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Nada de novo

Olavo de Carvalho

O Globo, 25 de junho de 2005

Todos parecem surpresos com o estado de coisas, mas ele era mais que previsível. Desde o começo da década de 90, quando o PT investiu pesado na construção de uma imagem de moralidade impoluta, avisei que a chegada desse partido ao poder inauguraria uma era de corrupção que faria empalidecer os mais rubros escândalos dos governos anteriores. Essa previsão foi recebida com tanto mais incredulidade quanto mais fundada no conhecimento de fatos que ninguém queria ver e na análise de antecedentes históricos que todos preferiam sepultar no esquecimento.

Logo ao eclodir a famosa “Campanha pela Ética na Política”, observei que o PT manejava com astúcia maligna o duplo sentido do termo “ética”, dando-lhe em público a acepção convencional de idoneidade e honradez, e nos seus documentos internos o significado que o termo possui na expressão gramsciana “Estado ético”, expressão moralmente neutra, que não tem nada a ver com virtudes ou pecados, mas designa apenas, tecnicamente, uma determinada fase do processo de tomada do poder pelo “Novo Príncipe”, o partido revolucionário. Em suma, tratava-se de utilizar como cenoura de burro as esperanças moralizantes da classe média, levando-a a colaborar com um empreendimento que simulava “passar o Brasil a limpo” mas não se ocupava senão de fazer crescer o poder do partido por todos os meios morais, amorais e imorais.

Anunciei com doze anos de antecedência, no meu livro “A Nova Era e a Revolução Cultural”, e depois novamente em “O Imbecil Coletivo”, que essa instrumentalização maquiavélica dos anseios populares só resultaria em mais maldade e sujeira, já que constituía, em si, um crime maior do que todos os atos materiais de corrupção, implicando nada mais, nada menos que a perversão completa do sentido mesmo da moralidade. Uma coisa, dizia eu, lembrando um velho provérbio árabe, é roubar no peso da farinha, vendendo 750 gramas pelo preço de um quilo. Outra coisa é alterar a balança para que nunca mais acuse a diferença entre 750 gramas e um quilo.

Os velhos políticos corruptos limitavam-se a roubar. O PT transformou o roubo em sistema, o sistema em militância, a militância em substitutivo das leis e instituições, rebaixadas à condição de entraves temporários à construção da grande utopia.

Os velhos políticos roubavam para si próprios, individualmente ou em pequenos grupos, moderando a audácia dos golpes pelo medo das denúncias. O PT rouba com a autoridade moral de quem, ao arrogar-se os méritos de um futuro hipotético, já está absolvido a priori de todos os delitos do presente; rouba com a tranqüilidade e o destemor de quem pode usar licitamente de todos os meios, já que é o senhor absoluto de todos os fins.

Todo partido que se volte contra “a sociedade”, prometendo remoldá-la de alto a baixo – se não reformar a natureza humana mesma – coloca-se, instantaneamente, acima dos critérios morais vigentes nessa sociedade, e não pode se submeter a eles senão em aparência, rindo, por dentro, da ingenuidade dos que o tomam por adversário normal e leal. Não é possível destruir o sistema e obedecer às suas regras ao mesmo tempo, só usar as regras como camuflagem provisória da destruição. Ora, o sistema, como tudo o que é humano, comporta igualmente sua dose de injustiças, de erros, de escândalos, e sua parcela de moralidade, de ordem, de lealdade. Todo sistema consiste num equilíbrio precário entre a desordem e a ordem. Nenhuma inteligência sã ignora que só é possível reprimir ou controlar o primeiro desses aspectos fortalecendo o segundo. Toda tentativa de mudar integralmente o sistema, seja pela subversão revolucionária abrupta, seja pelo lento e progressivo solapamento das bases institucionais, começa por destruir o equilíbrio e portanto a ordem, sob a promessa vã de um futuro sem desequilíbrio nem desordem. A modéstia dos objetivos, a limitação do programa político a pontos precisos que não afetem os fundamentos do sistema, eis a marca dos partidos honestos – e essa não é, definitivamente, a marca do PT. A desonestidade desse partido mede-se pela amplitude megalômana das suas promessas.

