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Blefe retórico

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 05 de junho de 2008

O editorial da Folha de S. Paulo de sexta-feira passada pontifica: “Ao reconhecer a validade da Lei de Biossegurança, STF impediu que uma ética privada, a religiosa, fosse imposta a todos. A declaração pelo STF (…) significa antes de mais nada a vitória da lógica e da razão prática sobre especulações de inspiração religiosa.”

Em três linhas, quatro mentiras.

De um lado, reduzir às dimensões de uma “ética privada” princípios do judaísmo e do cristianismo longamente incorporados às bases mesmas da civilização ocidental é falsificar dois milênios de História. E é dar como realidade presente e universalmente aprovada o mero projeto, acalentado por pseudo-intelectuais ativistas, de um Estado ateu fundado na autoridade absoluta da “ciência”.

A idéia, muito em moda no ottocento graças a vulgarizadores como Ludwig Büchner e Ernest Haeckel, a uma literatura naturalista de pretensões “científicas” (Zola, o nosso Aluízio de Azevedo) e ao anticlericalismo visceral de alguns movimentos revolucionários nacionalistas (Itália, México), foi desmoralizada logo nas primeiras décadas do século seguinte com a entrada em cena de gigantes do pensamento científico e filosófico como Albert Einstein, Max Planck, Werner Heisenberg, Alfred North Whitehead, Edmund Husserl e Karl Jaspers, entre outros. Toda a cultura superior do século XX é uma violenta condenação às pretensões do cientificismo oitocentista. Cinqüenta anos atrás este já parecia morto e enterrado para sempre. Só teve uma grotesca reencarnação nas últimas décadas graças ao surgimento de uma geração de “formadores de opinião”, saídos das fileiras da ciência acadêmica mas prodigiosamente incultos, os quais, ignorando tudo dos debates de cem anos atrás, voltam aos mesmos argumentos já mil vezes desmoralizados, com aquela inocência presunçosa de quem nem de longe percebe o vexame. Imagino, já não digo os editorialistas da Folha, mas seus mentores Richard Dawkins ou Daniel Dennett lendo “A Crise das Ciências Européias” de Husserl ou “Processo e Realidade” de Whitehead. Não entenderiam uma só linha. Dar por pressuposto que as idéias desses idiotas se impuseram universalmente e que já vivemos num Estado determindo por elas é um blefe retórico que só se explica por aquela arrogância pueril de quem não sabe o que faz.

De outro lado, não há lógica nem razão prática na dupla estupidez subscrita pelo STF, de que embriões in vitro são inviáveis e de que as curas miraculosas a surgir da pesquisa com células-tronco embrionárias são promessas viáveis. Todo primeiranista de Medicina sabe que a primeira dessas afirmativas é falsa, e em favor da segunda não há até o momento nenhuma prova, por mais mínima que seja — há apenas a exploração cínica das esperanças de milhões de doentes e seus familiares, esperanças que serão esquecidas e jogadas na lata do lixo assim que a jurisprudência agora firmada alcance o seu único objetivo: liberar o aborto contra a vontade maciça do povo brasileiro, por via de um artifício judicial e contornando o debate parlamentar.

Se não fosse por uns quantos votos contrários que salvam um pedacinho da sua honra, o STF, com essa simples sentença, teria abdicado definitivamente das últimas aparências de instituição respeitável para inscrever-se no rol das entidades militantes empenhadas em implantar no Brasil a Nova Ordem tecnocrático-ateística, cuja receita vem pronta dos organismos internacionais.

Quanto à Folha, seu editorialista poderia ao menos abster-se de usar uma expressão clássica de Kant cujo sentido desconhece. Pois, para o filósofo de Koenigsberg, a razão prática fundamenta-se no reconhecimento da universalidade da lei moral – aquela mesma lei que o jornal, do alto da sua imensurável inépcia, rotula de “ética privada”. Um princípio elementar da vida intelectual é não atribuir a termos consagrados um sentido invertido sem explicar as razões de fazê-lo, supondo-se que alguma exista, o que evidentemente não é o caso quando o autor da coisa usa o termo só para parecer culto e nem tem consciência da inversão. Não deixa de ser significativo do presente estado de coisas que lições de ética nos venham na linguagem simiesca de um pequeno vigarista intelectual.

