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O testemunho proibido

Olavo de Carvalho


O Globo, 14 de julho de 2001

“And Kaipha was, in his own mind, a benefactor of mankind.”
William Blake

“The best lack all conviction, while the worst are full of passionate intensity.”
William Butler Yeats

Um dos trechos que mais me impressionam no Evangelho é aquele em que Jesus, sob a acusação de difundir ensinamentos suspeitos, apela ao testemunho do público: “Tenho falado francamente ao mundo”, afirma Ele, “e nada disse em oculto. Pergunta-o aos que me ouviram.” Um dos guardas lhe dá então uma bofetada. Jesus lhe responde: “Se eu disse mal, prova-o. Se disse bem, por que me feres?” (João, 18:19-23 passim. )

Quando Northrop Frye demonstrou, em “The great code”, que em última instância todos os enredos da literatura de ficção estão prefigurados nos livros sacros, ele se esqueceu de dizer que todos os acontecimentos das nossas vidas estão prefigurados na literatura de ficção. Que é a ficção, afinal, senão o conjunto dos esquemas imaginários das vidas possíveis? Pelo menos assim o entendia Aristóteles, mestre de Frye. E que é o conjunto das vidas possíveis senão a sinfonia dos ecos terrenos da vida divina, a reverberação do eterno no tempo? Nossas biografias são as cópias de uma cópia. Por trás delas, uma única história se passou: a da vida, paixão e morte de N. S. Jesus Cristo.

A cena do testemunho rejeitado repete-se milhões de vezes, ao longo dos séculos, onde quer que um escritor, um professor, um orador, seja acusado de dizer o que não disse, de ensinar o que não ensinou, de pregar o que não pregou. Se nesse momento ele alega o testemunho público de seus escritos, de seus ouvintes, de tudo o que é arquinotório e documentado, isso não o livra da má vontade do juiz iníquo. O simples desejo de provar é tido como insolência. Calem-se as testemunhas, suprimam-se os documentos: o que vale não é a palavra de quem viu, leu ou ouviu. O que vale é a palavra de quem, nada tendo visto, lido ou ouvido, conjetura, suspeita e acusa. A ignorância maliciosa torna-se fonte da autoridade, suprimindo não somente os fatos, mas a simples possibilidade de alegá-los. O que importa não é conhecer, é odiar com intensidade.

Esse modelo eterno reaparece diariamente na nossa imprensa, no parlamento, nas cátedras acadêmicas e nas escolas de crianças, quando aqueles que desagradam ao consenso dominante são rotulados de “fascistas”. Se apelam ao testemunho de seus escritos, alegando que jamais disseram uma palavra em favor do fascismo, que o condenaram e que pregaram o contrário dele, terão de dar-se por felizes se em resposta não receberem uma bofetada, mas apenas um riso de escárnio. No tribunal dos infernos, o escárnio dos canalhas é a prova suprema. Todos os testemunhos, todos os documentos do mundo não valem para impugná-lo. Mais probante que ele, só a bofetada do guarda.

Milhões de pequenos brasileiros estão sendo educados nessa pedagogia de Anás e Caifás. Logo estarão prontos para, à simples menção de certos nomes dos quais nada sabem, gritar em uníssono: “Fascistas!” Ai de quem tombe sob o olhar fulminante desse temível tribunal mirim!

Não por coincidência, a acusação de fascismo provém sempre daquela corrente que se consolidou no poder na Rússia com a ajuda nazista, que vendeu a Espanha aos franquistas em troca de favores anglo-franceses, que amparou tantos militarismos nacionalistas em toda parte, que no Brasil se aliou à ditadura de Vargas e em Cuba, sim, em Cuba, apoiou a ascensão de Fulgencio Batista e depois usurpou os lucros de sua destituição engendrada pelos americanos. Tudo isso é fato histórico conhecido, ao menos de quem estudou.

Não é preciso dizer que, nos tribunais nazi-fascistas, análoga sintaxe governava o uso da acusação de “comunista”, naqueles anos mesmos em que Hitler e Stalin, por baixo da contenda de superfície entre seus devotos militantes, trocavam favores, informes secretos, armas e dinheiro — já muito antes do pacto Ribentropp-Molotov, que apenas formalizou aos olhos do mundo essa aliança macabra.

