Posts Tagged responsabilidade moral

Inocente como um feto

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de maio de 2012

O traço mais pitoresco do analfabeto funcional é que ele não compreende o que diz. A maneira mais rápida e fácil de diagnosticar isso é verificar se as afirmações dele conduzem, de maneira imediata e incontornável – não remota e forçada – a conseqüências que ele mesmo não subscreve de maneira alguma.

Num de meus últimos programas de rádio, critiquei en passant o sr. Rodrigo Constantino por conceder ao Estado, cujo poder ele abomina e diz querer limitar por todos os meios, o mais alto e presunçoso dos poderes, que é o de conceder ou negar a condição de ser humano a uma criatura proveniente de pai e mãe humanos.

Vermelho de raiva – literalmente –, ele colocou na internet um vídeo em que me acusava de mentiroso, jurando que falsifiquei o sentido de suas palavras; que nunca lhe passara pela cabeça atribuir ao Estado tamanha prerrogativa.

Nem precisava. Sei perfeitamente que essa idéia jamais lhe passou pela cabeça. Passou a quilômetros de distância dela, sem nem mesmo roçar-lhe a carapaça, quanto mais o conteúdo, se algum existe. Nem eu afirmei o contrário.

Afirmei, sim, que aquela conseqüência, por menos que o sr. Constantino o percebesse, decorria logicamente, necessariamente, imediatamente, da sua opinião quanto ao começo da vida humana. E afirmo agora que, ao bradar contra a conseqüência sem abdicar da premissa que a impõe, ele dá prova cabal de que não entende o que diz.

Qualquer pessoa na posse normal das suas faculdades mentais percebe que, se a condição humana não é inerente ao feto desde o instante da concepção, alguém terá de decidir em que instante do processo gestativo essa condição se anexa a ele. É isso, precisamente, o que advoga o sr. Constantino: ninguém é humano por natureza, desde o instante é concebido. Torna-se humano depois. Quem decide o “quando”? Como dessa decisão depende o direito – ou não – de interromper a gestação mediante um aborto, é lógico que terá de ser uma decisão legal, imposta a todos os membros da sociedade pela força do Estado. Logo, torna-se prerrogativa do Estado determinar o momento em que o feto em gestação, até então inumano, se torna humano e passa a ter direitos humanos.

Não há uma terceira hipótese concebível.

A conseqüência, por ir flagrantemente contra as convicções liberais e anti-estatistas que ele alardeia com tanta paixão, parece abominável ao sr. Constantino. Mas ela decorre inapelavelmente da sua própria opinião segundo a qual a condição humana não é um dado imediato, inerente ao puro fato de o nascituro ter sido concebido por dois seres humanos, e sim o resultado de uma decisão posterior tomada por terceiros. O único terceiro que pode impor essa decisão é, com toda a evidência, a autoridade legal, o Estado.

Defender uma opinião sem arcar com o ônus das suas conseqüências é, no mínimo, uma irresponsabilidade. Mas toda responsabilidade cessa quando o emissor da opinião dá provas de não ter percebido conseqüência nenhuma. O sr. Constantino não só provou isso, mas provou também que, mesmo depois de alertado, continua incapaz de percebê-la – e isto ao ponto de atribuir enfezadamente a mim, que só apliquei à sua opinião uma regra elementar da lógica dedutiva, o desejo perverso de falsificar o sentido das suas palavras. A prova de inépcia suspende, automaticamente, a responsabilidade moral, civil e penal.

Ninguém nega que o sr. Constantino seja, na sua dupla e contraditória atitude, perfeitamente sincero: ele quer porque quer que o feto não seja humano desde a gestação, mas também rejeita enfaticamente, apaixonadamente, a hipótese de que ele se torne humano mais tarde por decisão legal. Ele usa a primeira afirmativa como argumento para justificar a legalização do aborto, mas ao mesmo tempo não aceita que uma coisa tenha algo a ver com a outra. Se ele percebesse nisso alguma incongruência, e continuasse, por malícia, a defender a opinião incongruente, seria um farsante, não um genuíno analfabeto funcional. Mas ele não percebe nada. Está inocente: inocente como um feto.