Casta de malditos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 30 de abril de 2007

Há mais de dois séculos a casta dos intelectuais ativistas espalha terror e sofrimento por toda parte, sempre sob a desculpa de conduzir a humanidade a um reino de justiça igualitária. Não há genocídio, não há violência, não há brutalidade que não tenha por trás a criatividade incansável desses tagarelas iluminados, cujo maior talento é o de jogar os demais grupos humanos uns contra os outros enquanto mantêm oculta sua própria existência de agentes históricos principais, dirigentes máximos do processo e mandantes últimos de todos os crimes.

O intelectual ativista distingue-se do filósofo, do erudito, do cientista, do escritor, embora possa atuar sob a camuflagem de um ou vários desses papéis sociais, confundindo a platéia. A diferença é que, enquanto estes se esforçam para tentar compreender e expressar a realidade, ele só se ocupa de condená-la e de tentar transformá-la em outra coisa. O homem de estudos tem diante de si um mundo que já lhe parece complicado demais para a sua pobre cabecinha. O intelectual ativista tem na cabeça inchada um projeto de mundo, o plano integral de uma nova humanidade, que ele acha infinitamente superior a tudo quanto já existiu ou existe neste universo desmasiado estreito para a sua grandiosa imaginação.

Como não se pode interferir numa coisa sem jamais pensar nela, o intelectual ativista às vezes estuda algo da realidade, com o objetivo de alcançar prestígio num domínio especializado para depois poder falar com uma tremenda autoridade científica sobre assuntos dos quais ele sabe pouco ou nada e dos quais na verdade não quer saber coisa nenhuma. Voltaire ganhou fama como expositor da física de Newton, que ele havia estudado com certa atenção, para depois posar de guru em todas as áreas da atividade humana nas quais sua erudição era sofrível ou nula. Karl Marx estudou razoavelmente Epicuro e Demócrito para depois entrar na história como reformador da filosofia de Hegel, da qual ele tinha conhecimentos muito limitados e uma compreensão barbaramente deficiente. Richard Dawkins estudou genética e saiu dando palpites sobre religiões que ele desconhece no todo e nos detalhes. Noam Chomski dedicou alguns anos aos estudos lingüísticos para depois poder orientar a humanidade em questões de economia, guerra, política, direito e relações internacionais, onde seus conhecimentos se limitam àquilo que qualquer um pode ler diariamente na mídia popular esquerdista.

A quota de atividade intelectual séria a que esses indivíduos se entregam durante a primeira parte da vida não reflete seus interesses verdadeiros. É apenas uma fase temporária de conquista de credenciais que depois serão usadas e abusadas fora da sua jurisdição. É por isso que eles se chamam intelectuais ativistas e não intelectuais tout court . O objetivo de suas existências é o ativismo. A vida intelectual é somente um meio e pretexto. Eles não querem compreender a realidade. Querem modificá-la, e não apenas em algum detalhe que esteja ao seu alcance. Querem modificá-la no todo, de alto a baixo, corrigindo a natureza e Deus, que tiveram o desplante de fazer as coisas como elas são sem consultar antes a sabedoria de Voltaire, Karl Marx e Richard Dawkins.

Vejam o caso deste último. O fato de que todas as civilizações conhecidas tivessem alguma religião pode ser facilmente explicado pela razão de que as religiões são universalmente necessárias para dar abertura a uma dimensão da realidade que não poderia ser conhecida sem elas. Richard Dawkins prefere atribuir a existência das religiões a um efeito residual da evolução das espécies, que não logrou produzir ao longo dos tempos nenhuma criatura tão inteligente quanto Richard Dawkins e por isso deixou a humanidade à mercê de crendices e superstições bárbaras.

Com o risco de afastar-me perigosamente do assunto principal deste artigo, não resisto a observar que a simples redução da questão religiosa a uma matéria de “crença” ou “descrença” já é uma simplificação intelectualista que jamais poderia ter-se produzido antes que um assunto tão complicado e exigente fosse entregue ao arbítrio de palpiteiros ativistas que não têm a mínima condição de compreendê-lo.