Mas, na lógica da alma revolucionária, é a própria cumplicidade no crime que, pelo bem conhecido efeito potencializador da inversão histérica, confere ao juiz a sua postiça autoridade de acusar. Quanto mais ele tenha manchado suas mãos no sangue, tanto mais seu ódio reprimido a si mesmo se transfigurará, no nível da sua falsa consciência intoxicada de ideologia, em indignada eloqüência contra o inocente. Tal é o mecanismo íntimo daquela passionate intensity de que falava Yeats, da qual só os fanáticos assassinos são capazes, e que desarma, pela força avassaladora do cinismo, as defesas do homem normal. O homem comum dos tempos modernos, esvaziado do espírito e reduzido a confiar-se à autoridade exterior do consenso dominante, não resiste à retórica insana do mal: sob o violento ataque frontal à verdade, acaba sempre cedendo, admitindo-se culpado do que não fez, como milhares de réus nos Processos de Moscou na década de 30. Só a fé amparada no exemplo de Cristo pode permanecer imperturbável e, ante o assalto da mentira demoníaca, retrucar simplesmente: “Se eu disse mal, prova-o. Se disse bem, por que me feres?”

 

Tentando enxergar

Olavo de Carvalho


O Globo, 7 de julho de 2001

A recente pesquisa do Ibope, na qual 55% dos eleitores clamam por uma revolução socialista no Brasil, fala por si. Mas, para melhor captar o alcance da sua significação no presente momento histórico, é preciso realçar os seguintes pontos.

Primeiro. A população consultada não disse simplesmente “socialismo” (o item “socialismo” foi objeto de uma pergunta em separado), nem muito menos “transição pacífica para o socialismo”. Disse “revolução socialista”, o que indica claramente sua disposição de aceitar, como coisa normal e desejável, todo o cortejo de crueldades e horrores inerente a essa modalidade de transformação político-social. Nenhuma revolução socialista se fez até hoje sem genocídio, que chegou, no caso chinês, à extinção de dez por cento da população local. Isso equivaleria, aqui, a dezesseis milhões de brasileiros. A morte dessas pessoas já parece, à maioria do nosso eleitorado, um preço módico a pagar pelo prazer de viver na China.

Segundo. Nenhuma revolução socialista se realizou, até hoje, com a garantia de tamanho respaldo popular. Isto garante, ao primeiro governo revolucionário do Brasil, os meios para impor, sem muita reação adversa, as leis e controles que bem entenda. A minoria refratária terá contra si não apenas a força repressiva do Estado, mas a ira popular. Por exemplo, a constituição de uma rede de espionagem interna, com voluntários civis, terá aqui pelo menos tanto apoio quanto teve na Venezuela de Chávez, a qual, com isso, se aproxima velozmente da taxa cubana de um espião do governo para cada 28 habitantes.

Terceiro. Refletindo o sucesso obtido por trinta anos de “revolução cultural” inspirada em Antonio Gramsci, a conversão maciça do eleitorado brasileiro ao socialismo revolucionário é, ela mesma, um momento capital do processo revolucionário, o qual já está, portanto, em pleno curso de realização, como o compreenderá quem quer que conheça algo da estratégia traçada pelo fundador do Partido Comunista Italiano.

Quarto. Ao preconizar uma revolução socialista como “solução” para os atuais problemas do país, imaginando-o portanto como um ideal a ser realizado no futuro, aquela parcela majoritária do eleitorado mostra não ter a menor idéia de que já está em plena revolução, e muito menos de que os problemas que a angustiam no momento presente, longe de ser males que a revolução possa curar, são sintomas e etapas do processo revolucionário mesmo. Aí, novamente, a fórmula anunciada pelo estrategista italiano está seguida à risca: o que ele denomina “revolução passiva” é precisamente essa etapa de lusco-fusco, essa noite da consciência, esse torpor agitado e sombrio em que uma população semi-hipnotizada faz a revolução sem perceber e, quando acorda, já está sob o domínio do Estado comunista. Como jamais a estratégia gramsciana foi tentada em tão larga escala, também jamais se observou, na história dos tempos modernos, um fenômeno tão vasto de cegueira coletiva.

