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Uma lição tardia – II

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 1 de novembro de 2011

Consolidada na literatura há quase dois séculos, a diferença entre as imaginações morais respectivas da direita e da esquerda acabou se transmutando em automatismo verbal e se espalhando pelos debates públicos, pela mídia, pela linguagem cotidiana. Comprovando uma vez mais a regra de Hugo Von Hofmannsthal de que nada está na política sem ter passado primeiro pela literatura, o modo como os romancistas das duas alas concebem seus personagens politicamente antagônicos tornou-se o modo como a direita e a esquerda se imaginam uma à outra (é claro que me refiro à direita e à esquerda “normais”, institucionais, e não a extremismos loucos, que têm de ser analisados sob outra perspectiva). Quase que invariavelmente, o conservador, ou o “liberal” no sentido brasileiro do termo, concebe o esquerdista como uma alma carregada de boas intenções, inspirada em nobres propósitos, tão-somente um pouco imatura, iludida por uma falsa visão do mundo real e condenada, por isso, a cometer erros colossais. Já o esquerdista raramente fala do seu adversário sem lhe atribuir motivações perversas, sem explicar suas idéias como ferramentas a serviço de tramóias obscuras, desejos egoístas e “interesses inconfessáveis”. Na mais generosa das hipóteses, faz abstração da sua diferença individual, reduzindo a “interesses de classe” tudo o que ele diz ou faz.

A esse fenômeno, tão regular e constante, soma-se um outro, dele derivado e ainda mais acessível à comprovação estatística: os representantes da esquerda legítima, “respeitável”, permitem-se falar de seus adversários numa linguagem de virulência tal que, na direita, somente a minoria de extremistas desequilibrados ousaria usar contra a esquerda. É a “querra assimétrica” verbal, que precede a guerra assimétrica stricto sensu. A vultosa amostragem colhida por Cliff Kincaid em www.aim.org/wls/ e por Fred Gielow em I Can’t Believe You Said That. Hundreds of Liberals Speak Their Minds (Washington D.C., Accuracy in Media, 2008) é mais que suficiente para ilustrar, se não para provar o que estou dizendo. Na literatura como na política, a tendência da direita é para humanizar a imagem do adversário, para torná-lo compreensível em termos de motivações racionais aceitáveis, enquanto na esquerda prevalece o impulso de reduzir a individualidade concreta do direitista a algum esquematismo sociológico despersonalizante, quase sempre repulsivo e odioso.

Essa diferença de imaginação e de linguagem basta para explicar por que a esquerda, embora seja a recordista número um de crimes contra a humanidade, continua se concebendo como a detentora do monopólio das virtudes mais excelsas. Ela pensa assim não porque tenha algum dia feito algum bem capaz de compensar o genocídio soviético, chinês e cambojano, mas precisamente porque é, das duas facções majoritárias em que se divide a arena política do mundo, a mais insensível, a mais brutal e desumana, a menos capaz de estender ao adversário um olhar de simpatia, compreensão e piedade. Na ausência desse olhar, toda comparação é impossível e o senso do bem e do mal se enrijece num muro intransponível entre “nós” e “eles”, onde a diferença já não é de escala, mas quase que de constituição ontológica, separando os seres em duas espécies estanques, tal como no título do romance comunista de Elio Vittorini: Uomini e No. Não espanta que, nessas condições, a absoluta indiferença ou cumplicidade cínica ante o genocídio de centenas de milhões de pessoas coexista pacificamente, na alma esquerdista, com as mais lacrimosas efusões de coitadice quando um terrorista é preso, condenado ou submetido a maus tratos. A esquerda se acha a melhor justamente porque é a pior. A mais humana, porque é a mais inumana. A direita, por sua vez, ajuda solicitamente na manutenção do engodo, na medida em que sua natural ojeriza a deformar a imagem do adversário mediante estereótipos pejorativos acaba se pervertendo numa compulsão de lisonjeá-lo a todo preço e até numa recusa obstinada de enxergar as motivações dele com um mínimo indispensável de realismo. Ambas se enganam a si mesmas, uma a favor dela própria, a outra contra ela própria.