Desde logo, a noção de “fé” só existe nas religiões do grupo abraâmico – judaísmo, cristianismo e islamismo. Não se fala disso no budismo, no hinduísmo, no xintoísmo ou nas religiões cosmológicas do Egito, da Babilônia, da Pérsia, etc. Um elemento tão limitado no tempo e no espaço não pode, com alguma razoabilidade científica, ser apontado como o traço universal definidor das religiões em geral. Mesmo dentro do estrito domínio cristão, a fé não significa “crença”, muito menos crença irracional, mas apenas confiança numa presença divina cujas provas iniciais tendem a ser esquecidas na agitação e dispersão de uma vida ilusória. A fé não é “crença”, é antes a fidelidade a uma recordação espiritual evanescente. O sujeito que não sabe nem isso deveria ser autorizado a participar do debate religioso, na melhor das hipóteses, só como ouvinte atento e mudo.

Em segundo lugar, o religioso não se distingue do materialista só na superfície intelectual das suas “crenças”, mas na profundidade da sua vida interior, na sua percepção da realidade. O materialista identifica-se com o seu corpo porque não tem capacidade de abstração suficiente para conceber sua pessoa como unidade espiritual, como “tipo” cuja estrutura essencial antecedia como possibilidade sua existência temporal e continuará inalterada como tal depois da morte. “ Tel qu’en lui-même enfin l’éternité le change ”, dizia Mallarmé ante o túmulo de Edgar Allan Poe: a eternidade o transforma enfim naquilo que ele sempre foi. Esse nível de percepção de si é inacessível ao indivíduo sensorialista, hipnotizado pelo fluxo das impressões corporais. Para ele, o discurso espiritual não diz, nada, é vazio, porque trata de realidades que transcendem a sua esfera de experiência. Ele só pode compreender esse discurso como seqüência de afirmativas sobre o universo físico, as quais, não podendo ser testadas pelos meios da ciência de laboratório, só podem ser objeto de “crença” ou “descrença”. Por trás da afetação de superioridade olímpica de um Dawkins ou de um Daniel Dennett existe a consciência humilhante e dolorida de uma deficiência psíquica, de um handicap espiritual deprimente. É por isso que seu “materialismo” não é só uma teoria, é uma atitude integral, carregada de ódio às religiões e de uma vontade radical de eliminá-las da face da Terra. O sentimento de inferioridade e exclusão que corrói as almas desses indivíduos é ainda mais intolerável do que aquele que poderia resultar de qualquer discriminação meramente social ou cultural: o homem privado de acesso à dimensão divina da existência sente-se em vida um condenado do inferno, sua alma é permanentemente acossada por uma inveja espiritual insanável e sem descanso. Ele é, literalmente, um pobre diabo.

Não espanta que tantos materialistas – explícitos ou disfarçados – venham engrossar as fileiras dos intelectuais ativistas e explorar o ressentimento dos excluídos sociais. Incitando estes últimos ao ódio e à revolta contra uma condição social específica que pode ser acidental e passageira, eles buscam alívio para seu próprio sentimento de exclusão, muito mais permanente, geral e insanável.

Também não é de estranhar que muitas vezes os intelectuais ativistas gostem de ostentar o título de “malditos”, dando a este termo a acepção de meros excluídos da sociedade. Essa acepção é falsa, porque em geral eles não são excluídos sociais de maneira alguma, são os queridinhos do sistema, paparicados e bem remunerados. Esse uso do termo é pura camuflagem irônica: eles sabem que são malditos num sentido muito mais real e profundo. São malditos espiritualmente, excluídos da experiência do divino no mundo.

É claro que muitos crentes das religiões são, nesse sentido, tão materialistas quanto Dawkins ou Dennett: estão privados da vivência espiritual e só podem assimilar o conteúdo da religião como “crença”, na esperança de alcançar algum dia, ao menos na hora da morte, uma percepção mais consistente da realidade divina. Só que nessa esperança existe mais sabedoria do que num desespero travestido de orgulhoso desprezo. O puro “crente”, que tem apenas “crença” e ainda não a verdadeira “fé”, está no caminho da vida espiritual. Mas aquele que pensa que toda fé é crença, esse é o mais ignorante de todos os ignorantes, que discursa com ares de certeza tanto mais infalível quanto menos concebe a realidade de que fala.

Mas, voltando aos intelectuais ativistas, dois acontecimentos recentes ilustram da maneira mais enfática o espírito que anima essas criaturas.