Quinto. O governo comunista, ao constituir-se, já terá de imediato nas mãos, além da cumplicidade popular, quatro instrumentos decisivos para consolidar velozmente o seu poder, desarticulando, no ato, qualquer possibilidade de oposição: (a) o controle dos meios de comunicação, propaganda e ensino, através da organizada militância instalada na mídia e na rede de escolas de todos os níveis; (b) a obediência garantida e zelosa da burocracia estatal, já devidamente doutrinada e amestrada através dos sindicatos de funcionários públicos; (c) o controle da Zona Rural, através da bem treinada militância do MST; (d) uma legislação fiscal habilitada a “colocar o empresariado de joelhos” com a velocidade com que Hitler, autor dessa expressão, o fez na Alemanha.

Sexto. Com exceção do controle da mídia, todos os demais itens apontados no parágrafo anterior, inclusive o domínio do sistema educacional, foram servidos à liderança gramsciana, de bandeja, pelo atual governo. Este, portanto, longe de constituir “o adversário” a ser derrubado pela revolução, vem sendo no sentido mais estrito do termo aquilo que no jargão revolucionário se denomina “governo de transição para o socialismo”, tendo representado, portanto, exatamente o papel que alguns anos atrás o cientista político Alain Touraine, tão respeitosamente ouvido pelo nosso presidente da República, recomendou que ele consentisse em representar no palco da história, caso não quisesse desempenhar o de vítima inerme de um processo irreversível. Sendo o nosso presidente homem versado na estratégia gramsciana — e ele se gaba de ser um dos mais versados — é impossível que ele não esteja consciente do papel que escolheu; e ele próprio deu mais uma prova disso ao explicitar seus atos em palavras, aconselhando à nação que não hesite em curvar-se ao destino previsto, como ele próprio se curvou.

Para a perfeição integral do poder revolucionário, falta apenas um item: o apoio das Forças Armadas. Ele é difícil de obter, em vista de feridas históricas ainda não cicatrizadas, mas talvez possa ser, em parte, alcançado mediante a manipulação de ressentimentos e ambições nacionalistas — que hábeis agitadores civis vêm tratando de providenciar — e, em parte, substituído pela neutralização e enfraquecimento da classe militar, que o atual governo já providenciou.

Se me perguntarem como esse processo pode ser detido, responderei que, obviamente, não sei. Mudar o curso da história está além das minhas pretensões: elas se resumem, no momento, em tentar enxergá-lo. E notem que, no meio da cegueira geral, isso já é muito para um pobre observador humano.

 

Da ignorância à loucura

Olavo de Carvalho

O Globo, 23 de junho de 2001

Já assinalei mil vezes, em cursos e artigos, mas igualmente em vão em ambos os casos, esse traço inconfundível do leitor brasileiro atual, sobretudo universitário, que é a incapacidade de discernir entre a expressão de um estado emocional e a referência a um fato percebido. O que quer que um autor diga é interpretado sempre como manifestação de seus desejos, gostos, preferências, ódios e temores, e nunca como descrição adequada ou inadequada de um dado do mundo objetivo. Nos termos da teoria clássica de Karl Bühler, a linguagem é reduzida à sua função expressiva, com exclusão da denominativa. Isso configura nitidamente um quadro de analfabetismo funcional.

O que hoje se chama “ensino universitário” neste país consiste essencialmente na transmissão sistemática dessa incompetência às novas gerações. Se é verdade que a incapacidade de compreender o que se lê é um sinal de educação deficiente, então a quase totalidade da educação superior tal como praticada no Brasil deve ser condenada, simplesmente, como propaganda enganosa.

Esse estado de coisas não resulta apenas da “má qualidade”, genérica e abstratamente. Ele vem de um aglomerado de influências culturais bem ativas, constituído de marxismo gramsciano, psicanálise, relativismo antropológico, nietzscheanismo, desconstrucionismo, mais teoria dos paradigmas científicos de Thomas S. Kuhn. O sincretismo dessas influências, que hoje constitui a típica atmosfera ideológica do nosso ambiente universitário, tem sobre as inteligências juvenis um efeito embrutecedor e paralisante, agravado pelos cacoetes do vocabulário “politicamente correto” que se impõe como idioma obrigatório das discussões pretensamente letradas.

