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Herpes mental

Olavo de Carvalho

O Globo, 14 de outubro de 2000

“O PT alcançou sucesso nas eleições porque mudou de discurso, colocando eficiência e moralidade no lugar da ideologia”: tal é uma afirmação que desde há uma semana passa de boca em boca, exatamente como o herpes labialis, propagando-se por contágio epidérmico sem a menor interferência do cérebro. Se chamado a intervir no caso, esse esquecido órgão que outrora prestou relevantes serviços à evolução animal teria talvez chamado a atenção do distinto público para os seguintes detalhes:

• 1. A referida mudança não data da última campanha eleitoral, mas de dez anos atrás. Ela está abundantemente documentada nas edições antigas das mesmas revistas e jornais que agora a alardeiam como novidade.

• 2. Todos os sucessos eleitorais do PT desde há uma década foram sempre atribuídos à mesmíssima causa, que ressurge ciclicamente como o nec plus ultra do diagnóstico politológico bem comportado.

• 3. O discurso da moralidade não é uma alternativa à ideologia, mas obviamente é ele próprio uma ideologia. É a ideologia tradicional da classe média udenista, que elegeu Jânio Quadros — substancialmente a mesma que depois votou em Fernando Collor de Mello.

• 4. O PT adotar esse discurso não significa que tenha mudado nem de ideologia nem de estratégia, mas apenas que a absorção de uma parte dos argumentos ideológicos do adversário foi ali considerada, numa determinada fase dessa estratégia, um expediente útil para a consecução de seus objetivos.

Ninguém que desconheça o modus operandi comunista pode compreender o PT. E quem é que o conhece, hoje, fora dos quadros dirigentes petistas (e emeessetistas, e pecedobistas etc.) que, precisamente, têm interesse em mantê-lo o mais discreto possível? Atualmente, a diferença de horizonte de visão entre a elite esquerdista e seus adversários é a que existe entre um urubu no céu e uma toupeira na sua toca. Não que o petismo seja sinal de superior inteligência. É que, simplesmente, ele tem a seu favor a perspectiva de 150 anos de experiência acumulada dos movimentos revolucionários, continuamente revista e adaptada às circunstâncias pelo esforço intelectual coletivo, ao passo que seus inimigos não têm senão suas opiniões pessoais, frutos de experiências limitadíssimas adquiridas em lutas políticas provincianas. Daí a freqüência com que estes, acreditando-se espertos precisamente porque não têm a menor idéia do tamanho da encrenca em que estão metidos, são feitos de idiotas e acabam colaborando com a estratégia petista pelos mesmos meios com que acreditam poder enfrentá-la.

Um desses meios é a idéia de conquistar o PT para a modernidade capitalista pelo pretenso método pavloviano de cobri-lo de injúrias quando ele “se excede” em passeatas e badernas, e de afagos quando ele “muda de discurso” e se faz de bonzinho. A fragilidade dessa manobra, na qual nossos liberais e conservadores parecem ter apostado tudo, salta aos olhos de quem conheça a história do rato que imaginava ter programado o cientista para que lhe desse um queijo sempre que ele se submetesse a um choque.

Há um século e meio a tradição marxista tem o know how de dosar truculência e sedução segundo um timing perfeito destinado a controlar na mente do seu adversário as quotas de temor e de esperança necessárias a paralisá-lo, desorientá-lo e induzi-lo a colaborar. Perto desse saber acumulado, toda a pretensa esperteza dos politicões tradicionais brasileiros é ingenuidade de meninos. Intelectualmente retardatária, senão retardada, a direita brasileira está hoje infinitamente abaixo de poder compreender as sutilezas de um processo histórico que a esquerda vem sabendo prever e conduzir com mão de mestre. A ascensão eleitoral esquerdista não é senão a manifestação mais espalhafatosa de um fenômeno que qualquer um teria percebido dez anos atrás se não tivesse medo de percebê-lo. Diante desse espetáculo, nossa direita reage como sempre: apegando-se a tranqüilizantes verbais, por medo de sentir medo.