O primeiro, naturalmente, é a pressa indecente com que o prof. Roberto Mangabeira Unger aceitou um cargo no governo que ele vinha insistentemente rotulando – aliás com razão — de “o mais corrupto da nossa história”. Acrescentando à obscenidade o cinismo, o ex-professor de Harvard prontificou-se a retirar suas críticas, atribuindo-as à ingenuidade de ter acreditado na mídia antipetista, sem nem mesmo lhe ocorrer que alguém pudesse desejar saber por que o arrependimento de tê-las publicado só lhe veio depois do convite para o ministério, nem um minuto antes.

O objetivo do intelectual ativista é sempre e invariavelmente o poder. Sua atividade intelectual é apenas um instrumento ou um derivativo provisório, sem qualquer significado em si mesmo. Não li toda a obra do prof. Unger, mas a parte que li não continha uma só página de análise da realidade: só a expressão obsessivamente insistente de projetos, de utopias, de deveres que as pessoas deveriam cumprir se elas tivessem a felicidade de ser o prof. Unger e se o mundo não fosse injusto ao ponto de ter feito desse profeta iluminado um simples professor universitário e não uma reencarnação de Júlio César ou Gengis-Khan. O prof. Unger sempre discursa na clave do “dever ser”, com profundo desinteresse pelo “ser”. Ante a oportunidade de exercer ainda que uma migalha insignificante de poder no governo podre de um país falido, situado na extrema periferia do mundo, ele não se fez de rogado como Jonas ante o chamamento divino. Mais que depressa, atirou ao lixo a camuflagem de estudioso e mostrou o que é: um oportunista afoito, ávido de meios para “transformar o mundo” à sua imagem e semelhança.

Mas, já que ele se arrependeu de suas próprias palavras, deu-me também a oportunidade de me arrepender das minhas: qualquer coisa que eu tenha dito ou escrito em louvor do prof. Unger fica nula e sem efeito a partir da sua nomeação. Os atos públicos de um filósofo são interpretações – às vezes radicais – que ele dá à sua própria filosofia. Sócrates, enfrentando a morte com um sorriso, deu o melhor esclarecimento possível sobre como se deveria interpretar sua teoria da vida eterna. Integrando o establishment que antes ele fingia desprezar, o prof. Unger mostrou o que é sua filosofia: mero discurso de autopropaganda, trocável por qualquer outro que sirva ao mesmo objetivo.

O outro acontecimento foi o discurso bombástico da professora de Literatura Inglesa, Nikki Giovanni, na noite de vigília da Virginia Tech em homenagem às vítimas de Cho Seung-hui. “Nós somos a Virginia Tech! Nós não seremos derrotados”, exclamava ela, adornando com uma retórica de triunfalismo retroativo o vexame da inermidade de milhares ante um agressor solitário e sendo instantaneamente celebrada pela mídia como uma espécie de antípoda do assassino sul-coreano, a encarnação da vida invencível da coletividade em contraste com a morte de uns quantos indivíduos.

Nenhum outro orador seria melhor para essa farsa. Nikki Giovanni foi quem, nas suas aulas, deu sentido e orientação prática à loucura de Cho Seng-hui, infundindo-lhe o ódio assassino aos protestantes, aos judeus e aos brancos em geral. As duas peças de teatro, deformidades literárias medonhas nas quais o criminoso em preparação anuncia ao mundo as intenções que lhe passavam pela alma, são um traslado quase literal de poemas da sua professora, onde é explícito e enfático o apelo à matança dos “honkies” – o equivalente branco do pejorativo “nigger”. Num deles, “ The True Import of Present Dialog, Black vs. White ” (“O verdadeiro alcance do presente diálogo, negro versus branco”), ela não deixa por menos: “ We ain’t got to prove we can die. We got to prove we can kill ” (“Não temos de provar que somos capazes de morrer. Temos de provar que somos capazes de matar.”) E, num convite direto: “ Do you know how to draw blood? Can you poison? Can you stab-a-Jew? Can you kill huh? ” (“Você sabe como arrancar sangue? Sabe envenenar? Sabe esfaquear um judeu? Você sabe matar, hein?”). Mais adiante, ela sugere ao negro urinar numa cabeça loira e em seguida arrancá-la. Num outro poema, dedicado ao espirito das revoluções, ela propõe um kit especial para crianças, com gasolina e instruções sobre como montar um coquetel Molotov. Seus ensaios estão repletos de estereótipos racistas destinados a fomentar o ódio aos brancos. Mas talvez a melhor expressão da mentalidade que ela transmite a seus alunos seja a tatuagem que ela traz no braço, “Thug life”, (“vida de bandido”), em homenagem a Tupac Shakur, um delinqüente raper assassinado num tiroteio por outros rapers em 1997.

