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Tortura e terrorismo

Olavo de Carvalho

O Globo, 6 de janeiro de 2001

“When one acquires a perversion, one always despises the normal… All ill people are a club.”
Arthur Koestler

Quem comete delito mais grave: o sujeito que coloca uma bomba em lugar público, despedaçando transeuntes inocentes, ou aquele que dá uma surra em quem fez isso? A natureza humana, a razão e o instinto respondem resolutamente: o primeiro. Em seu apoio vêm a jurisprudência universal, as leis morais das grandes religiões e até o regulamento da Associação Protetora dos Animais, que não considera tão lesivo ao interesse dessas criaturas dar pancadas em uma delas quanto liquidá-las às dúzias por meio de explosivos.

Toda a Humanidade compreende intuitivamente que o torturador, por cruel e asqueroso que seja, é apenas um agressor, ao passo que o terrorista, por belo e idealista que se anuncie, é um homicida por atacado, virtualmente um genocida. As diferenças não param aí. Maus-tratos a um prisioneiro podem resultar do súbito impulso de fazer justiça com as próprias mãos, enquanto o ato terrorista supõe premeditação fria, planejamento racional, execução precisa. A tortura admite graus, que vão de um tapa na cara até os requintes de perversidade dos carrascos chineses e norte-coreanos, ao passo que um homicídio não pode ser meio homicídio, um quinto de homicídio, um-dezesseis-avos de homicídio. Condenar o terrorismo como “crime hediondo” é falar de um delito definido, claro, insofismável, ao passo que usar o mesmo termo para qualificar a “tortura” é um expediente lingüístico para meter no mesmo saco o torcionário científico que aplicou choques a um prisioneiro por meses a fio, o sargento que lhe deu um pontapé numa explosão de raiva, o médico que lhe aplicou uma injeção para que não morresse e o soldado de plantão que atendia o telefone na delegacia.

Terrorismo e tortura, enfim, não estão no mesmo plano: aquele é hediondo em si, esta depende de graus e circunstâncias. E, quanto ao dano infligido, o da tortura quase sempre pode ser reparado, física e moralmente. Mas que reparação oferecer à vítima que teve o corpo feito em mil pedaços pela explosão de uma bomba?

A Humanidade inteira admite essas verdades óbvias. Só uma classe de seres humanos as rejeita: os “intelectuais de esquerda”. Estes prefeririam antes ser dilacerados por uma bomba plástica num saguão de aeroporto do que levar pancadas num porão de delegacia e sair vivos para berrar na imprensa contra a violência policial.

Digo isso por mera inferência, supondo que consintam em escolher para si próprios o destino que alardeiam ser preferível para os outros. Mas suspeito que no fundo não seja nada disso. Suspeito que, quando vituperam o torturador e enaltecem o terrorista, estão impondo às vítimas destes dois tipos de criminosos uma escala de avaliação que jamais desejariam para si próprios. Suspeito, mesmo, que a hipótese de examinar a coisa pelos dois lados jamais lhes passou pela cabeça: em décadas de leituras de autores esquerdistas, nunca encontrei um único que se inclinasse a avaliar com igual peso e medida seus atos próprios e os alheios. Bem ao contrário: o pressuposto básico, o pilar mesmo do universo mental do esquerdista é o sentimento de estar num patamar ético e ontológico diferente e superior, em função do qual ações que cometidas por outras pessoas seriam crimes hediondos se tornam méritos beatificantes quando praticadas por ele ou em nome da sua doutrina.

Foi assim que Karl Marx, após ter escrito páginas ferinas contra os patrões que abusavam sexualmente de suas empregadas, não teve o menor escrúpulo de consciência em pôr para fora de casa o filho que havia gerado na sua doméstica Helene Demuth.

Foi assim que a doutrina Guevara, ensinando o revolucionário a ser “uma fria e calculista máquina de matar”, tornou-se, para milhões de idiotas, uma mensagem de amor só comparável ao Sermão da Montanha.

Foi assim que Fidel Castro, começando sua carreira como pistoleiro de aluguel e culminando-a como genocida, veio a ser considerado pelo sr. Luiz Ignácio Lula da Silva um modelo superior de conduta ética.

E é assim que o Grupo Tortura Nunca Mais julga que os suspeitos de envolvimento mesmo indireto, remoto e conjetural em casos de tortura devem ser perseguidos até o fim dos tempos, como ratos, como nazistas, para que os réus confessos de terrorismo, instalados em altos postos da República, possam estar tranqüilos no desfrute de suas honras, glórias e mordomias. Contra estes, beneficiados pela anistia, já não se pode dizer uma palavra. Mas aqueles, segundo a presidente dessa entidade, cometeram “crimes inanistiáveis, imprescritíveis e de lesa-humanidade. Não poderiam ocupar cargos pagos com dinheiro da sociedade brasileira.” Anistia, cargos, dinheiro público, no entender dessa senhora, são só para os terroristas, para os que mataram por atacado. Que alguém sugira estender os benefícios da lei aos que maltrataram esses pobrezinhos no varejo, e ela se encrespa: “Não aceitamos essa lei.”