Há pelo menos dez anos a esquerda detém o monopólio das iniciativas psicológicas e os meios de fazer o adversário dizer, a cada momento, o que ela quer que ele diga. Por exemplo, primeiro ela promove uma onda de invasões de prédios públicos, para amedrontar. A direita, timidamente e da boca para fora, protesta contra a “baderna”. Ato contínuo, a esquerda baixa as armas, se faz de educada, discursa serenamente em favor da eficiência e da moralidade. Seus adversários respiram aliviados e lhe concedem um novo crédito de confiança, investida do qual ela corta as cabeças de meia dúzia deles mediante denúncias de corrupção e paralisa os restantes jogando-os uns contra os outros num asqueroso festival de recriminações cruzadas. Quando, extenuados e desmoralizados, os sobreviventes esboçam diante das câmeras um sorriso amarelo para dar a impressão de que estão muito felizes com a “purificação” de suas fileiras, a esquerda volta a atacar pelo outro lado, desencadeando novas invasões de prédios públicos e vociferando ameaças de luta armada.

Há dez anos a política nacional consiste nisso e somente nisso: a auto-imolação da direita no altar do moralismo punitivo no qual ela própria convidou a esquerda a oficiar o ritual.

Não, a esquerda não mudou de ideologia, apenas de fórmula publicitária, numa periódica troca de camuflagem que já o próprio Lênin recomendava. Basta comparar com os discursos alardeados em público as teses mais discretamente discutidas nos congressos partidários, para ter a prova inequívoca de que o PT não mudou de marxista para democrático-progressista como a lagarta se transforma em borboleta, mas como o camaleão se transforma em galho, em folha ou no que mais seja preciso para permanecer camaleão.

Socialismo e cara-de-pau

Olavo de Carvalho


O Globo, 7 de outubro de 2000

Um dos mais notórios apóstolos do socialismo nestas plagas, cujo nome não declinarei para que não digam que é perseguição, gabava-se outro dia de que a esquerda sempre foi a primeira a reconhecer o fracasso da URSS.

Quatro décadas de experiência não bastaram para me habituar à cara-de-pau esquerdista. Ainda me surpreendo quando, batendo nela com os nós dos dedos, ouço o inconfundível “toc-toc” da madeira velha. Como os livros anticomunistas foram desaparecendo de circulação desde os anos 60, enquanto seus contrários abarrotavam cada vez mais as prateleiras das livrarias (mostrando que a censura extra-oficial das patrulhas foi muito mais persistente do que a censura governamental), é uma delícia, para essa gente, poder falar à platéia jovem com a plena segurança de que ela ignora tudo da história do socialismo, ou pelo menos de que só a conhece pela versão conveniente.

Nenhum sujeito com menos de 50 anos conhece hoje os nomes de Viktor Kravchenco, Walter Krivitsky, Elizabeth Bentley, Whittaker Chambers. Se os conhecesse, saberia a que prodígios de falsificação e difamação organizada a esquerda pôde chegar para ocultar a divulgação de qualquer notícia que pudesse manchar a santa imagem do comunismo.

Kravchenco, um exilado russo em Paris, publicou em 1946 o primeiro testemunho detalhado sobre os campos de concentração soviéticos. Imediatamente ergueu-se contra ele o vozerio maciço da intelectualidade francesa – numa gama que ia do comunista Roger Garaudy e seu “companheiro de viagem” Jean-Paul Sartre até as revistas católicas “Esprit” e “Témoignage Chrétien” (pois na França os Boffs & Bettos já abundavam naquela data) – para acusá-lo de ser um mentiroso a soldo da CIA. Homem simples, Kravchenco enfrentou com brio a assembléia de vacas sagradas, processando seus detratores e trazendo para diante do júri dezenas de ex-prisioneiros, entre os quais Margarete Buber-Neumann, neta do eminente filósofo Martin Buber, que confirmaram de ponta a ponta seu depoimento. Sartre et caterva foram condenados a pagar indenização, mas o vencedor, velho e extenuado, morreu logo depois da batalha. Então foi fácil para seus inimigos fazer baixar sobre o caso uma pesada e durável cortina de silêncio. O livro de Kravchenco, “Escolhi a liberdade”, é hoje impossível de encontrar exceto em sebos.

Whittaker Chambers e Elizabeth Bentley, ex-agentes do Comintern, descreveram as operações secretas de que tinham participado nos EUA, deixando claro que o Partido Comunista americano e sua rede de colaboradores informais nos meios elegantes não eram senão uma fachada da espionagem soviética. O establishment universitário fez o possível para desqualificar os depoimentos de ambos, ainda que confirmados pelo de Krivitsky, um general com alto posto na NKVD que fugiu para o Ocidente e, logo após contar o que sabia, apareceu morto a tiros num hotel em Washington, sendo sua memória sepultada sob densas camadas de material acadêmico difamatório. As memórias de Chambers, “Witness”, um dos mais belos livros da língua inglesa, desapareceram dos catálogos das editoras.