A história de Nikki Giovanni, que jamais aparecerá na mídia brasileira, pode ser lida no artigo de Steve Sailer, “Virginia Tech’s Professor of Hate” (“A professora de ódio na Virginia Tech”, publicado na revista de David Horowitz, Front Page Magazine. Mas quem melhor a resumiu foi um dos leitores que enviaram comentários ao blog de Sailer: “ Quantas vezes Cho Seng-hui ouviu na Virginia Tech as palavras ‘privilégio branco’? ” Não dá para contar, mas, só no website da escola essa expressão aparece 33 vezes.

Enfie todo esse ódio na mente de um maluco e ele só não sairá matando gente se estiver dopado. E a própria Nikki Giovanni sempre soube que Cho não era bom da cabeça. Mas que importa? Os intelectuais ativistas, por definição, são sempre inocentes das conseqüências de seus atos e palavras. Se o prof. Unger disse tais ou quais coisas contra o governo, a culpa é da mídia que o enganou, pobrezinho. Se Cho Seng-hui levou à prática o ódio anti-branco que uma professora lhe inoculou, a culpa é dos próprios brancos, do sistema, do capitalismo, do mundo mau – de todos, menos dela.

Essa crença do intelectual ativista na sua própria inocência e na culpa radical dos outros é uma herança direta das heresias do fim da Idade Média, cuja continuidade nas ideologias revolucionárias modernas é hoje uma realidade histórica bem provada.

Às vezes não é só convicção de inocência. É um sentimento de ser vítima no instante mesmo em que se comete o crime. É uma inversão total da relação de atacante e atacado. Se querem um exemplo, vejam o projeto de lei PLC 122/2006, que quer punir como crime toda crítica ao homossexualismo. A desculpa é proteger uma comunidade discriminada, mas que comunidade é mais discriminada do que os cristãos, que morrem aos milhares toda semana, nos países islâmicos e comunistas, e que nas democracias ocidentais são cada vez mais privados do direito de expor sua fé em público? É contra eles que essa lei iníqua se volta diretamente, numa ameaça tenebrosa aos seus direitos mais elementares – uma perseguição aberta e cínica incomparavelmente mais temível do que qualquer risco que os homossexuais possam ter sofrido neste país ou em qualquer outro. O que esse projeto consagra como lei é a inversão de nomes entre o perseguidor e o perseguido, entre o opressor e o oprimido, fazendo o primeiro de coitadinho e o segundo de criminoso.

Se a história da origem das ideologias modernas fosse contada ao público, este reconheceria imediatamente, nessa lei, nas declarações do prof. Unger ou no discurso da profa. Nikki Giovanni, a mesma velha pretensão demencial dos cátaros e dos albigenses à pureza intocável, coroada pelo direito de condenar o universo.

Como ninguém conhece isso, a ordem dos tempos também fica invertida, as velhas reivindicações de heresiarcas assassinos aparecem como o cume do progresso e das luzes, a objeção racional às suas pretensões se torna “fanatismo” e “fundamentalismo opressor”.

***

Sobre os intelectuais ativistas, leiam, se puderem, estes dois livros:

(1) “A Traição dos Intelectuais”, de Julien Benda, trad. Paulo Neves, São Paulo, Editora Peixoto Neto, 2007. É tradução de “ La Trahison des Clercs”, um clássico de 1927 em que o filósofo judeu, um dos homens mais lúcidos que a França já produziu, denuncia a abdicação geral dos deveres da inteligência por parte de intelectuais ávidos de poder. O editor Peixoto Neto foi meu aluno. Não o vejo há muitos anos, mas não é errado um professor ter orgulho de seus ex-alunos quando estão fazendo um belo trabalho.