Cada uma dessas correntes, considerada individualmente, se caracteriza por ser uma hipótese limitada e provisória, elaborada dentro de categorias que só se aplicam a classes de objetos muito determinados e fundada numa base empírica muito estreita. Mas o efeito conjugado delas, na exclusão de quaisquer outras influências culturais de maior envergadura que pudessem relativizá-las e reduzir cada uma ao tamanho que lhe é próprio, é produzir no estudante uma falsa impressão de universalidade que lhe dá a ilusão de estar muito bem orientado no horizonte maior da cultura, justamente no instante em que suas perspectivas se comprimem até à medida do provinciano e do gremial.

Nenhuma dessas correntes, e muito menos a soma delas, tem a universalidade necessária para poder constituir a base de uma educação superior. Para quem já viesse do curso secundário com essa base, o estudo delas poderia ser útil, à guisa de tempero crítico e contrapeso relativizador. O que não se pode é admitir uma bagagem cultural constituída apenas de contrapesos ou uma alimentação constituída somente de temperos. É precisamente essa falsa bagagem e esse falso alimento que hoje formam a substância mesma da educação superior no país.

Quando me refiro a base, o que quero dizer é o conhecimento dos dados fundamentais da civilização e a aquisição de um quadro de referências histórico-cultural suficientemente amplo. Isto só se adquire pela absorção do legado grego, cristão-medieval, renascentista e moderno, de preferência encaixado no panorama maior das culturas antigas e orientais.

Na mente que possua essa base, aquelas modas culturais ingressam como acréscimos de detalhe que podem exercer um efeito vivificante sobre a visão do conjunto. Sem base, os detalhes, boiando soltos no vazio, acabam por constituir um “Ersatz” de totalidade, preenchendo com opiniões genéricas e frases de efeito o espaço que deveria estar repleto de conhecimentos positivos. A deformidade intelectual daí resultante faz da mente do estudante brasileiro uma caricatura grotesca da inteligência humana.

Caracterizam-na a completa falta do senso das proporções, a quase impossibilidade de distinguir entre forma e matéria, a ênfase obsessiva em detalhes de ocasião, a completa cegueira para as contradições mais patentes.

Um exemplo é a transformação que o relativismo sofreu ao tornar-se moda nos nossos círculos acadêmicos. Ele já não é mais aquela precaução elegante que buscava compensar a unilateralidade das afirmações mediante o reconhecimento da verdade ao menos parcial das suas contrárias. É um ceticismo ou negativismo militante, fanático, agressivo, irracional, que afirma peremptoriamente a inexistência de quaisquer verdades objetivas e tem um acesso de cólera sagrada à menor cogitação de que alguma talvez exista. Não há nada mais ridículo do que um relativista que se apega ao relativismo com fé dogmática e rejeita como tentação demoníaca a possibilidade de que alguma afirmação talvez seja menos relativa que as outras.

O efeito desse hábito sobre a inteligência é devastador. Não existindo verdades objetivas, a linguagem só pode ser compreendida como expressão de estados subjetivos — mas não ocorre jamais aos viciados nesse enfoque a idéia de que também sua apreensão dos estados subjetivos alheios não poderia, nesse caso, ser uma percepção objetiva mas somente a projeção dos seus próprios estados subjetivos. O alardeado “pensamento crítico”, em tais circunstâncias, torna-se apenas um tiroteio cego de imputações projetivas que se ignoram, até o ponto de que o “objeto” em discussão, reduzido a mero pretexto de afirmações da vontade, desaparece completamente de vista. A possibilidade de uma “argumentação” é aí evidentemente nula, e o único fator decisivo que condiciona a vitória ou derrota nas discussões é a maior ou menor capacidade de impressionar mediante uma “performance” psicológica mais exibicionista e mais insana, e por isto mesmo mais de acordo com as expectativas doentias da platéia.

O ambiente dessas discussões é evidentemente psicótico, e a aquisição desta psicose é hoje considerada não apenas um sinal de cultura, mas um requisito indispensável para o cidadão ser aceito como pessoa normal no ambiente universitário. A formação superior, nessas condições, consiste em passar da ignorância natural à inconsciência militante e desta à onipotência cega que culmina na loucura.

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