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Festival retrô

Olavo de Carvalho

Folha de S. Paulo, 6 de outubro 2004

Quanto à influência da filosofia universitária francesa no Brasil, pouparemos ao leitor a descrição dos efeitos da macaqueação de um modelo degenerado.”

(Jean-Yves Béziau)

A ANPOF, Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia, vai realizar de 12 a 22 de outubro, em Salvador-BA, o seu XI Encontro Nacional de Filosofia. Se eu fosse um saudosista doente, iria correndo me inscrever, para ter acesso às últimas descobertas do pensamento brasileiro… da década de 60.

Lendo o programa, tenho a nítida sensação de estar de volta aos tempos da Rua Maria Antônia, quando a estrela de Sartre ainda brilhava, Deleuze e Foucault surgiam como esquisitices sedutoras e o pessimismo corrosivo da Escola de Frankfurt parecia o último recurso para salvar in extremis a reputação declinante do marxismo europeu. A releitura de Platão e dos pré-socráticos com os olhos de Nietzsche e Heidegger enobrecia com um verniz de erudição clássica a esperança de harmonizar o legado grego com um niilismo que, apolítico ou mesmo um tanto reacionário em si, era útil de algum modo ao propósito frankfurteano de demolir a civilização do Ocidente. Alguma atenção periférica sobrava para os últimos rebentos da escola analítica, incumbidos de corroer as resistências espirituais do inimigo desde dentro do seu próprio campo. E não faltavam as homenagens de praxe a Descartes e a Kant por terem criado, ainda que involuntariamente, as condições culturais para o restante da brincadeira. No conjunto, o Partido Comunista orquestrava tudo, hábil na arte gramsciana de aproveitar para fins hegemônicos a variedade de correntes de ação e pensamento mesmo apenas vagamente compatíveis com esse fim.

À margem do processo, os católicos ainda não conquistados para o teilhardismo ou para o culto dominicano de Che Guevara entoavam suas litanias habituais ao tomismo diet de Maritain, só interrompidos pelo retorno de Tarcísio Padilha que trazia da França sua tese sobre a ontologia de Louis Lavelle, uma lufada de ar logo dispersa na mesmice geral.
Os esquisitões e incatalogáveis — Vilém Flusser, Renato Cirell Czerna, Romano Galeffi — prosseguiam sua batalha inglória, amontoados na trincheira do Instituto Brasileiro de Filosofia, aberta por Miguel Reale para dar espaço a estilos de filosofia rejeitados numa universidade que marginalizava seu próprio reitor.

O grosso da corrente seguia o molde uspiano. Em 1968, morria, ignorado pela totalidade dos pigmeus, o único autêntico gigante da filosofia brasileira, Mário Ferreira dos Santos.

Desde então, nada mudou. O Partido — ou pelo menos seu nome — desapareceu, mas a orientação que imprimiu aos estudos filosóficos neste país continua firme e inabalável, graças à obediência passiva das gerações subseqüentes, que nem sabem quem compôs a música que tocam.
Dentre os trabalhos inscritos para o evento baiano, o marxismo domina amplamente o leque de temas, com 73 apresentações. Kant e Nietzsche vêm em seguida, com 56 e 53 respectivamente, logo acompanhados pelos desconstrucionistas, com 52. No quarto lugar, Heidegger (35) empata com Platão, ou melhor, com Platão lido por Heidegger. O restante distribui-se entre Freud, os clássicos, os analíticos e outros temas usuais. Aristóteles, que amargou trinta anos de exílio e voltou após o meu Aristóteles em Nova Perspectiva (publicado em 1996 e jamais citado nesses ambientes castos), é objeto de 26 comunicações. Hegel merece vinte, e Merleau-Ponty, o apologista de Stalin, dez. De tudo o que aconteceu na filosofia mundial no último meio século, minutos preciosos são esfarelados com pensadores de importância episódica, como John Rawls, Robert Brandom ou Gianni Vattimo. Os filósofos criadores mais poderosos das últimas seis décadas, Bernard Lonergan, Xavier Zubiri, Leo Strauss, Frithjof Schuon, Seyyed Hossein Nasr, Eric Voegelin, Ken Wilber, Wolfgang Smith, continuam perfeitamente ignorados, com as possíveis e meritórias exceções de uma comunicação sobre o pensamento iraniano, onde Nasr deve aparecer ao menos como referência, de outra sobre integração da consciência que talvez mencione Wilber e de uma terceira com o título altamente significativo “A novidade da filosofia de Xavier Zubiri”. Novidade que nos anos 50 já era objeto de longos estudos de Julián Marías.

