Em 24 de dezembro de 2010 / Artigos
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 24 de dezembro de 2010
A técnica de “debate” dos trapaceiros simplificou-se muito nos últimos tempos. Já não apelam aos requintes dos antigos sofistas, nem aos ardis daquela falsa retórica que Aristóteles chamava de erística. Por economia de tempo, ou por preguiça e incapacidade de estudar essas coisas, transferem a disputa do terreno lógico para o da manipulação psicológica, buscando, não persuadir ou mesmo confundir, mas simplesmente atemorizar e subjugar.
O método com que logram obter esse resultado é simples. Com ares da maior inocência, expelem afirmações chocantes ou insultuosas em linguagem enganosamente sofisticada, e em seguida impõem ao adversário regras de polidez que excluem toda possibilidade de queixa ou de revide à altura, de modo que não resta ao infeliz senão submeter-se ao embuste, tentando mover-se timidamente num terreno que de antemão foi demarcado para humilhá-lo.
Os polemistas que mais têm se destacado no emprego dessa técnica são os Quatro Jumentos do Apocalipse – Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Sam Harris e Daniel Dennett –, cujo objetivo, exemplarmente modesto, é varrer a religião da face da Terra, impondo em lugar dela o culto da “razão” e da “ciência”.
Eles não odeiam todas as religiões por igual. Sua bête noire é o cristianismo, em especial o católico, no qual vêem, declaradamente, o maior dos inimigos da humanidade. Por motivos que já veremos, preferem no entanto tentar destruí-lo por meio de um ataque generalizado à “religião”, na esperança, bastante razoável, de que a supressão do gênero traga consigo a aniquilação da espécie.
Acontece que “religião”, tal como eles empregam essa palavra, não é uma entidade historicamente identificável; não é sequer um conceito. É uma palavra-fetiche, um espantalho verbal dentro de cuja gama de significados se incluem, indistintamente, o cristianismo, a gnose, o culto estatal dos césares, a feitiçaria, o chamanismo, a astrologia, a alquimia e o esoterismo em geral, todas as religiões indígenas possíveis e imagináveis, o mormonismo, a ufologia, o espiritismo e mais não sei quantas coisas, conferindo a tudo isso uma unidade fictícia baseada no mero uso de um termo comum.
Em seguida atribuem à entidade amorfa assim designada a unidade de um sujeito consciente, capaz de decisões e ações, de responsabilidade moral portanto, e procedem então ao julgamento da estranha criatura. A condenação, em tais condições, é inevitável. Com tantas encarnações históricas diversas, heterogêneas e mutuamente incompatíveis, a “religião” não tem como escapar a praticamente nenhuma acusação que se lhe faça. Onipresente, indefinido, o monstrengo imaginário leva a culpa de todos os males que afligem a pobre espécie humana. E, como o geral abrange todos os seus casos particulares, cada uma das “religiões” existentes passa a carregar automaticamente não só as suas culpas, mas as do conjunto e, por tabela, a de cada uma das outras em particular.
A naturalidade, a desenvoltura e a freqüência com que os quatro ídolos da militância ateística apelam a essa transferência de culpas já bastariam para catalogá-los entre os maiores vigaristas intelectuais de todos os tempos. Só para dar um exemplo entre inumeráveis outros: numa de suas últimas investidas polêmicas, Christopher Hitchens, recordando que os soldados alemães da II Guerra traziam nos seus cinturões o dístico “Gott mit uns” (Deus está conosco), concluía daí que o nazismo era um regime cristão, católico, cabendo portanto à Igreja de Roma as culpas da guerra, do Holocausto etc. etc. O detalhe aí faltante é o seguinte. Hitler não era ateu, mas, com toda a evidência, não era católico. Era um gnóstico, firmemente empenhado em remodelar o Evangelho e realizar o Juízo Final terrestre sem esperar pelo celeste. Para isso era preciso, dizia ele, “esmagar a Igreja Católica como se pisa num sapo”. O gnosticismo é o mais velho e feroz inimigo da Igreja, que o condena como raiz de todas as heresias. Mas, para Christopher Hitchens e a platéia que o aplaude, isso não faz a menor diferença. Catolicismo é “religião”, gnosticismo é “religião”: suas culpas são, portanto, intercomunicáveis. Mas não será o gnosticismo, antes, uma pseudo-religião? Também não importa: pseudo-religião é religião.