Inútil argumentar contra essa mentalidade. Sua recusa obstinada de julgar por um padrão eqüitativo; sua insistência obsessiva em atribuir, sempre e a priori, motivos altruísticos aos atos de uns e intenções egoístas aos de outros; sua radical incompreensão do Segundo Mandamento – tudo isso torna impossível o confronto racional, que a cegueira ideológica substitui por uma retórica de inculpação desvairada e autovitimização patética. As pessoas que se deixam embriagar por esse discurso adquirem um escotoma moral, um impedimento ao exercício da razão e daquele senso das proporções que é o corolário imediato da igualdade humana. Ninguém é menos dotado do instinto da igualdade jurídica do que os apóstolos da igualdade econômica. Só resta saber a causa profunda dessa deficiência. Segundo Joseph Gabel, é um tipo de doença mental, de esquizofrenia. Segundo Eric Voegelin, é uma sociopatia, uma enfermidade da esfera moral que não afeta a superfície do eu. Mas às vezes essa discussão se torna puramente acadêmica: na URSS, os esquizofrênicos e sociopatas tomaram de assalto o hospital e trancafiaram nele quem pretendesse diagnosticá-los. E é preciso ser ainda mais doido que eles para não perceber que estão querendo fazer a mesma coisa aqui.

Cumprindo meu dever

Olavo de Carvalho


O Globo, 30 de dezembro de 2000

Um homem de pensamento deve ser fiel à verdade tal como ela se lhe apresenta a cada momento no exame das questões concretas, sem deixar-se envolver por uma atmosfera mental que tinja todo o seu horizonte de consciência com uma tonalidade geral e prévia de “esquerda”, de “direita” ou seja lá do que for. Pessoalmente, nunca me manifestei a favor de nenhuma política “de direita”, e é por pura indução psicótica e ressentimento de complexados que uns sujeitos de esquerda tentam enxergar em mim um feroz direitista. Deduzem isto das críticas que lhes faço. Raciocinam na base schmittiana do “Quem não está conosco está do outro lado”, mostrando que nem sequer em imaginação podem conceber que exista uma inteligência livre, capaz de atacar o mal sem cair no automatismo mentecapto de supor que a simples inversão da ruindade faria dela um bem.

Logicamente falando, a posição política de um indivíduo jamais pode ser inferida das críticas, por mais duras, que dirija a uma ideologia ou partido, pela simples razão de que críticas idênticas podem ser feitas desde várias posições ideológicas. O sionismo foi atacado com igual vigor pela extrema-direita e pelos comunistas. O fundamentalismo islâmico é tão abominado pelos cristãos conservadores quanto pela esquerda feminista e gay ou pelos liberais modernistas e ateus.

Só uma tomada de posição positiva em favor de determinadas políticas é que define identidade e compromisso ideológicos. A crítica é livre e pode vir de todas as direções.

A mentalidade comunista, no entanto, desconhece a tal ponto a liberdade de pensamento, subjuga tão pesadamente a inteligência ao comando partidário, que chega a catalogar a ideologia de um sujeito não pelas intenções e valores que ele professe, mas pela simples conjecturação hipotética e quase sempre paranóica do benefício político ou publicitário que partidos ou correntes possam auferir de suas palavras, ainda que oportunisticamente e contra a vontade dele. Na imaginação dos comunistas, ninguém afirma “x” ou “y” com a simples intenção de dizer a verdade, mas sempre com a premeditação de algum resultado político, mesmo remotíssimo. É que eles pensam assim, eles são indiferentes à verdade e à falsidade e só abrem a boca em vista de efeitos políticos. Por isso imaginam que o resto da Humanidade também é assim.

Foi com base nesse raciocínio alucinadamente projetivo que o Estado soviético chegou a condenar como crime a indiferença política, por julgar que ela denotava sinistras intenções contra-revolucionárias. Boris Pasternak foi parar na cadeia por conta disso.

Da minha parte, estou persuadido de que o homem de pensamento deve ser escrupulosamente comedido ao opinar a favor de qualquer política em especial: ele deve simplesmente fazer a crítica do que é ruim e perverso, deixando ao público e aos políticos, àqueles que se orgulham de ser “homens práticos” e que têm o dever de sê-lo, a decisão de políticas positivas que hão de suprimir ou remediar o mal.

Ademais, se critico a esquerda é porque hoje só existe esquerda. Não há direita nenhuma no Brasil. Há direitistas, mas cada um fechado nas suas convicções privadas, sem qualquer ação de conjunto. A prova mais patente é que a palavra “direita” só aparece na imprensa com conotações sombrias e criminais, jamais como a designação de uma corrente política que tenha o direito de existir como qualquer outra. Apontar um homem como direitista é acusá-lo de conspirador, de golpista, de corrupto, de torturador. Tanto é assim, que qualquer delito cometido em interesse próprio por analfabetos coronéis do sertão é imediatamente atribuído à “direita”, o que é pelo menos tão absurdo quanto enxergar motivação ideológica esquerdista em todos os crimes cometidos por meninos de rua. Só se pode falar nesse tom, impunemente, de uma minoria de párias sem voz nem poder. O curioso é que aqueles mesmos que sem temor de represália falam da direita nesses termos, provando com isto que ela não tem poder nenhum, querem nos fazer crer que ela existe, que ela é uma força organizada e manda no Brasil. Tudo isso é puro histrionismo de uma esquerda que sabe que está no poder mas não deseja assumir as responsabilidades de sua situação.