(2) “Le Socialisme des Intellectuels”, de Jan Waclav Makhaïski, trad. e ed. Alexandre Skirda, Les Éditions de Paris, 2001. Makhaïski, autor polonês que escrevia em russo, foi militante esquerdista e conheceu bem os meios revolucionários russos e internacionais no fim do século XIX. Das suas observações e experiências, tirou as seguintes conclusões: (1) a classe revolucionária efetiva não eram os proletários, mas os intelectuais; (2) eles não eliminariam o capitalismo, mas o modificariam até que ele começasse a trabalhar mais em proveito deles do que dos capitalistas. Batata. Não deu outra.

A chacota geral do mundo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de abril de 2006

Quem quer que saiba o que é lógica tem a obrigação de saber também que, se a demonstração da existência de Deus pode ser difícil, a da Sua inexistência é absolutamente impossível. Tanto é impossível que nenhum ateu jamais tentou sequer formulá-la. Todos limitam-se a argumentos periféricos e ocasionais, voltados antes a detalhes de doutrina religiosa, perfeitamente discutíveis em si mesmos, do que ao centro inexpugnável da questão.

Essa impossibilidade não era desconhecida dos maiores pensadores ateus do passado, que a contornavam sem poder enfrentá-la. A quase totalidade dos que polemizam hoje em favor do ateísmo – e eles ultimamente se multiplicam como ratos de esgoto – não têm o menor pressentimento dela, embora esbarrem nas suas fronteiras a cada instante. A maioria apela em última instância ao argumentum ad ignorantiam, declarando com patética inocência que aquilo que desconhecem não pode existir. Esses são invencíveis na discussão, pois nenhum argumento tem o poder de infundir inteligência no ouvinte que uma sólida aliança da genética com a má educação tornou irremediavelmente estúpido. Sob esse ponto de vista, o ateísmo parece ter um futuro brilhante.

A tese ateística não sendo logicamente defensável até suas últimas conseqüências, os inimigos de Deus acabaram-se distribuindo em tribos diversamente localizadas, cada qual atacando o problema por um pedacinho da borda, não na esperança de chegar um dia ao centro, mas na de vencer a platéia pelo cansaço, persuadindo-a enganosamente de que a soma infindável de argumentos relativos tem o valor e a autoridade de uma prova absoluta.

As principais dentre essas tribos são as seguintes:

a) Os ateus propriamente ditos, que mesmo não sabendo disto são campeões da fé, na medida em que apostam naquilo que ninguém jamais poderá provar. Muitos deles, abdicando previamente de enfrentar a dificuldade intransponível inerente à sua tese, dispendem energias colossais em operações diversionistas como a do dr. Richard Dawkins, apegado à esperança de que a simples hipótese de poder o mundo ter surgido sem Deus, se formulada com sofisticação matemática bastante, já venha a resolver o problema inteiro, como se uma possibilidade teórica pudesse, por si, ser prova de realidade efetiva.

b) Os deístas, que, cientes da impossibilidade de livrar-se completamente de Deus, tratam de diluí-Lo numa noção tão geral, tão vaga e tão abstrata que, no fim das contas, é como se Ele não existisse. A melhor solução para eles é a teoria do deus ocioso – muito em voga no tempo do mecanicismo renascentista – o qual teria criado o mundo segundo regras tão fixas e imutáveis que toda interferência do criador se tornou desnecessária uma vez pronto o mecanismo do mundo. É a imagem do relojoeiro que, terminada a construção, dá corda no relógio e vai dormir. Não precisamos discutir essa puerilidade.

c) Os agnósticos, que professam voltar as costas ao problema de Deus e, modestamente, lidar apenas com questões acessíveis aos métodos da moderna ciência natural, mas, feito isso, proíbem a investigação de qualquer objeto que esteja fora do alcance desses métodos ou proclamam abertamente a inexistência dele, mostrando ser ateus disfarçados que optaram por dificultar o acesso àquilo cuja inexistência não puderam provar.

d) Os gnósticos, que admitem a existência do criador mas proclamam que ele é mau, que fez o mundo contra a vontade do verdadeiro deus, ente espiritual puríssimo que jamais sujaria suas excelsas mãos numa porcaria dessas; donde se segue a obrigação máxima do crente gnóstico, a qual consiste em destruir o mundo ou modificá-lo radicalmente, de preferência destruindo-o primeiro para depois substituí-lo por algo de totalmente diferente. Dessa proposta dupla do movimento gnóstico nasceu uma pluralidade caótica de seitas, das quais algumas se transformaram em movimentos de massa a partir do século XVIII, gerando as ideologias revolucionárias do anarquismo, do comunismo, do nazismo, do fascismo, do positivismo e da tecnocracia, bem como, para além delas, a proliferação de ocultismos da “Nova Era” e o plano da “Nova Ordem Mundial” ao qual esses ocultismos não servem senão de instrumento provisório.