Após o fim da Guerra Fria, os governos ocidentais suspenderam todo esforço sistemático de propaganda anticomunista. A esquerda, em vez de retribuir o gesto cavalheiresco, aproveitou-se da trégua unilateral para consolidar sua posição nos meios intelectuais. Nas décadas de 70 e 80, a produção de teses anti-Kravchenco, anti-Chambers etc. foi tão intensa que, na entrada dos anos 90, a doutrina de que a esquerda americana era puramente autóctone e sem qualquer ligação significativa com a URSS podia se considerar triunfante. Então… Bem, então veio a queda da URSS e a abertura dos arquivos da KGB. Aí houve choro e ranger de dentes. Toneladas de telegramas, de bilhetes cifrados, de ordens de serviço, de recibos milionários vieram à tona. Hoje não é mais possível ocultar: cada palavra de Kravchenco, de Krivitsky, de Bentley, de Chambers era verdade, assim como as de Robert Conquest, o primeiro historiador científico dos Processos de Moscou, fartamente difamado entre seus pares. O estado de espírito atual, entre acadêmicos que estudam o assunto, pode ser resumido nos títulos de dois livros de pesquisadores que mergulharam a fundo nos arquivos de Moscou. O primeiro é o de John Lewis Gaddis, publicado pela Oxford University Press: “We now know”, “Agora nós sabemos”. O segundo é o de Richard Gid Powers (Yale University Press), “Not without honor”, “Não sem honra” – o reconhecimento de que o anticomunismo americano não foi uma sórdida campanha de mentiras, mas um sério esforço de fazer prevalecer a verdade sob o fogo cerrado de um exército mundial de prestigiosos vigaristas. Até ao remoto Brasil a onda de revelações trouxe alguma luz, mostrando que o famoso “ouro de Moscou”, longamente explicado como invenção maldosa da CIA, havia com efeito tilintado nos bolsos de nossos grotescos heroizinhos comunistas.

Depois disso, que mais restava à esquerda senão passar um tardio e vergonhoso recibo do fato consumado? Foi assim que em 1997 apareceu o “Livro negro do comunismo”, que, comprovando item por item as denúncias direitistas que a esquerda mundial desmentira desde a década de 30, ainda procurava diminuir a extensão quantitativa do desastre mas não conseguia reduzir o número de vítimas do comunismo para baixo da cifra dos cem milhões. Mesmo assim, o livro não saiu sem provocar reações indignadas (tipo “Onde já se viu dar munição ao inimigo?”), nem sem suscitar a produção de um atabalhoado e ineficacíssimo contraveneno, o qual, sob o título “O livro negro do capitalismo”, só é levado a sério, precisamente, pela anônima figuraça aludida no início deste artigo, cujo anonimato preservo, também, por julgar que esse deveria ser o seu estado natural.

Aviso aos espertalhões

Olavo de Carvalho


O Globo, 30 de setembro de 2000

Tempos atrás escrevi para uma revista um artigo sobre a espionagem chinesa no laboratório nuclear de Los Alamos. O presidente Clinton mandara abafar as investigações do FBI, ao mesmo tempo que agentes do seu Governo pressionavam estúdios de cinema para que retirassem de circulação vários filmes, entre os quais “Kundun”, de Martin Scorsese, e “Sete anos no Tibete”, de Jean-Jacques Annaud, que denunciavam atrocidades chinesas no Tibete (um milhão de mortos, àquela altura). O presidente dos Estúdios Disney confirmara, em entrevista, ter cedido às pressões, segundo ele, para não prejudicar as negociações entre empresas americanas e o Governo chinês.

O artigo, embora não contivesse nada de novo e se limitasse a resumir coisas que eu tinha lido nas colunas de Thomas Sowell, David Horowitz e Joseph Farah, os melhores comentaristas da imprensa conservadora americana (que no Brasil, é verdade, ninguém lê), suscitou escândalo. Pessoas que achavam que entendiam do assunto julgaram-no excessivamente venenoso porque insinuava uma cumplicidade de Clinton com o militarismo chinês para interpretar fatos que, segundo elas, podiam ser facilmente explicados pelos interesses comerciais dos EUA na China.