Torneio de mímica

Olavo de Carvalho

O Globo, 18 de junho de 2005

Ao longo de décadas de experiência pedagógica, praticamente não encontrei nenhum brasileiro, com qualquer nível formal de instrução, que mostrasse algum desejo de alcançar uma compreensão mais profunda daquilo que lia. Todos se davam por satisfeitos com a reação imediata de aprovação ou repugnância que uma primeira leitura lhes causava, e não raro criavam instantaneamente, com base nela, julgamentos completos e definitivos.

Mas a mera impressão de concordância ou discordância ao ler um texto não significa nem mesmo que você o compreendeu. A compreensão de um texto – de qualquer texto — é a reconstituição do ato interior que o produziu, e essa reconstituição é impossível sem o acesso ao conjunto de dados que o autor tinha em mente ao efetuá-lo. Esses dados, na maior parte e em geral, pertencem à cultura pública, mas isto de nada adianta quando o leitor não tem a disposição de ir buscá-los. Alguns, para piorar, pertencem ao universo pessoal do autor, e estes têm de ser recriados imaginativamente, o que não é possível sem uma espécie de identificação projetiva que pode ser bloqueada tanto pela rejeição espontânea quanto pelo entusiasmo da adesão prematura.

A penetração imaginativa num universo intelectual pessoal é, em essência, a mesma operação com que apreende o conflito interior de um personagem de ficção, só que muito mais complicada, porque nela a imaginação não está livre para criar as analogias que bem entenda mas tem de prestar satisfações à multiplicidade dos dados e ao senso de realidade.

A dificuldade da operação decresce na medida do interesse pessoal e, portanto, da simpatia espontânea que se tem por um autor ou pelas suas idéias. Daí a tendência não só de negar o benefício da compreensão aos autores que não nos inspiram afeição imediata, mas de tomar essa simples afeição, quando surge, como prova de compreensão suficiente. O círculo vicioso só é rompido quando se assume, de uma vez por todas, a decisão de ler tudo com simpatia compreensiva, até que as idéias erradas, repugnantes ou maldosas comecem a se revelar como tais por seus próprios méritos e sem a nossa interferência prévia. Em suma, é preciso ler sempre com um preconceito a favor, e esperar que as objeções surjam contra a nossa vontade. Elas devem brotar do simples desenvolvimento interno do argumento ou do conflito crescente com os dados da realidade, não só como aparecem a nós, mas como apareciam ao próprio autor. Sem essa precaução, ninguém pode estar seguro de haver lido com o mínimo de compreensão necessário para emitir uma opinião sustentável.

Mas o esforço interior necessário para isso se torna inviável num ambiente de exasperação emocional onde cada um, no fim das contas, só concebe as opiniões adversas como produtos de uma exasperação emocional igual e contrária, nunca de um exame sério, por mais comprovado que seja.

Num ambiente de confusão moral, ninguém tem uma visão clara de seus erros e acertos; a consciência de culpa é substituída por um sentimento difuso de humilhação, insegurança e temor, que busca alívio postiço em explosões histriônicas de indignação e afetações de alta moralidade, não raro associadas ao fácil atrativo messiânico de algum discurso ideológico mal assimilado. Nesse ambiente, nenhum esforço de compreensão é possível, e toda discussão pública degenera em torneio de mímica entre poses de dignidade. A compreensão é incompatível com a mentira existencial, e por isto não é estranho que o analfabetismo funcional nas classes letradas cresça junto com a insinceridade geral do debate público.

Nos últimos tempos, frutos políticos maiores de uma longa acumulação de mentiras existenciais na vida da sociedade brasileira têm brotado com uma profusão e uma rapidez notáveis. A mais fatal dessas mentiras foi a aposta geral na moralidade intrínseca do socialismo e, portanto, do partido que mais popularmente o representava. Essa aposta nasceu perdida, mas, mesmo depois de tudo o que vem acontecendo, ainda haverá quem deseje redobrá-la. Nada se compara à capacidade brasileira de levar o fingimento às suas últimas conseqüências.