É um festival retrô em toda a linha. Mas, ali dentro, ninguém sabe disso. Garantidos pela autoridade de Dona Marilena Chauí, mentora do evento, os participantes acreditam estar na vanguarda dos tempos. As rodas da história mental, no Brasil, continuam girando com uma defasagem regulamentar de cinqüenta anos em relação ao mundo civilizado, mas quem vai se dar conta disso, se a percepção média acompanha o passo da elite acadêmica? O positivismo chegou aqui quando os ossos de Augusto Comte se esfarelavam. O marxismo, quando sua credibilidade sofria violentos abalos com a revelação do genocídio soviético. O estruturalismo-desconstrucionismo continua em voga, dez anos depois de o episódio Sokal ter evidenciado a charlatanice de seus próceres e vinte depois de Malcolm Bradbury os ter exposto ao ridículo na sátira My Quest for Mensonge, biografia do filósofo inexistente Henri Mensonge, que, fidelíssimo ao espírito da coisa, se desconstruíra a si mesmo, desaparecendo por completo desde antes do nascimento. Mas o apego dos brasileiros às suas antigas afeições é tanto, que chega a inverter a ordem dos tempos, como nos amores espíritas de além-túmulo. De quando em quando, ainda aparece algum jovem universitário, de dedo em riste, dizendo que sou um monstro antediluviano, que só chegarei à atualidade da evolução animal quando ler Les Mots et les Choses (1966). Assim caminha a brasilidade.

Mas isso não abala a consciência de ninguém. De Cruz Costa a Paulo Arantes, a ortodoxia uspiana sempre trouxe consigo a autovacina contra constatações deprimentes, explicando a própria inépcia pelo subdesenvolvimento econômico (afinal, quem filosofa sem uma boa conta bancária?) e este último é, claro, pela “teoria da dependência”. Logo, ninguém precisa se acusar de nada. É tudo culpa do George W. Bush.

A receita dos mestres

Olavo de Carvalho


O Globo, 31 de janeiro de 2004

Karl Marx ensinava que, mesmo investida daquele poder absoluto que só a violência armada garante, a esquerda revolucionária jamais deveria se apressar em estatizar a propriedade dos meios de produção da noite para o dia, arriscando provocar a fuga de capitais e desmantelar a economia. O certo, dizia ele, era alongar o processo por uma ou duas gerações, usando de preferência o expediente anestésico da taxação progressiva . Ainda mais prudente e sorrateira ela deveria ser, é claro, na hipótese de ter vencido pela via das eleições, que só garantem um acesso limitado ao poder.

Lênin acrescentava que a própria classe capitalista, atraída pela isca dos lucros imediatos oferecidos pelo Estado socialista e cega para as correntes mais profundas da transformação revolucionária, haveria de colaborar alegremente com a lenta e inexorável expropriação de seus bens.

Antonio Gramsci completava o silogismo, concluindo que o Partido não deveria arriscar nenhuma mudança mais drástica na estrutura social antes de ter-se assegurado de três condições: (1) a completa hegemonia sobre a cultura, o vocabulário público e os critérios morais vigentes; (2) o estabelecimento de um unipartidarismo informal através da supressão de toda oposição ideológica, reduzidos os demais partidos, quase que voluntariamente, à tarefa subalterna de criticar detalhes da administração; (3) a fusão de Partido e Estado através da “ocupação de espaços”.

Por seguir fielmente a receita desses mestres, o PT governante adquiriu direitos e privilégios jamais sonhados por nenhum partido comunista do mundo, como por exemplo: (1) o de jamais poder ser chamado de comunista, mesmo quando efetua à plena luz do dia a inserção do Brasil na estratégia comunista internacional; (2) o de autofinanciar-se com dinheiro público em doses crescentes e ilimitadas, através do embuste do “dízimo” que, utilizado por qualquer outro partido, provocaria uma tempestade de denúncias e processos; (3) o de agir em estreita parceria estratégica com organizações terroristas e narcotraficantes, como o ELN colombiano, as Farc, o MRI chileno e os tupamaros, sem jamais poder ser acusado de cumplicidade com o terrorismo ou o narcotráfico; (4) o de criar desde dentro de suas próprias fileiras uma oposição histriônica, que o acusa de “direitista” sem que o público maior atine com a acepção muito especial, quase a de uma senha, que este termo tem nas discussões internas da esquerda e, assim, camuflando ainda mais o curso real do processo político.

Nunca, em cinco séculos, a mentira e a dissimulação dominaram tão completamente o panorama dos debates públicos neste país, outorgando aos condutores do processo aquela “onipotência invisível” a que se referia Gramsci e condenando todos os demais brasileiros à menoridade mental e política.

Um dos instrumentos mais engenhosos utilizados para isso foi a duplicação das vias de ação partidária, uma nacional e ostensiva, denominada oficialmente “PT” ou “governo”, a outra internacional e discretíssima chamada “Foro de São Paulo”, o mais importante e poderoso órgão político latino-americano, cuja mera existência a classe jornalística em peso continua ocultando criminosamente — repito: criminosamente — ao conhecimento de seus leitores. No âmbito circunspecto do Foro, o PT articula suas ações com as de outros movimentos de esquerda continentais. Entre eles, evidentemente, o MST. No plano nacional, isto é, diante dos olhos da opinião pública, PT e MST aparecem como entidades separadas e inconexas. O partido onipotente está, portanto, habilitado a promover a agitação no campo através do seu braço invisível, ao mesmo tempo que, com o visível, encena gestos de apaziguador dos ânimos e mantenedor da ordem.