Por esse miúdo acontecimento pode-se avaliar o quanto a classe letrada brasileira ainda está presa à visão folclórica que crê poder compreender toda a política exterior americana pela mistura estereotipada de comercialismo e anticomunismo que talvez tenha até bastado para caracterizá-la, grosso modo, durante um curto período no pós-guerra, mas que hoje se tornou apenas um pretexto para pseudo-intelectuais do Terceiro Mundo se apegarem a uma cegueira atávica.

Depois do caso de Los Alamos, muita coisa veio à tona. As ligações da atual elite governante americana com o comunismo revelaram-se mais profundas do que o mais paranóico dos mccarthystas podia ter suspeitado.

O vice-presidente Al Gore, por exemplo, é filho do senador Albert Gore, cuja carreira política foi financiada pelo big boss do petróleo, Armand Hammer. Hammer, que se gabava de ter Albert Gore “no bolso”, foi um dos capitalistas ocidentais que investiram pesadamente na economia soviética após a revolução, ganhando muito dinheiro com a consolidação da ditadura comunista. Amigo íntimo de Lênin, ele sempre ostentou a imagem do puro capitalista interesseiro e sem ideologia: o protótipo mesmo do pragmatismo apolítico que, durante o Governo Clinton, serviu de pretexto para justificar os favores concedidos à China, inclusive a abstenção de examinar ali as violações de direitos humanos, que em todos os demais países (inclusive o Brasil) o stablishment americano fiscaliza com olhos de águia e denuncia com implacável rigor.

Mas desde a abertura dos arquivos soviéticos essa imagem mostrou ser apenas uma máscara de safadeza vulgar usada para encobrir algo de verdadeiramente sinistro: Hammer, segundo o provam documentos recém-publicados pela “Yale University Press”, era de fato um membro oficial da rede de financiamento do Comintern. Seus negócios eram pura fachada de uma imensa máquina de guerra soviética contra os EUA. Um deles, um banco sediado na Estônia, fazia a lavagem de dinheiro para o Partido Comunista americano. Outra empresa sua, a Allied Drug and Chemical Company, foi usada para furar o bloqueio econômico, passando à URSS produtos químicos vitais.

Armand era filho de Julius Hammer, fundador do Communist Labor Party americano e médico condenado à prisão pela morte de uma paciente durante um aborto ilegal. Gente finíssima. Logo após a tomada do poder pelos comunistas, pai e filho foram viver na URSS, numa luxuosa mansão da época tzarista.

Tal é a origem dos recursos que fizeram de Al Gore um rapaz de futuro. Nos tempos em que os EUA ligavam para a moral e para o anticomunismo, essa história bastaria para vetar uma candidatura a juiz de paz no estado de Idaho.

Mas o exemplo de Hammer é altamente instrutivo. Onde quer que você veja um capitalista advogando um pragmatismo aproveitador que — por acaso, por mero acaso — favoreça interesses comunistas ao mesmo tempo que contribui para impingir à opinião pública a imagem do capitalismo como um regime cínico, amoral e sem escrúpulos, é melhor investigar quem é que o “tem no bolso”. Há quase um século os comunistas possuem know-how bastante para lucrar duplamente com esse gênero de prestidigitações: ganham dinheiro e ainda enlameiam a reputação do adversário.

Como a classe afluente no Brasil é prodigiosamente inculta e sem formação moral, é grande, neste país, o número de empresários prósperos que se gabam de personificar uma síntese de astúcia amoral e neutralidade ideológica que lhes parece o supra-sumo da modernidade. Quando pensam encarnar o espírito mesmo do capitalismo, não sabem que esse capitalismo foi inventado por Lênin e Armand Hammer. O outro capitalismo, o verdadeiro, é aquele que, segundo Adam Smith, necessita da honestidade como um peixe precisa de água; aquele que, segundo Alain Peyrefitte, tem por único fundamento a confiança dos homens na lealdade de seus semelhantes.

Querer praticar esse capitalismo sem uma firme convicção moral e um firme compromisso político é querer dirigir um caminhão em alta velocidade lendo ao mesmo tempo um exemplar da “Playboy”.

Os que pensam que podem fazê-lo imaginam que são capitalistas, mas não são: são os parasitas e estranguladores do capitalismo. Acreditando-se espertos, são os fantoches com que, no teatrinho didático da propaganda comunista, os instrutores ilustram para os aprendizes a lição de Lênin: “Incentivar a corrupção e denunciá-la.”

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