O gnosticismo é a ideologia suprema do nosso tempo, destinada a reinar soberana sobre uma humanidade idiotizada tão logo as religiões tradicionais se tornem incompreensíveis para as multidões e possam ser sintetizadas num culto biônico sob a administração das Nações Unidas ou órgão equivalente auto-incumbido das funções de governo do mundo. A proposta é tão virulenta, absurda e infame que, embora já esteja em fase avançada de implementação (v. o livro de Lee Penn já várias vezes citado aqui, False Dawn), jamais é apresentada em público com franqueza, apenas difundida indiretamente através de eufemismos anestésicos.

Na verdade, o ateísmo, o deísmo e o agnosticismo já não têm qualquer energia própria. Propugnados por saudosistas do iluminismo voltaireano e do cientificismo positivista, tornaram-se instrumentos auxiliares que concorrem para criar a confusão necessária à implantação da nova religião universal, sendo por isso fomentados e subsidiados pelas mesmas fontes que a originam, entidades perfeitamente respeitáveis em aparência que são também as forças propulsoras de movimentos revolucionários e subversivos em várias partes do mundo.

Até há algum tempo, tudo isso era apenas uma suspeita, e a investigação dos fatos por trás dela se misturava inevitavelmente a doses maciças de especulação imaginária, preconceitos monstruosos, desinformação proposital e um bocado de pseudociência. Foi a época das “teorias da conspiração”.

Hoje, os mesmos avanços tecnológicos que deram a esse movimento o impulso formidável da organização em “redes” tornaram fácil identificar essas redes e todas as suas conexões internas e externas, apreendendo a unidade por trás de uma multiplicidade que de outro modo seria desnorteante. O simples estudo da circulação de dinheiro entre fundações, governos, ONGs, movimentos terroristas e quadrilhas de narcotraficantes basta para tornar a realidade da subversão gnóstica mundial demasiado visível para que se possa continuar a ocultá-la mediante o apelo a evasivas difamatórias destinadas a intimidar o investigador. Um exame acurado dos sites http://www.activistcash.com e http://www.discoverthenetwork.org dará ao leitor uma idéia precisa do que estou dizendo. Estudos como The Marketing of Evil, de David Kupelian (Nashville, Tennessee, WND books, 2005), Machiavel Pedagogue, de Pascal Bernardin (Cannes, Édition Notre-Dame das Graces, 1995), Good Bye, Good Men, de Michael S. Rose (Washington DC, Regnery, 2002), The Deliberate Dumbing Down of America, de Charlotte Thomson Iserbit (Ravenna, Ohio, The Conscience Press, 1999) e The ACLU vs. America, de Alan Sears e Craig Osten (Nashville, Tennessee, Broadman & Holman, 2005), tirarão o restante da dúvida. Os nomes das mesmas organizações — a “Ford Foundation”, o “Open Society Institute de George Soros”, a “John D. & Catherine T. MacArthur Foundation”, a “Carnegie Corporation of New York” e o “Council on Foundations”, entre uma centena de outras — aparecem com tão obsessiva freqüência entre os financiadores de movimentos subversivos e os do governo mundial, que já não é possível deixar de enxergar a ligação entre essas duas forças aparentemente díspares, uma voltada para a disseminação do caos, outra para a cristalização da Nova Ordem, tão articuladas entre si quanto as duas operações alquímicas da dissolução e da coagulação.

Contra esse assalto geral às bases da civilização, os pontos de resistência são hoje as religiões tradicionais, o Estado constitucional americano e o Estado de Israel.

Das religiões, cada uma está mais corroída que a outra. O cristianismo, ainda forte nos EUA e no Leste Europeu e em plena expansão na Ásia e na África, está praticamente destruído na Europa ocidental e dominado pelo esquerdismo na América Latina. O Islã tradicional, evaporado, tornou-se apenas uma figura de retórica no discurso radical que a mídia do Ocidente, confundindo propositadamente as coisas, rotula de “fundamentalista”. O judaísmo está assolado daqueles tipos que Don Feder chama de “judeus Seinfeld”, para os quais as três solenidades judaicas fundamentais são o Bar-Mitzvah, o Rosh-Hashaná e o aniversário da Barbara Streisand.

