direito de emitir opiniões sobre seus livros, mas ele próprio, além de opinar abundantemente sobre os livros da Igreja, ainda se atribui, com humildade exemplar, a divina missão de reescrevê-los. Primeiro foram os Evangelhos, agora é o Livro de Samuel. O jovem Davi, assegura-nos o inspirado escritor, não foi à batalha com o gigante Golias armado somente de uma funda, mas de uma pistola. Esse importante detalhe provavelmente escapou ao profeta hebraico em razão de sua inexperiência em tecnologia bélica, um ramo em que o Nobel português se mantém atualizadíssimo por meio de consultas ao sr. Yasser Arafat, não sei se também às Farc.

Copy desk da revelação eterna, tarimbado especialista em censura e corte de textos — que o digam os jornalistas portugueses dos bons tempos da ditadura Otelo Saraiva –, por que não haveria esse velho ateu e comunista de sentir-se também habilitado a fazer cobranças morais aos judeus de hoje em nome dos judeus de ontem? Para humilhar aqueles patifes, ele insinua que os mortos de Auschwitz, no Paraíso, coram de vergonha de Sharon e tutti quanti. Deploravelmente, ele escreve isso no mesmo parágrafo em que acusa os israelenses de usar a recordação do Holocausto como instrumento de chantagem psicológica — uma fatal pisada no tomate que será interpretada pelos maliciosos como ato falho freudiano, mas na qual eu prefiro ver uma amostra do rigor dos procedimentos hermenêuticos com que esse cérebro notável interpreta não somente os escritos do Todo-Poderoso, mas até os dele próprio, que é um pouco menos poderoso.

Baseado nesse método revolucionário, ele afirma que os judeus estão “contaminados pela monstruosa e enraizada ‘certeza’ de que neste catastrófico e absurdo mundo existe um povo eleito por Deus e que, portanto, estão automaticamente justificadas e autorizadas… todas as ações próprias”. Quem quer que tenha lido a Bíblia pelo método antigo, denominado “alfabetização”, sabe que a condição de povo eleito, longe de isentar os judeus de responder por seus pecados, os investe do pesadíssimo encargo da profecia, sujeitando-os a temíveis cobranças e castigos da parte de Deus. Segundo estudiosos treinados nesse método, como Eric Voegelin, James Billington e Norman Cohn, o privilégio autoconcedido da indulgência antecipada e incondicional é atributo exclusivo das seitas gnósticas que deram origem às ideologias totalitárias modernas: nacional-socialismo e socialismo internacional. Seja no altar da deusa Raça ou da deusa História, quem sempre alegou o dogma da sua própria concepção imaculada para dar a seus pecados uma aura de santidade não foram os judeus: foram os Saramagos. Que Saramago em pessoa não se dê conta disso e ingenuamente projete sobre uma raça a conduta que é especificamente a do seu próprio partido, eis uma coisa aliás bastante lógica, pois ninguém poderia desfrutar dos benefícios da autobeatificação se esta não o privasse instantaneamente, e talvez para sempre, da possibilidade mesma de enxergar seus próprios atos antes de julgar os alheios. Elevando-se por decreto próprio às alturas de um juiz iluminado do povo judeu, um homem não pode deixar de mergulhar, por choque de retorno, naquela total inconsciência de quem já não consegue seguir a lógica do que ele próprio escreve, nem portanto perceber que, a poucas linhas de intervalo, chantageia e acusa o chantageado de chantagem.

Tal é o método hermenêutico de Saramago.

Para mim, a mais sugestiva apreciação crítica que já se fez desse autor saiu anos atrás na coluna do Agamenon Mendes Pedreira: sob a foto de um burro atrelado a uma carroça, a legenda — “O escritor José Saramago puxando a marcha dos Sem-Terra.”

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O retorno de Hugo Chávez ao poder mostrou, mais uma vez na História, que é mais fácil implantar uma ditadura por meios democráticos do que uma democracia por meios ditatoriais. Arrivistas como Chávez e Hitler apostam na primeira dessas hipóteses e saem ganhando. Os militares latino-americanos que apostam na segunda quase sempre perdem: ou são derrotados logo de cara, ou se deixam prender na sua própria arapuca autoritária durante décadas sem saber como sair, ou, quando conseguem restaurar a normalidade democrática, acabam no banco dos réus de algum tribunal de lindos democratas que não se lembram mais da temível alternativa da qual foram salvos pelos acusados.

Durante anos Chávez e Hitler construíram seus Estados policiais, peça por peça, dentro da Constituição, com fortíssimo respaldo popular e o apoio do Parlamento e da Suprema Corte, sem que quase ninguém na mídia internacional se desse conta da ratoeira sinistra em que estavam metendo seus respectivos povos. Se houvesse um golpe militar contra Hitler em 1937 ou 1938, seria sem dúvida condenado universalmente como uma ruptura da ordem constitucional, um atentado contra a democracia. Assim foi recebido o golpe contra Chávez — daí a sensação de alívio, perfeitamente ilusória, que a volta do sargentão comunista inspirou mesmo aos que o detestavam.

Mas a experiência venezuelana ensina também que, se não é possível fazer uma revolução gramsciana “desde cima”, artificialmente e sem a lenta preparação do ambiente cultural, também não é possível desfazê-la de repente, seja por meio das armas ou de improvisos eleitorais, sem a prévia e trabalhosa dissolução da atmosfera que a possibilitou. Os vietcongs e os guerrilheiros de Chiapas já haviam demonstrado isso, ganhando em triplo na mídia o que perderam no campo de batalha. Mas até hoje o sentido da expressão “revolução cultural” não parece ter entrado na cabeça dos nossos liberais e conservadores.

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Maria Rosália Campos consta do Dicionário dos Pintores do Brasil de João Medeiros como artista plástica de importância excepcional. De suas obras, a mais conhecida é o mural da Santa Ceia pintado na Igreja de Nossa Senhora de Fátima. Provavelmente tão versado em matéria de pintura quanto o sr. Saramago em assuntos religiosos, um vigário cretino mandou caiar o mural, assim desaparecido sob uma brancura que ninguém dirá ser a da alma de S. Revma., mas que talvez seja a do seu rol de conhecimentos artísticos. A pintora, que já passou dos oitenta anos, não tem ânimo de protestar, mas a cidade do Rio de Janeiro não pode sofrer calada mais este dano ao seu patrimônio cultural. Peço pois aos leitores que, quando passarem pelo templo lesado, não deixem de dizer poucas e boas ao Saramago de batina.

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O PFL, que em matéria de convicções se aproxima velozmente do peso atômico zero, atingirá essa meta tão logo celebre algum acordo com a tucanidade, tucanizando-se ele próprio. Daí por diante, seu destino só dependerá do seguinte fator: para votar num partido é preciso respeitá-lo — e ninguém respeita mulher de malandro.

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