Hoje o establishment é esquerdista, a oposição também. Leiam as cartilhas de marxismo-leninismo do Ministério da Educação e me digam se um governo que educa as crianças nessa mentalidade não é comunista em espírito, conformado provisoriamente com o capitalismo que não pode suprimir. E qual governo sem forte inspiração comunista desejaria a supressão do sigilo bancário? Nessas condições, seria hipocrisia eu falar mal da “direita” só para me fazer de bom menino e afetar uma independência estereotipada. A independência autêntica não teme os rótulos que lhe queiram impor e não foge deles mediante o apelo a discursos de ocasião. Diz o que tem de dizer, e pronto. A confusão que façam em torno dela corre por conta da malícia e da sem-vergonhice de cada um.

Lembrete de Natal

Olavo de Carvalho


O Globo, 23 de dezembro de 2000

A coincidência do Natal e do Eid-al-Fitr (fim do jejum) muçulmano é uma ocasião para lembrar que os pontos de contato entre as religiões cristã e islâmica – e também a judaica – vão muito além do que as fórmulas de bom-mocismo ecumênico podem sugerir.

Se há uma lição definitiva a tirar do estudo das religiões comparadas é que elas são incomparáveis: não são espécies do mesmo gênero, que possam ser avaliadas uma pela outra. São manifestações irredutíveis – e irredutivelmente diversas – de uma luz intelectual supra-humana que, derramando-se sobre objetos diferentes, produz diferentes refrações. A comparação, aí, só pode tomar duas direções: ou o confronto estéril do inconfrontável, ou a simples inspiração que nos leva a erguer os olhos para a fonte comum, quer a imaginemos como motor imóvel ou como a fonte eternamente silenciosa de todo Verbo.

Por isso o estudo comparativo das religiões, quando toma a forma do confronto de doutrinas prontas, desemboca na disputa dos teólogos – e esse tipo de discussão, dizia o profeta Maomé, leva indiscutivelmente ao inferno. Muito mais frutífera é a aproximação dos símbolos, que dizem a mesma coisa em linguagens diversas, mas de tal modo que a mente, ao apreender a comunidade de sentido entre elas, não pode traduzi-la numa terceira. Compreendida como disciplina contemplativa, a ciência dos símbolos sacros é uma introdução à clareza do indizível.

Talvez ainda mais significativa que a coincidência do Natal com o Eid-al-Fitr seria a aproximação dele com a Laylat-al-Qadr, a noite em que o Corão “desce” dos céus ao coração do profeta. Maomé é o analfabeto que, no silêncio da noite, recebe em ditado angélico o mais belo livro da língua árabe, livro que transcende as propriedades do idioma ao ponto de sua recitação em voz alta afetar os animais, que se detêm para ouvi-la. É também à noite que a Virgem, fecundada pelo Espírito, dá à luz a mais nobre das criaturas humanas, indistinguível do Criador mesmo. A analogia entre esses dois sublimes paradoxos é evidente. E, enquanto os teólogos disputam nas trevas, cotejando Cristo a Maomé, a narrativa, em si, é “luz sobre luz”: Maomé não corresponde a Cristo, mas a Maria, o portador humano do Verbo divino; Cristo não é Maomé, é o Verbo divino, o Logos, Kalimat’ullah.

O espírito sopra onde quer, da forma que quer. Como diz o Corão, “há nisto um sinal, para os que entendem”. Isso não quer dizer que o Papa esteja errado ao afirmar que o cristianismo é a única via de salvação. Como poderia estar errado, se o conceito mesmo de “via de salvação” não se aplica ao Islã ou ao judaísmo? O judaísmo é a lei, a constituição divino-histórica do povo eleito, não a via de salvação para as almas individuais, para os pecadores errantes e ovelhas desgarradas. E a palavra mesma “religião” não corresponde ao árabe din, que assim se traduz erroneamente. Din é o modo natural e primordial do ser social humano, a constituição civil da sociedade sacra – algo sem correspondência no evangelho, onde Deus fala às almas individuais, alheio e indiferente ao que é de César.

Como, pois, comparar essas dimensões diferentes, achatando-as no confronto doutrinal do certo e do errado?

As religiões, simplesmente, não falam da mesma coisa. É preciso ter compreendido isto para atinar que é a mesma Voz que fala por meio de todas elas. Os conflitos correm por conta da incompreensão humana, angustiada pelos seus esforços vãos de reduzir à unidade doutrinal algo que não é doutrina, mas que é a Presença mesma. O próprio Corão ensina-nos o limite dessas especulações, e adverte judeus, cristãos e muçulmanos: “Concorrei na prática do bem, que no juízo final Nós dirimiremos as vossas divergências.”

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