A aplicação mais constante e eficaz desse truque tem consistido em alegar os feitos dos terroristas islâmicos como provas da periculosidade… de quem? Do cristianismo!
E o ateísmo, não tem culpa de nada? O fato mais gritante da história moderna é que a ideologia ateística do comunismo matou mais gente, em poucas décadas, do que todas as guerras de religião haviam matado desde o começo do mundo (confira na página do prof. R. J. Rummel, www.hawaii.edu/powerkills). De um ponto de vista racional não deveria, portanto, haver margem, por mínima que fosse, para discutir quem é pior, o ateísmo ou as religiões – mesmo todas elas somadas. Como se saem dessa os Quatro Jumentos? Chamam ao comunismo “religião”, e está resolvido o problema. “As religiões”, e especialmente a católica, passam a ser culpadas de todos os delitos dos governos que mais mataram crentes e religiosos em nome do ateísmo científico.
Ser ateu, dizem os Quatro, consiste apenas na recusa de crer em Deus – em qualquer Deus – e não na proposição de quaisquer objetivos ou valores concretos. Assim concebido, o ateísmo é apenas uma atitude íntima e não tem nenhuma encarnação histórica identificável, não podendo, por definição, ser acusado do que quer que seja.
O fato de que esse ateísmo, na prática, não se esgote em pura recusa de crer, mas traga consigo a apologia da “razão” e da “ciência”, não pode torná-lo responsável pelos crimes das ideologias científicas, marxismo e nazismo, porque, dizem os Quatro, elas não se baseavam em ciências mas em pseudociências. Nem pergunto com que legitimidade a noção de “pseudo”, proibida aos defensores da religião, é aí reintroduzida de repente como critério distintivo válido. Também não pergunto com que direito se apela à distinção de ciência e pseudociência como se fosse coisa óbvia, primária e automática, quando ela parece ter escapado por completo a toda uma plêiade de eminentes cientistas marxistas. O que me parece mais bonito nessa jogada é o apelo devoto à noção de “pureza”, negado aos defensores da religião: segundo os Quatro, que Marx ou o próprio Darwin defendessem abertamente a liquidação sistemática de “povos inferiores” não torna o seu ateísmo culpado de nada, porque um e outro, ao propor essa idéia assassina, não o faziam por devoção coerente ao ateísmo racional e científico, mas por uma tentação religiosa passageira…
Reduzido a uma idéia pura, ou, mais propriamente, à versão pessoal que essa idéia assume nas cabeças dos Quatro Jumentos, o ateísmo é tão inocente, tão inatacável quanto uma figura geométrica no céu das formas platônicas. É esse o debate que os Quatro propõem, tal como os comunistas propõem o confronto entre a inocência da sua sociedade ideal e os males e pecados da sociedade existente, ou como Seyyed Hossein Nasr, em Ideals and Realities of Islam, compara as belezas do seu Islam ideal à feiúra das sociedades ocidentais historicamente conhecidas. A exigência mais fundamental da confrontação honesta – comparar ideais com ideais, realidades com realidades – é assim escamoteada a priori, só restando ao pobre adversário dos Quatro a tarefa inglória de defender, em vão, o real contra o ideal.
Com a ajuda de seus editores e marqueteiros bilionários, tal tem sido a “proposta de debate” oferecida pelos Quatro a quem se mostre ingênuo o bastante para cair no engodo. Quanto mais estrita é a exigência de polidez acadêmica nesses confrontos, mas inviável se torna a denúcia do embuste essencial que gerou e modelou a proposta. Uma vez desmascarado o embuste, porém, toda a aparente respeitabilidade intelectual de Hitchens e seus parceiros vem abaixo, junto com a mentira básica de que jogam esse jogo sujo com intenções elevadas e nobilíssimas. Não é saudável discutir educadamente com trapaceiros, porque denunciar sua trapaça está proibido, in limine, como uma tremenda falta de educação.