Olavo de Carvalho
O Globo, 1 de junho de 2002
Sentimus experimurque nos aeternos esse”, dizia Spinoza: “Sentimos e experimentamos que somos eternos.” Tal é a mais básica vivência humana, aquela que nos constitui como homens, que nos diferencia dos animais, que estrutura o quadro inteiro da nossa percepção e da nossa linguagem. Tal é o fundamento da possibilidade mesma de existir uma sociedade, uma civilização, uma “história”. Eternidade não é simples duração sem fim. Eterno, definia Boécio, é o ser que detém “a posse plena e simultânea de todos os seus momentos”. Não temos essa posse. Nossos momentos são vividos em sucessão, fugindo irreparavelmente. Não obstante, sabemos que o fogo-fátuo que brilhou um instante na superfície das aparências, desaparecendo em seguida, nunca mais será revogado, nunca mais poderá tornar-se “um nada”. O acontecido não desacontece: passado e esquecido, o que uma vez ingressou no real está inscrito para sempre no registro do ser. Cada momento é, nesse sentido, eterno. Se não tivéssemos uma clara antevisão disso, não haveria consciência de tempo histórico. Se não soubéssemos que para além do horizonte que lembramos há milhões de coisas a ser lembradas, tão reais quanto as que lembramos, não haveria memória humana. Muito menos haveria o sistema dos tempos verbais que, em todas as línguas, organizam as vivências de tempos diversos, passados e futuros, reais e possíveis, em torno de um “não-tempo” que é o presente eterno.
Não possuímos a eternidade no nosso ser temporal, mas não poderíamos sequer apreender a temporalidade se nada possuíssemos da eternidade intelectivamente. É uma posse precária, imperfeita. Mas, sem ela, não saberíamos nem mesmo da nossa própria imperfeição e precariedade. Não podemos nem alcançar a eternidade nem pular fora dela. Por isso, dizia Platão, vivemos num território intermediário, num entremundo.
Tal é a estrutura essencial da nossa existência e, ao mesmo tempo, a experiência básica na qual essa estrutura se revela: ser homem é viver na tensão entre o tempo e a eternidade; ser homem humanamente é experimentar essa tensão de maneira consciente e saber que ela é inescapável: sentimus experimurque nos aeternos esse .
Por isso registros dessa experiência observam-se em todas as épocas, em todas as culturas, sem exceção. Sob uma variedade inesgotável de simbolizações, o senso da eternidade e, em oposição complementar a ele, a consciência da precariedade da sua posse são as mais velhas e infalíveis “constantes do espírito humano”.
Não se trata, pois, de uma “doutrina”, de uma “idéia”, de uma “cosmovisão”. Trata-se da realidade básica que símbolos, doutrinas, idéias e cosmovisões expressam de maneiras ilimitadamente variadas, imperfeitas, provisórias. Não é algo que se possa “discutir”. Tudo o que se discute são as expressões. A estrutura da existência está subentendida em tudo o que é humano. Ela institui a forma lógica, lingüística e existencial das disputas, e por isto não é nunca matéria da disputa. Porque toda discussão depende dela, ela não pode ser discutida.
Pode, no entanto, ser ignorada. Pode ficar “fora” do âmbito de consciência de indivíduos ou épocas, e isso tende mesmo a acontecer na medida em que esse âmbito de consciência, alcançando sua plena expressão cultural, tenda a se tomar como auto-suficiente e, desprezando soberanamente os outros indivíduos ou épocas, se substitua à estrutura da realidade, instituindo em lugar dela uma “crença”, uma “idéia”, uma “doutrina” ou um “consenso”. É o império das ideologias.
De início, o esquecimento ou desprezo da realidade é implícito, quase inconsciente. Locke ou Hume não tinham a menor intenção de negar a estrutura da existência: apenas a reduziam a uma “idéia geral”. Assim a realidade já não era mais o quadro existencial das discussões: era uma idéia em discussão. E os filósofos estavam maduros para acreditar que, dominando a idéia, dominavam a realidade.
A reação de Marx, prometendo abolir esse estado de alienação, só fez agravá-lo. Seu apelo a “transformar o mundo em vez de interpretá-lo” propunha-se libertar os homens da prisão da idéia não mediante um retorno à realidade — um arrependimento ou metanóia — mas mediante a instauração de uma nova realidade que, produzida pela ação social deliberada, não poderia ser senão filha da idéia. Aí a idéia já não se substituía à realidade somente na imaginação dos homens, mas na própria situação social criada para isolá-los legalmente da experiência da realidade. Com o materialismo científico, o hospício idealista deixava de ser um projeto, um “ideal”: tornava-se uma “Segunda Realidade” como a chamava Robert Musil, capaz de encobrir a primeira e torná-la inacessível.
Mas uma coisa é a estrutura da existência humana; outra coisa a consciência dela. A consciência pode ser evitada, contornada ou falseada. A realidade, não. Aquele que foge da consciência da estrutura não escapa de viver nessa estrutura. Continua dentro dela, isolado dela pelo Ersatz ideológico que criou, mas suportando-lhe o peso sob o impacto de sucessivos “choques de retorno”, ora sob a forma de fracassos e decepções que, na ausência da disposição para o arrependimento, serão sempre explicados como meras falhas de percurso, ora sob a forma do envolvimento em crimes cada vez mais hediondos cuja culpa será imputada não a seus autores, mas à obstinada resistência das vítimas que se voltam, irracionalmente ou por interesses malignos, contra a promessa de um mundo melhor.
No último estágio da alienação, os crimes tornaram-se notórios e já ninguém crê seriamente no “mundo melhor”. Mas então, como a realidade já ficou muito distante para poder ser recuperada, só resta uma opção: tapar as últimas frestas pelas quais pudessem entrar o senso do real e o apelo ao arrependimento; banir os últimos sinais de uma consciência da estrutura da existência. Isto pode ser obtido pelo expediente de rebaixar esses sinais ao estatuto de “produtos culturais” e, desviando o olhar humano da realidade que havia por trás deles, impugná-los a todos como criações arbitrárias de ideologias pretéritas. É o derradeiro passo da marcha das ideologias: reduzir tudo a ideologia, discurso, construção social. É a Terceira Realidade, infinitamente plástica, dócil, manipulável como um texto em preparação, dentro da qual já se acredita que proibir palavras e mudar o gênero dos substantivos são formas perfeitamente eficazes de mudar a natureza das coisas. O apelo à realidade torna-se então um mero “modo de dizer” entre muitos, e um modo especialmente abominável, pois carrega em si o “ranço autoritário” das ideologias arcaicas. Está, portanto, condenado a desaparecer do repertório das possibilidades humanas socialmente admitidas. A passagem do veto informal que vigora nos círculos acadêmicos até a proibição oficial e geral é apenas uma questão de tempo.