A América está ameaçada desde dentro pela potente simbiose das fundações milionárias com o esquerdismo revolucionário, solidificada pela mídia chique e hoje mentora inconteste do Partido Democrata.

Israel, cercada de três dezenas de países hostis, e talvez recordista mundial de traidores e muristas per capita, sobrevive não se sabe como. Voltado à sua destruição urgente, o anti-semitismo adquire novos contornos, mais sutis e enganadores, que não podem talvez ser compreendidos senão à luz do estudo empreendido pelo rabino Marvin S. Antelman, To Eliminate the Opiate (Jerusalem, Zionist Book Club, 2 vols., 1988 e 2002), que um dia comentarei aqui em detalhe.

Minar esses três pontos de resistência é obviamente prioritário para a Nova Ordem Mundial. Daí fenômenos estranhos como a súbita revivescência do cientificismo, já totalmente demolido pelos maiores filósofos da primeira metade do século XX – Husserl, Jaspers, Lavelle, Berdiaev, entre outros – mas facílimo de impingir a novas gerações que não tiveram acesso universitário às obras desses pensadores ou que foram preventivamente imunizadas contra eles por injeções maciças de desconstrucionismo, chomskismo, multiculturalismo e outros estupefacientes. Na esteira desse fenômeno vem o crescente anticristianismo da mídia e do show business, cada vez mais brutal e descarado, atuando sobretudo através do expediente orwelliano da “reforma do vocabulário”, na qual antigos rótulos pejorativos reservados a extremismos insanos são repentinamente ampliados para atingir a massa inteira dos fiéis, bastando, por exemplo, um cidadão de hoje em dia ser contrário ao aborto para receber o epíteto de “fundamentalista” ou “fanático teocrata”. Acompanha esse cerco a escalada judicial, impondo cada vez mais restrições à liberdade de culto, estrangulando organizações religiosas mediante proibição de contribuições e criminalizando a simples expressão da fé em lugares públicos. Na mesma linha vem a súbita proliferação de pretensas obras de arte que se notabilizam exclusivamente pela astúcia da blasfêmia proposital destinada dessensibilizar a população mediante o truque sórdido do escândalo repetido. Não é necessário dizer que esses empreendimentos vêm geralmente subsidiados pelas mesmas fontes acima citadas.

A onda antiamericanista e antiisraelense, a mais vasta campanha de ódio que já se viu no mundo, subindo no tom até a perda completa do senso das proporções, abriu as portas da grande mídia a um tipo de jornalismo porco que décadas atrás só se via na imprensa partidária comunista. O desinformante profissional e o agente de influência são hoje aceitos como modelos de jornalismo, dominando não só as redações como também os órgãos sindicais da classe, donde exercem sobre o conjunto da profissão um controle monopolístico que torna a censura desnecessária.

Nesse panorama, não é de espantar que ateus de velho estilo, reencarnações de Haeckel e Renan, reapareçam brandindo os mesmos velhos argumentos já mil vezes desmoralizados, mas agora reencorajados em suas pretensões “científicas” pela produção editorial de lixo gnóstico e ocultista em doses avassaladoras, sufocando a oposição pela força da gritaria ricamente subsidiada, facilmente ecoada pelo trabalho voluntário de uma multidão de chimpanzés no Terceiro Mundo.

Que o pretenso materialismo científico apareça tão intimamente aliado à onda ocultista e satanista não deveria surpreender a ninguém. Hoje sabe-se que a fonte mesma do cientificismo – a rebelião iluminista – não brotou senão da mesma fonte gnóstica de onde nasceram o teosofismo e a Nova Era.

Fenômenos como “O Código da Vinci” e “O Evangelho de Judas”, tão manifestamente subsidiários da pseudo-religião mundial em preparação, não têm nenhum significado intelectual em si mesmos e não podem ser discutidos exceto como dados sociológicos de uma época que dá testemunho contra a inteligência humana. Os velhos ateísmos cientificistas que emergem das tumbas não são senão um detalhe patético a mais na chacota geral.

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