Dentro do PT há decerto muitas pessoas que têm consciência de tudo isso, e é impossível que pelo menos algumas delas não se envergonhem, em segredo, de colaborar com tanta perfídia e ignomínia. Mas quando ousarão renegar em público a macabra herança comunista que faz de seu partido um aliado e cúmplice de Hugo Chávez, de Fidel Castro e de Kim Il Jong?

 

Casos pessoais

Olavo de Carvalho


 Jornal da Tarde, 30 de janeiro de 2003

Um sintoma da baixeza moral da sociedade moderna é a autoridade quase sacerdotal que nela desfrutam certos tipos aos quais todas as demais culturas, sem exceção, reservavam o último lugar na escala da respeitabilidade pública.

Refiro-me, em especial, à turma do show business: atores, atrizes, roqueiros, locutores, sambistas, modelos.

Para um partido político, o apoio dessas criaturas é uma garantia de aprovação popular, uma fiança dada em nome da inteligência e da cultura aos chavões da retórica partidária.

Desde o advento da democracia, cada partido tem abusado desse recurso fácil, movido pela obsessão da vitória imediata e sem ter na mais mínima conta as conseqüências devastadoras que a coisa pode ter para a cultura, a moralidade e o próprio regime democrático.

Mas nenhum outro se esmerou nisso como o Partido Comunista e os filhotes que espalhou pelo mundo sob denominações variadas.

Desde os tempos de Stalin, um investimento monstruoso em dinheiro e recursos humanos fez do comunismo o senhor quase absoluto dos meios de manipular a opinião pública através da indústria de espetáculos (V. Kenneth Lloyd Billingsley, “Hollywood Party”, Prima Publishing, 1998).

Os astros e estrelas, mais que depressa, acorreram em massa a colaborar no embuste, que dava um verniz de nobreza moral às suas paixões mais vaidosas e aos seus caprichos mais fúteis. A facilidade com que se enganaram a si mesmos para poder enganar os outros evidencia a sua profunda inconsistência humana.

Os atores, por exemplo.

Embora um ator possa ser algo mais que ator, possa ser um artista em sentido pleno e até um pensador como o foram Stanislavski, Jouvet ou o nosso Eugênio Kusnet, em geral o estofo intelectual do ator fica muito abaixo disso e as únicas habilidades requeridas para o bem sucedido exercício da sua profissão residem no talento mimético e na expressividade física, dons pueris que raiam a animalidade.

Dificilmente a opinião de um indivíduo desses terá algum valor especial. Por que ouvi-lo, então, sobre as questões mais altas e difíceis, sobre o destino da humanidade, a guerra e a paz, a religião e a moral?

Não faz o menor sentido, mas tornou-se um hábito tão geral e disseminado que já ninguém contesta a autoridade insigne dos pop stars.

Os efeitos disso na cabeça deles próprios são portentosos: cada um acaba se achando mesmo um sábio, um guia iluminado das multidões, e, arrastado nessa vaidade louca, perde até o mínimo de consciência que deveria servir para o guiamento de sua conduta pessoal.

Um exemplo acaba de nos ser dado por Danny Glover, que, no Fórum Social Mundial, reagiu com a brutalidade de um autêntico zelote do comunismo ao pedido de ajuda para uma causa humanitária que lhe pareceu não convir ao seu credo político.

Há tempos o físico cubano Juan Lopez Linares, residente no Brasil, tenta um reencontro com seu filho Juan Paolo, de quatro anos, retido na ilha pelo cristianíssimo governo de Fidel Castro. Desesperado, foi ao Fórum Social Mundial, onde se encontravam tantos amigos do ditador cubano, no intuito de tentar sensibilizá-los para o seu drama. Quando três membros do Instituto Liberal de Porto Alegre, entidade que dava apoio à viagem de Lopez Linares, viram o astro de “Máquina Mortífera”, imaginaram que não se furtaria a colaborar num esforço cujo êxito só poderia concorrer para a boa imagem dele e do próprio regime fidelista. Glover, um brutamontes de 1m95, partiu para cima dos postulantes, com ganas de agredi-los, sendo impedido pelos seguranças e passando a exibir, aos berros, toda a ruindade dos seus sentimentos. O pai que desejava rever o filho era, no seu entender, “um egoísta”, por querer “tratar de um caso pessoal em vez de enaltecer as qualidades positivas do regime”. Claro: numa ditadura em que as crianças são ensinadas a abjurar dos pais para amar o governante, por que não deveria também um pai abandonar o filho por devoção ao regime? Essa é a moral de Danny Glover. São muitos os que em Hollywood pensam como ele. Por isso não é de estranhar que, enquanto ele faz sermões fidelistas em Porto Alegre, seu companheiro de sucesso, Mel Gibson, sofra toda sorte de discriminações e vexames, segundo denunciou na Fox News, por seu projeto de filmar os Evangelhos de maneira fiel à mensagem cristã. Glover, é claro, não está nem aí. Afinal, o problema de Gibson, como o de Lopez Linares, é apenas um “caso pessoal”.

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