Também não espanta que, mantendo o adversário sob um bombardeio constante de imprecações, ofensas, falsas acusações e apelos sumários ao seu assassinato, a esquerda busque nas mais neutras e inócuas declarações dele um sinal de “hate speech”, de racismo, de homofobia ou de qualquer outra aparência de delito que lhe permita expô-lo à execração pública como um monstro asqueroso e, se possível, privá-lo de sua liberdade e de seus meios de subsistência. Nas universidades americanas, onde a todo momento se ouvem apelos ostensivos ao assassinato de conservadores, basta um destes ou mesmo um professor apolítico insinuar educadamente que talvez os papéis sociais de homens e mulheres sejam distinções naturais em vez de construções culturais arbitrárias, e pronto: o infeliz está sujeito não somente à acusação de racismo e nazismo, mas, por incrível que pareça, a um processo por “assédio sexual”. Não pensem que é exagero meu ou generalização retórica de casos excepcionais. Os processos dessa natureza se disseminaram de tal maneira que a National Association of Scholars, importante entidade de estudiosos conservadores, está espalhando um apelo dramático a todos os reitores de universidades para que coíbam esse uso abusivo das leis de proteção à mulher. Abusivo, é claro, no entender dos conservadores: para o esquerdista – e não me refiro só à extrema-esquerda — é tão natural farejar crime de assédio sexual numa mera hipótese sociológica exposta em sala de aula quanto enxergar uma ameaça iminente de genocídio homofóbico na simples atitude profissional de um psicólogo clínico que tente ajudar a libertar da compulsão homossexual um paciente que lhe peça, que lhe implore para fazer exatamente isso. Novamente, não estou criando hipóteses no ar: o caso da psicóloga Rozangela Justino é (ou deveria ser) bem conhecido no Brasil. Duzentos anos de deformação pejorativa da imagem do “inimigo” desembocam na perseguição tirânica exercida em nome da proteção contra perigos não só inexistentes como até mesmo impensáveis. Embora o extermínio preventivo de adversários hipotéticos tenha sido a prática mais constante da esquerda nas nações sob o seu domínio, é curiosamente a direita que tem a fama de “paranóia”, de enxergar comunistas embaixo da cama. Paradoxo, sim, mas efeito patente da retórica invertida que mencionei acima.

Explicação terapêutica

Olavo de Carvalho


Época, 12 de maio de 2001

Por que o marxismo é uma doença da alma e por que os doentes fogem do tratamento

Quando digo que a honestidade intelectual é incompatível com a contaminação marxista da inteligência, não há nisso nenhuma “tomada de posição ideológica”. Há, sim, a conclusão de mais de 20 anos de estudos, durante os quais me abstive de opinar em matéria política justamente para evitar que uma “tomada de posição” falseasse minha visão do assunto.

Uma das conclusões a que cheguei é que não pode haver honestidade se o opinador não distingue, em suas idéias, o que é conhecimento da realidade e o que é ativa intervenção nela: ninguém pode escapar da ilusão e da mentira se seus pensamentos são profecias auto-realizáveis.

Ora, no marxismo, especulação e ação vêm essencialmente confundidas porque ele rejeita in limine qualquer conhecimento puramente teórico ou contemplativo. Para o marxista, a separação de teoria e prática é “formalismo burguês”: só podemos conhecer a realidade mergulhando de cabeça no processo ativo de sua transformação. Essa idéia penetrou fundo na mentalidade dos intelectuais e hoje impera, seja como dogma estabelecido, seja como pressuposto inconsciente, sobre todos os debates públicos neste país ou onde quer que o marxismo tenha exercido uma influência determinante.

Acontece que essa é talvez a idéia mais enganosa que alguém já teve. Enquanto não a varrermos das cabeças pensantes, não haverá honestidade, sinceridade e realismo em nenhuma discussão política ou cultural.