A farsa pluralista

Olavo de Carvalho

O Globo, 11 de junho de 2005

Um dos sinais mais alarmantes da degradação intelectual brasileira é a desenvoltura leviana com que apelos ao “pluralismo” surgem na boca de pessoas que nunca fizeram nem desejariam fazer a mínima tentativa de absorver alguma idéia diferente daquelas a que aderiram na juventude e nunca mais abandonaram.

Barateado, esvaziado de seu conteúdo concreto, que é o esforço da mente para superar suas preferênvcias usuais e admitir verdades que a insultam e ferem, o “pluralismo” reduz-se a um slogan demagógico que só serve para camuflar a realidade brutal do “centralismo democrático” leninista – a livre discussão entre os concordes. A perversão do sentido dos termos serve aí para legitimar a marginalização e a repressão das vozes antipáticas ao consenso auto-satisfeito, facilmente rotuláveis, por isso mesmo, de dogmáticas, autoritárias etc. A perversão culmina na completa inversão: “pluralismo” torna-se o nome do mais repressivo e intolerante unanimismo.

Tal é o resultado a que se chega quando se alardeia esse nome na praça pública, como emblema de bom-mocismo, antes de haver cultivado na intimidade da alma, entre perplexidades e angústias, longe de aplausos e de todo lucro político, a realidade que ele designa.

O verdadeiro pluralismo não pode existir sem pelo menos duas condições, uma objetiva, a outra subjetiva.

A primeira é a existência de uma autêntica variedade de opiniões em circulação. Essa condição, no Brasil, não se cumpre nem no jornalismo, nem no mercado de livros, nem na educação. Naquele, a gama de opiniões admitidas vai do esquerdismo radical ao socialismo light, mal sobrando lugar para um liberalismo tímido, autolimitado aos temas econômicos e cioso de não parecer anticomunista (o PFL, por exemplo, só usa o termo eufemístico “populismo”). Nas livrarias, a ausência de obras representativas do pensamento conservador vem de tão longe, que a lenda da superioridade intelectual da esquerda é tida pelo público leitor como verdade de senso comum só desconhecida pelos analfabetos e incapazes. Nas escolas, a propaganda comunista é tão onipresente que já não vem nem mesmo identificada como tal: as idéias do Manifesto de 1848 são transmitidas como expressões do saber científico tout court, neutro e superior a ideologias. Não por coincidência, são os criadores desse estado de coisas que mais usam a desculpa de “pluralismo” para justificar a repressão dos discordantes, com freqüência apelando às acusações de “dano moral coletivo” ante a menor opinião que os irrite, como já fizeram comigo e com D. Eugênio Sales, transferindo o debate do terreno dos argumentos para o da repressão jurídico-policial, onde esses apóstolos da livre expressão se sentem mais à vontade. Ironicamente, validam essa atitude explorando o terror pânico de um retorno aos “anos de chumbo” – ao mesmo tempo que acusam a nós, seus desafetos, de enxergar fantasmas por toda parte! — e explorando assim a ingenuidade popular que ignora tudo daquela época, sobretudo que então havia muito mais liberdade para o esquerdismo, nas redações, nas escolas ou no mercado de livros, do que hoje para o que quer que seja ou pareça direitista. A ditadura censurou notícias e processou alguns jornalistas e intelectuais (em número muito menor do que em geral se imagina), mas nunca adotou uma política de “ocupação de espaços”, como fizeram depois os esquerdistas, para expulsar seus adversários dos locais de trabalho por meio do boicote e da intimidação. Ao contrário, o esquerdismo conquistou aí sua hegemonia precisamente naqueles anos.

A segunda condição para o pluralismo é a longa e voluntária imersão da alma num mar de dúvidas e confusões atrozes, incompatível com aquelas tomadas de posição radicais e definitivas que os demagogos cobram da juventude. Explicarei mais sobre isso no próximo artigo.

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Como não é bom gastar todo o espaço desta coluna em debates com incapazes, coloquei no meu website, www.olavodecarvalho.org, algumas notas finais sobre o artigo “Praga fascista”, publicado pelo dr. Grijalbo Fernandes Coutinho no Globo de 21 de maio.

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