Há indivíduos que desejam casar mas permanecer solteiros. Outros querem falar grosso como homens adultos mas continuar desfrutando do colinho da mamãe e da proteção do papai. Outros, ainda, querem que dois mais dois sejam quatro sem deixar de ser cinco.

Todos são sinceros. Todos são inocentes.

A diferença que os separa do sr. Constantino é que, em geral, eles não se pavoneiam de ser porta-vozes da “razão”, nem proclamam que quem discorde deles é um fanático religioso, um obscurantista, o apóstolo de uma ditadura teocrática ou coisa pior. Contentam-se com desfrutar da sua inépcia em privado, sem desejar impô-la como norma ao restante da humanidade.

Serei um malicioso, um conjeturador de hipóteses rebuscadas, um “teórico da conspiração”, ao supor que o estado terminal em que se encontram os partidos “de direita” do Brasil deve algo ao fato de aceitarem como doutrinários pessoas da estatura intelectual do sr. Constantino?

A ciência contra a razão

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 7 de janeiro de 2009

Aquilo que hoje se chama orgulhosamente de “ciência”, pretendendo-se com isso designar a instância última e suprema no julgamento de todas as questões públicas e privadas, nem é uma entidade univocamente reconhecível, nem muito menos um conhecimento que tenha em si seu próprio fundamento.

A possibilidade da existência de algo como a “ciência” repousa numa variedade de pressupostos que nem podem ser eles próprios submetidos a teste “científico”, nem muito menos fornecem qualquer base racional para dar à dita “ciência” a autoridade da última palavra não só nas questões gerais da existência humana, mas até no próprio domínio especializado de cada área científica em particular.

Só para dar um exemplo elementar, sem as palavras “sim” e “não” nenhum raciocínio lógico é possível. Nenhuma ciência pode nos dizer o que elas significam. Toda a lógica formal baseia-se nessas duas palavras, e a própria lógica formal não pode defini-las. Qualquer definição lógico-formal que se ofereça para elas será sempre puramente tautológica, nada dizendo em si mesma e baseando enfim toda a sua compreensão no apelo à experiência pessoal do ouvinte ou leitor. Se dizemos, por exemplo, que o sentido de “sim” é anuência, concordância, aceitação, etc, nada afirmamos exceto que dizer sim é dizer sim. Do mesmo modo, o “não” não pode ser definido como rejeição, impugnação, etc., pela simples razão de que o sentido dessas palavras consiste precisamente em dizer não. O único significado possível da palavra “sim” é o da responsabilidade moral integral que uma pessoa assume ao declarar alguma coisa. Essa responsabilidade, por sua vez, subdivide-se em graus que vão desde a disposição absoluta de morrer pelo que se diz até a mera aceitação provisória de uma hipótese para fins de argumentação, portanto também de refutação. O mesmo acontece com o “não”. Não há como definir essas palavras senão mediante o apelo à responsabilidade pessoal tal como aparece no autoconhecimento subjetivo. Isso quer dizer, simplesmente, que todo emprego puramente lógico-formal desses termos, amputado da sua raiz na experiência moral humana, é apenas um uso convencional e hipotético que não permite distinguir se, no fim das contas, o “sim” quer dizer “sim” ou “não” e o “não” quer dizer “não” ou “sim”.

Fenômeno idêntico acontece com inúmeros outros termos usados no raciocínio científico, como por exemplo “igualdade”, “diferença”, “causa”, “relação”, etc. Nenhuma ciência pode definir esses termos e também não o pode a metodologia científica se tomar como pressuposto a validade do conhecimento científico em vez de fundamentá-lo desde suas raízes. Podemos, é claro, fixar significados lógico-formais para essas palavras, bem como para muitas outras, mas somente como um recorte convencional operado em cima daquilo que elas significam na experiência humana responsável.