A “união de teoria e prática” exerce sobre as consciências um apelo muito forte porque nela reconhecem, instintivamente, sua própria linguagem interior, ignorada pelo realismo frio das filosofias científicas. Na esfera da alma individual, teoria e prática são de fato inseparáveis. Quando tomo consciência de um dado de minha realidade pessoal, o conhecimento adquirido se incorpora, imediatamente, a essa própria realidade. O preguiçoso que toma consciência de que é preguiçoso já não é apenas um preguiçoso: é um preguiçoso consciente. A consciência da preguiça já não é pura visão teórica: ela age imediatamente sobre a realidade conhecida e a transforma.

Ora, a escala do coletivo, do histórico, do social, que é onde o marxismo e seus resíduos afirmam resolutamente a união de teoria e prática, é precisamente onde ela não pode se realizar de maneira alguma. Supondo-se, por exemplo, que a visão marxista da classe proletária fosse certa, nem por isso ela se impregnaria automaticamente na prática das lutas proletárias como a consciência da preguiça se impregna na alma do preguiçoso. Entre a teoria na mente de Marx e a revolução proletária no mundo real, algumas décadas de propaganda teriam de ser percorridas. Não há transmissão automática dos pensamentos dos filósofos às ações da multidão. Na verdade, 150 anos de marxismo não bastaram para metê-lo na cabeça dos trabalhadores do mundo, malgrado os prodigiosos esforços da propaganda soviética.

Ao afirmar a unidade intrínseca e essencial daquilo que só pode ser unido por muito trabalho e artifício, o marxismo falseia, na base, os dois pilares da inteligência humana: o conhecimento e a ação.

Quem quer que tenha se deixado levar pelos encantos do marxismo está gravemente contaminado por uma mentira fundamental, que, se não for erradicada, acabará por falsear todo o seu pensamento. Só que, como na escala individual consciência e realidade estão de fato unidas, a falsidade não será só do pensamento: será também da personalidade, dos atos, da vida.

Eis por que combater o marxismo não é só combater uma “opinião” como qualquer outra: é convocar de volta à autenticidade da vida seres humanos que alienaram suas existências no altar de uma farsa e que já não sabem como sair dela. É psicoterapia, no sentido mais nobre da palavra. Se me odeiam por praticá-la, isso reflete apenas o terror pânico com que os fantasmas da neurose reagem ante a chegada da elucidação terapêutica.

Os pensadores e o êxtase

Olavo de Carvalho

O Globo, 10 de junho de 2000

Chega a ser insultuoso chamar os filósofos de “pensadores”. Pensar é ir de uma idéia a outra, seja esvoaçando entre similitudes, seja despencando escada abaixo, do universal ao particular, como um corpo inerte arrastado pela força gravitacional das conseqüências. Um gato realiza a primeira dessas modalidades sem muito esforço, um macaco a segunda. Tão corriqueiras e sem mérito são essas atividades que não podemos parar de praticá-las. É mais fácil suspender a respiração do que deter o fluxo incoercível das sinapses. Não é justo que tipos raros e extravagantes como os filósofos recebam seu nome de algo que todo mundo faz o tempo todo. Alguma originalidade eles têm de possuir, caramba, pelo menos em dose que justifique lhes darmos cicuta para que parem de falar, e depois ficarmos nos perguntando por dois milênios o que é que eles estavam dizendo mesmo.

A originalidade do filósofo consiste em que ele não deixa o pensamento seguir a linha espontânea da associação de idéias ou o automatismo da pura dedução, mas o obriga a sair do seu curso natural e voltar-se para uma coisa que não é pensamento. Essa coisa — o mundo, o ser, a realidade ou como se queira chamá-la — é hostil ao pensamento porque insiste em ter vontade própria e ignora soberanamente as vias gramaticais, lógicas e semânticas por onde o nosso pensar escorre com tanta naturalidade e conforto. “Meus caminhos não são os vossos caminhos, nem os meus pensamentos os vossos pensamentos, diz o Senhor” (Is. 55:8). O pensamento do não-filósofo vive de pensamentos: de uma idéia extrai outra, e outra, e outra, alheio a intervenções superiores, e por aí vai produzindo variações e floreios até que a velhice o obrigue a começar a repetir-se. Daí a facilidade que esse homem tem de acreditar nas suas próprias conclusões.

