Olavo de Carvalho
O Globo , 16 de fevereiro de 2002
A imaginação popular concebe as revoluções somente pelo lado espetaculoso, pela explosão insurrecional. Mas revolução é qualquer reviravolta profunda da estrutura de poder, seja operada por meio violento e ostensivo, seja introduzida aos poucos, de maneira quase imperceptível e aparentemente dentro da lei, sem que a população possa compreender ou controlar o curso dos acontecimentos. Duas das principais revoluções do século XX foram exatamente assim: a revolução alemã de Adolf Hitler e a tomada do poder pelos comunistas na Tchecoslováquia. Em ambos os casos, a violência só veio depois, quando era tarde para tentar detê-la. Mesmo nas revoluções cruentas, a brutalidade em toda a sua plenitude só se desencadeia após a tomada do poder. O que nunca houve nem haverá no mundo será uma revolução sem violência — nem insurrecional, no começo, nem repressiva, depois. Revolução “pacífica” quer dizer apenas uma revolução que só se torna violenta depois de vitoriosa.
No começo das revoluções “pacíficas”, o apego às crenças rotineiras, a falta de informação correta e o simples medo de ter medo impedem o povo de perceber o avanço rumo ao desenlace irreversível. Ao observador de fora, porém, que note a escalada das mudanças sem um olhar amortecido pela acomodação progressiva, não escapará o sentido trágico de acontecimentos que, no seu lento gradualismo, terão parecido à população local apenas irritações epidérmicas e passageiras.
É isso, precisamente, o que vejo a cada nova visita que faço a Porto Alegre. O Rio Grande está em revolução. Dentro de muito pouco tempo, estará consolidada no poder uma nova classe dominante, emergida da militância revolucionária; uma classe de arrivistas ambiciosos, ferozes e imbuídos da crença cega na sua própria impecância essencial, que os autorizará a todas as crueldades sob o adorno de belas palavras. Aos derrotados, desprovidos de suas propriedades e de seus meios de defesa, não restará outro caminho senão o exílio, a prisão ou a existência apagada e humilhante de ressentidos impotentes.
Mas faz parte da natureza mesma das revoluções “pacíficas” manter a população amortecida e sonsa mediante a alternância dos choques com a distribuição periódica de tranqüilizantes e soporíferos. A cada nova penetração da lâmina revolucionária no corpo da sociedade, segue-se uma injeção de entorpecente que transmuta a percepção em dúvida, a dúvida em subterfúgio, o subterfúgio em esquecimento e o esquecimento em tranqüilidade. Quando todo mundo está calmo, a faca entra mais um pouco.
No presente estado de coisas, as mudanças já me parecem praticamente irreversíveis, mesmo no caso de uma derrota do PT nas próximas eleições estaduais. Não há ingenuidade maior do que confundir o processo revolucionário com uma simples disputa eleitoral. A oposição gaúcha, valorosa e esforçada, está profundamente afetada dessa ingenuidade, apegando-se à esperança desesperada de que reste, nos governantes revolucionários, um fundo de lealdade democrática. Esse fundo não existe. O que existe é apenas a velha articulação leninista de meios legais e ilegais, pacíficos e violentos, calculada para desnortear o adversário e envolvê-lo em ilusões suicidas. Daí os resultados já alcançados.
Em primeiro lugar, a mudança psicológica. A educação, o imaginário, os valores e a linguagem diária da sociedade gaúcha já estão totalmente impregnados da nova mentalidade: quem quer que não creia possuir uma solução alternativa mágica e instantânea para os males que legitimam a revolução se sente inibido de opor-se frontalmente à onda revolucionária; e aqueles que crêem ter uma alternativa ficam cada vez mais afoitos de expressá-la na linguagem dos revolucionários, pondo lenha na fogueira. Os clichês esquerdistas — “exclusão”, “desigualdade”, “discriminação” — já se tornaram de uso geral e obrigatório. Quando um liberal ou conservador os emprega, julgando-se muito esperto por apropriar-se da retórica do adversário, não tem a mínima consciência de quanto essa assimilação vocabular denota sua fraqueza, seu esvaziamento ideológico e sua morte próxima.
Em segundo lugar, a inversão das legitimidades. À medida que a invasão de propriedades é consagrada como um direito, a propriedade é que se torna um ilícito. Desde que o STJ deu posse ao invasor, alegando que o proprietário anterior não dera provas cabais da produtividade da terra e omitindo-se de exigir prova idêntica aos novos ocupantes, torna-se claro que só a propriedade adquirida legalmente é contestável: a legitimidade da posse por invasão é automática e a priori. É claro que, logo após uma mutação tão drástica, seus promotores deixarão passar um tempo, para fins de anestesia, antes de generalizar sua aplicação a toda e qualquer propriedade. Mesmo então, continuarão procedendo de maneira lenta e gradativa, para evitar choques de percurso. Mas só um povo muito entorpecido ou muito ignorante da dinâmica das revoluções pode alimentar a ilusão de que alguém comece uma reviravolta tão profunda sem o intuito e os meios de universalizá-la. Uma revolução pode parar para descansar, mas nunca voltar atrás —- e, a cada nova retomada do movimento, há uma subida de patamar.
Em terceiro lugar, a mutação no controle dos meios de violência física. Um elemento essencial do Estado, ensinava Max Weber, é o monopólio do uso legítimo e, portanto, da distribuição desses meios. Deixá-los como estão ou redistribuí-los é o que distingue uma simples mudança de governo e uma revolução. Um governante constitucional mexe no orçamento, nos planos administrativos, nos projetos de obras públicas etc., mas não toca na distribuição dos meios de violência legítima. Exército, polícias, guardas particulares e simples cidadãos armados conservam seus direitos, seus deveres, seus papéis e suas armas. Já um governante revolucionário tem como objetivo prioritário justamente a mudança radical desse quadro: quando novos grupos passam a dispor dos instrumentos de violência legítima, enquanto seus antigos detentores são desarmados ou paralisados, está consumada a revolução. O desmantelamento consciente da brigada militar e sua substituição por milícias ideologicamente doutrinadas — processos delicados e complexos demais para ser descritos aqui em detalhes — já estão em fase avançada de execução no Rio Grande. Desde que existe o movimento comunista, há um século e meio, a função do revolucionário que os acasos da política coloquem em funções de governo num Estado não comunista é invariavelmente a mesma: desmantelar, debilitar ou neutralizar as seções do poder estatal que não estejam sob o comando direto da sua facção, enquanto seus colaboradores de fora do governo vão ao mesmo tempo formando os quadros de um “Estado virtual” aptos a substituir, gradativamente ou de súbito, as funções desativadas. O que o governo do Rio Grande está fazendo é isso, e nada mais que isso.