Olavo de Carvalho
O Globo, 23 de fevereiro de 2002
Galileu Galilei foi sem dúvida um homem de gênio. Bertolt Brecht, que o celebrou no teatro, foi no mínimo um talento extraordinário. Também é fato que ambos foram levados a interrogatório, o primeiro pela Inquisição, o segundo por uma CPI do Congresso americano. Mas sua verdadeira afinidade de personagem e autor não está nisso.
Na época do iluminismo, o físico rebelde da Renascença foi consagrado como mártir da ciência, vítima da tirania obscurantista. Mas não foi nada disso. Galileu não sofreu processo por suas idéias, mas por ter insultado o Papa. O pontífice não podia suportar calado a ofensa nem queria castigar o insolente, que era seu afilhado de batismo. Montou então um arremedo de processo, uma “pizza”: seu protegido se submeteria por uns instantes à humilhação de desdizer-se em público e em seguida seria liberado para continuar lecionando o que bem entendesse, sem voltar a ser perturbado pelos inquisidores.
É muito pouco para fazer um mártir, dirá o leitor. Mas o senso das proporções nunca foi o ponto forte da modernidade. Tanto que ela inaugurou a época dos direitos humanos condenando à morte, no prazo de um ano, dez vezes mais gente do que a Inquisição havia matado em quatro séculos. Lembrar essa diferença substantiva entre as trevas medievais e as luzes modernas é, porém, considerado sintoma de mau gosto e prova de reacionarismo. Também não é coisa de pessoa educada lembrar que o próprio termo “iluminismo” não significa só o esclarecimento das idéias, como o pretendia Kant — inventor da “coisa em si”, a doutrina mais obscura e impenetrável que alguém já concebeu —, mas também o culto do “magnetismo animal”, do hipnotismo, do sonambulismo, das sociedades secretas que proliferavam no subsolo como ratazanas alucinadas, bem como de todas as formas de ocultismo, magia negra e satanismo, sem contar o sucesso livreiro das narrativas do marquês de Sade sobre virgens acorrentadas em porões, surradas, estupradas e obrigadas a beber sangue humano. Iluminismo significa, ademais, o amor à eletricidade, energia recém-descoberta que o poeta-filósofo Percy B. Shelley, iluminista retardatário (além de teórico e praticante do incesto, nas horas vagas), viria a celebrar como uma grande esperança para o controle estatal do comportamento: se, como pretendia o iluminista Helvétius, o homem era apenas uma máquina elétrica, deveria ser possível ajeitar-lhe os fios de modo a eliminar as condutas indesejáveis, como por exemplo o cristianismo. Baseado em Helvétius, Shelley fez mil e uma experiências esquisitas que, cientificamente, não deram em nada, mas literariamente inspiraram à sua esposa Mary Shelley os personagens do dr. Viktor Frankenstein e de seu monstro eletricamente controlado. O iluminismo é a filosofia do dr. Frankenstein. A única diferença é que o desventurado médico — formado pela Universidade de Ingolstadt, a mesma onde lecionara Adam Weishaupt, fundador da sinistríssima irmandade secreta dos “Iluminados” — criou um ser estéril, ao passo que aqueles inventados pelos Helvétius, Weishaupts e Shelleys foram tremendamente férteis, gerando o positivismo, o anarquismo, o fascismo, o comunismo, a “New Age”, o abortismo indiscriminado e o império mundial das drogas. A democracia propriamente dita, que nossos manuais escolares celebram como criatura do iluminismo, só vingou então na Inglaterra, onde os discursos iluministas foram rejeitados com vigor e onde o maior sucesso de livraria, na época, foi a “História do jacobinismo”, do abade Barruel, horripilante relato dos crimes iluministas. Foi lendo Barruel que Mary Shelley percebeu a verdadeira natureza dos experimentos de seu marido.
Assim, pois, não espanta que essa época iluminada às avessas tivesse celebrado um peixinho do Papa como mártir da liberdade, ao mesmo tempo que condenava ao esquecimento, como inimigos dessa mesma liberdade, os milhares de padres e freiras decapitados por recusar-se a jurar fidelidade à nova religião estatal de Robespierre.
Mas ainda há pessoas que acreditam na “época das luzes”, e essas pessoas são as que fazem os programas escolares para as nossas crianças e redigem as notícias para gente grande nos jornais e na TV.
Por isso, quando crianças e adultos assistem à peça de Bertolt Brecht sobre Galileu, acreditam estar conhecendo uma versão aproximadamente exata da verdade histórica. Fugitivo do nazismo e vítima de perseguição macartista nos EUA, Brecht estaria especialmente qualificado para compreender a situação existencial de um mártir da ciência.
Mas Brecht não foi propriamente um fugitivo. Muito menos um perseguido. Ele era membro do mesmo partido que ajudara a destruir a social-democracia para entregar a Alemanha aos nazistas que, segundo Stálin, seriam o “navio quebra-gelo da revolução”, a vanguarda do caos que levaria os comunistas ao poder. Desde 1933, a URSS, fingindo hostilidade ao nazismo, colaborava intensamente com o governo de Hitler mediante o intercâmbio de informações entre seus serviços secretos, para a liquidação violenta de suas respectivas oposições internas, bem como emprestando território soviético para o treinamento militar alemão em troca de ajuda técnica para o Exército Vermelho. Brecht não foi para os EUA como refugiado: foi a serviço de Stálin, que tinha planos especiais para o Partido Comunista Americano. Sendo muito difícil coordenar uma revolução desde o outro lado do oceano, o ditador soviético concluíra que o PCA não devia perder tempo tentando organizar o proletariado. Deveria, isto sim, arrebanhar “companheiros de viagem” entre as celebridades das letras e das artes, para dar respaldo moral “neutro” às iniciativas comunistas, assim como entre os milionários de Nova York e de Hollywood, para subsidiar a revolução em outros países. Dois dos principais agentes da operação foram os irmãos Gerhart e Hans Eisler, este último um compositor, autor da “Marcha do Comintern”. Outro foi Grigory Kheifetz, comprovadamente um espião.
Hoje sabemos que Brecht foi estreito colaborador de Kheifetz e dos Eisler. Mas, quando compareceu ao Comitê de Atividades Anti-Americanas, foi apenas como testemunha, não como suspeito. Deu um show de evasivas, recebeu os agradecimentos dos parlamentares e prosseguiu tranqüilamente suas atividades em prol do Comintern, sempre rodeado das atenções do beautiful people de Hollywood. Mais tarde foi para a Alemanha Oriental, onde se tornou dramaturgo oficial do regime, desfrutou das mais gordas verbas teatrais do governo, assinou com notável cara de pau peças escritas por sua mulher, aplaudiu a matança de seus compatriotas pelas tropas russas que sufocaram a rebelião anti-stalinista de 1953 e levou enfim às últimas conseqüências a lógica de sua própria vida, que pode ser resumida em duas de suas frases imortais: “Para um comunista, a verdade ou a mentira são igualmente boas, quando servem ao comunismo” e “Primeiro, o meu estômago; depois, a vossa moral”.
Em Brecht, Galileu veio a encontrar, pois, um dramaturgo à altura do espírito da modernidade que o beatificou.