O filósofo, ao contrário, força seu pensamento a alimentar-se de um material estranho e quase indigerível: fatos, percepções, dados — informações, enfim, que às vezes não têm sequer nomes pelos quais se possa pensá-las. Se o não-filósofo toma como premissas seus pensamentos anteriores ou frases aprendidas, o filósofo se obriga a admitir, como premissa, toda e qualquer coisa que chegue ao seu conhecimento, por mais inassimilável e esquisita que seja. A grande premissa do pensamento filosófico chama-se “o dado”.“Dado”, em filosofia, é o contrário de pensado. “Dado” é o que não fui eu que inventei. “Dado” é o que se impõe por si mesmo, sem que eu precise pensá-lo para que se dê. Tão funda é a obsessão dos filósofos pelo “dado”, que a maior parte deles se devotou à busca do Dado absoluto e primeiro, daquilo que se impusesse mesmo a um pensamento incapaz de pensá-lo. Do “primeiro motor” aristotélico ao “mundo da vida” de Husserl, passando pela “coisa em si” de Kant e pela “substância” de Spinoza, o que os filósofos buscaram foi sempre isto: algo que eles não pudessem inventar. Mesmo o objeto das ciências físicas é já um arranjo intelectual, um recorte operado pela razão no corpo do dado. Só os filósofos se interessam pelo que simplesmente está aí, pelo que o ser diz de si mesmo antes que alguém comece a falar dele.O filósofo é, pois, precisamente o contrário de um “pensador”. Platão chamava-o “amante de espetáculos”. Sim, o que o filósofo ama é aquilo que, vindo do espetáculo do ser, transcende infinitamente a clausura do pensar e do pensado. Por isto ele é também o amante da sabedoria: o caminho para a sabedoria só pode ser “para cima” e “para fora” — o eu pensante sacrifica-se, consente em deixar de ser o centro do mundo para ceder lugar à realidade que o transcende. “Ser objetivo é morrer um pouco”, dizia F. Schuon.

Isto se dá na mais mínima percepção sensível tanto quanto na suprema contemplação espiritual. O encontro com o Dado supremo toma a forma do “êxtase”. Foi preciso milênios de imbecilidade acumulada para que a palavra “êxtase” viesse a significar o arrebatamento de um cretino para dentro de uma caixinha de sonhos; e foi preciso chegar à última degradação para dar esse nome a uma droga incumbida de produzilos. Sonhos, afinal, são coisas pensadas, e é da prisão do pensado que o êxtase nos liberta. O êxtase é a plena presença do dado, é a suprema forma de realismo, aquela perfeita submissão do pensamento ao real, da qual, num plano mais modesto, Hegel deu exemplo ao contemplar por longo tempo uma grandiosa montanha e depois emitir o célebre comentário: “De fato, é assim.” Só o êxtase dá co nhecimento. O resto é pensamento. Augusto Comte — quem diria? — intuiu isso de algum modo ao formular sua máxima: “régler le dédans par le dehors”, modelar o dentro pelo fora. Que outros procurassem ao contrário atrair o homem para “o interior”, não deve nos confundir. Quando Agostinho clama “noli foras ire”, esse “fora” que ele nos proíbe não é aquele a que nos referimos eu e Comte — o dado — mas sim “o mundo” no sentido bíblico do termo: a tagarelice ambiente que, por vir dos outros e ser tão infindavelmente repetida, nos dá a ilusão de ser por sua vez dado e realidade. É o pensamento coletivo que encobre o dado e em seguida nos consola de nossa impotência cognitiva infundindo-nos a ilusão de “fazer história”, de “criar um mundo” com os nossos pensamentos. Agostinho convida-nos a voltarnos da embriaguez do pensado para a autenticidade do ser espiritual, tão “externo” ao pensamento quanto a montanha de Hegel.

Pensar? Que de pensar morresse um burro, nada mais banal. O lamentável é que tantos “vivam” disso, e, não passando de “pensadores”, se arroguem — ou recebam de outros burros — o título de filósofos.

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