Também não teria sentido imaginar que essa dificuldade afeta apenas a expressão do conhecimento científico em palavras e não a substância mesma desse conhecimento. Ou os termos usuais da linguagem científica expressam o conteúdo mesmo e a própria estrutura do conhecimento científico, ou este último é em si um conhecimento indizível e místico cuja tradução em palavras permanece sempre externa, aproximativa e imperfeita.

Em suma, o conhecimento científico – e mais ainda aquilo que hoje se entende popularmente como tal – é uma subdivisão especializada da capacidade racional geral e tem nela o seu fundamento, não podendo julgá-la por seus próprios critérios. O que aqui se entende como “razão” não se resume também às capacidades usuais da linguagem coerente e do cálculo, pois ambas essas capacidades também não passam de especializações de uma capacidade mais básica. A razão é, em primeiro lugar, a capacidade de abrir-se imaginativamente ao campo inteiro da experiência real e virtual como uma totalidade e de contrastar essa totalidade com a dimensão de infinitude que a transcende imensuravelmente. O finito e o infinito são as primeiras categorias da razão, e não me refiro aos equivalentes matemáticos desses termos, que são apenas as traduções deles para um domínio especializado. Dessa primeira distinção surgem inúmeras outras como inclusão e exclusão, limitado e ilimitado, permanência e mudança, substância e acidente e assim por diante. Sem essa imensa rede de distinções e inclusões que constitui a estrutura básica da razão, o método científico seria um nada. É ainda mais estúpido imaginar que, uma vez formado historicamente, o método científico se tornou independente da razão e pode prescindir dela ou julgá-la segundo seus próprios critérios. É a razão, e não o método científico, que confere sentido ao próprio discurso científico, o qual por sua vez não pode dar conta dela no mais mínimo que seja. A “ciência” não pode jamais ser a autoridade última em nenhum assunto exceto dentro dos limites que a razão lhe prescreva, limites estes que por sua vez continuam sujeitos à crítica racional a qualquer momento e em qualquer circunstância do processo científico.

O objeto da razão é a experiência humana tomada na sua totalidade indistinta, só limitada pelo senso da infinitude. O objeto da ciência é um recorte operado convencionalmente dentro dessa totalidade, recorte cuja validade não pode ser senão relativa e provisória, condicionada sempre à crítica segundo as categorias gerais da razão que transcende infinitamente não só o domínio de cada ciência em particular, mas o de todas elas em conjunto.

Afinal, como se constitui uma ciência? Supõe-se que determinado grupo de fenômenos obedece a certas constantes e em seguida se recortam amostras dentro desse mesmo grupo para averiguar, mediante observações, experiências e medições, se as coisas se passam como previsto na hipótese inicial. Repetida a operação um certo número de vezes, busca-se articular os seus resultados num discurso lógico-dedutivo, estruturando a realidade da experiência na forma de uma demonstração lógica, evidenciando, ao menos idealmente, a racionalidade do real. Tudo isso é impossível sem as categorias da razão, obtidas não desta ou daquela experiência científica, nem de todas elas em conjunto, mas do próprio senso da experiência humana como totalidade ilimitada.

A experiência humana tomada como totalidade ilimitada é a mais básica das realidades, ao passo que o objeto de cada ciência é uma construção hipotética erigida dentro de um recorte mais ou menos convencional dessa totalidade. Essa construção nada vale se amputada do fundo desde o qual se constituiu. O apego à autoridade da “ciência”, tal como hoje se vê na maior parte dos debates públicos, não é senão a busca de uma proteção fetichista, socialmente aprovada, contra as responsabilidades do uso da razão.

O mais evidente sintoma disso é a facilidade, a trêfega e saltitante mudança de canal com que os porta-vozes da “ciência” transitam das atenuações relativistas e desconstrucionistas, para as quais todos os discursos são válidos de algum modo, às proclamações absolutistas de “fatos científicos” imunes a toda discussão, tão sagrados que seus contestadores devem ser excluídos do meio universitário e expostos à execração pública. O culto da “ciência” começa na ignorância do que seja a razão e culmina no apelo explícito à autoridade do irracional.

Veja todos os arquivos por ano