Posts Tagged Nova Ordem Mundial

Vocabulário da insensatez

Olavo de Carvalho

O Globo, 16 de setembro de 2000

Duas habilidades que a educação deve desenvolver no estudante são o senso das relações e proporções no mundo real e o senso das nuances e ambigüidades na linguagem.

Daí a importância da matemática e das línguas em todo ensino. As duas estão estreitamente ligadas: sua articulação permite perceber as coisas com nitidez e verbalizá-las com exatidão. Não é preciso dizer que isso não serve só para os estudos e o trabalho, mas entra na constituição da personalidade, da consciência e dos valores pessoais.

Nem é preciso informar que esse efeito não se produz espontaneamente: sua conquista depende de uma luta interior. Conduzir a alma nessa luta é a mais alta finalidade da educação, que por isso mesmo recebe seu nome da raiz “ex ducere” = “conduzir para fora”: letras e números transportam a alma para além do seu horizonte imediato de sensações e reações, abrindo-lhe o acesso à dimensão da cultura, da História, do espírito.

Sem ter chegado até aí, ninguém está apto a participar utilmente de um debate público. Tão logo sai do círculo da sua prática corriqueira para opinar sobre questões maiores, a alma impropriamente educada está tão desguarnecida, tão fora do seu elemento, que em sua performance as funções da percepção e da linguagem se invertem.

Se a percepção normalmente serve para a orientação na realidade e a linguagem para a articulação e expressão das realidades percebidas, no homem mal instruído que se debate com questões elevadas a capacidade de aprender direto da percepção torna-se muito reduzida, e desenvolve-se em seu lugar o hábito de criar falsas impressões a partir da linguagem: ele reage às palavras por associações emocionais diretas, sem passar pela referência aos fatos percebidos. Daí uma atmosfera de falsa coerência, em que a simples coordenação de emoções dentro da psique funciona como substitutivo do senso de realidade: basta que a reação do indivíduo a uma idéia lhe seja habitual e familiar para que ele creia saber toda a verdade a respeito.

Em contrapartida, a estranheza, o medo, a aversão são tomados como provas de que a idéia é falsa e inaceitável em si. O julgamento já não se baseia no exame do objeto, do assunto, mas na simples constatação passiva do estado interior do próprio sujeito. Quando essa reação subjetiva é confirmada por análogas reações de outras pessoas do seu grupo de referência, aí então a falsa sensação de realidade é reforçada ao ponto de tornar-se uma certeza inabalável, um dado do senso comum.

Infelizmente, boa parte da educação brasileira hoje em dia — do primário ao doutorado — visa a aprisionar as pessoas definitivamente nesse estado de auto-referência grupal.

Para averiguar quanto essa deficiência intelectual está hoje disseminada nas classes letradas, basta analisar um pouco a linguagem da mídia e dos debates políticos. Os termos mais carregados de valorações, os mais decisivos e de efeito mais garantido são justamente aqueles que não designam nada, absolutamente nada de real, mas apenas um complexo de emoções produzidas pela pura imaginação.

O termo conservador, por exemplo, tem no linguajar midiático brasileiro um conjunto de conotações negativas que, bem examinadas, revelam não corresponder a nenhuma corrente política existente ou concebível, mas expressar apenas a ojeriza mental suscitada, na mente coletiva, por uma imagem de fantasia.

O conservador, nessa acepção, é um catolicão moralista e retrógrado, saudoso de uma civilização agrária tradicional, mas ao mesmo tempo é um industrialista voraz sem o mínimo respeito pela ecologia; é um adepto da Nova Ordem Mundial e um nacionalista xenófobo; é um neoliberal que anseia por desmontar o Estado e um fascista que sonha em instaurar o Estado autoritário onipotente; é um fundamentalista que tem horror à teoria da evolução e um darwinista social entusiasta do domínio tecnocrático dos fracos pelos fortes, sendo ademais um fanático e um corrupto aproveitador sem convicções. Eventualmente é também malufista.

É evidente que o tipo assim delineado não existe e não pode sequer ser concebido como possível. Não obstante, o epíteto conservador é usado correntemente para lançar sobre sua vítima todas essas suspeitas ao mesmo tempo e torná-la tanto mais asquerosa quanto mais indefinível e envolta em mistério. O conservador é aí propriamente um Frankenstein, composto heteróclito de peças inconexas e sem a mínima possibilidade de encaixe. Não podendo existir no mundo real, ele é apenas a projeção das imagens disformes que se agitam na mente que o criou para temê-lo e odiá-lo. E é tanto mais fácil odiá-lo quanto menos ele pode existir no mundo real.

Uma discussão empreendida com esse tipo de vocabulário jamais será outra coisa senão um intercâmbio de alucinações. Alucinações, é claro, podem ser disciplinadas e uniformizadas, de modo que, todos delirando ao mesmo tempo segundo a mesma pauta, o geral sentimento de concordância forneça à coletividade de alucinados uma forte impressão de realidade e todos saiam persuadidos de que sabiam do que estavam falando.

Confúcio dizia que, para moralizar um país, é preciso começar pela restauração do sentido das palavras. Mas no Brasil essa restauração não vai acontecer, porque teria de começar por enviar para o hospício os moralizadores.

Mamar e sofrer

Olavo de Carvalho

Época, 26 de agosto de 2000

Quem não chora não mama: por isso, nem todos têm acesso aos benefícios da discriminação

Se a atual efusão de bondade para com os discriminados fosse sincera, ela procuraria socorrer primeiro os grupos que sofrem discriminação mais aberta e mais violenta, em vez de ficar rebuscando indícios de “racismo sutil” para favorecer os grupos que, longe de ser os mais discriminados, são apenas os mais protegidos pela Nova Ordem Mundial e os mais aptos a desferir um golpe mortal na unidade cultural brasileira.
Esses são os discriminados oficiais. Mas nenhuma discriminação, no Brasil, supera aquela que se volta contra as pessoas apegadas às tradições de sua cultura religiosa, caso não tenham a sorte de essa cultura ser indígena ou africana. Contra os católicos e os evangélicos, tudo é permitido: excluir suas doutrinas do universo intelectual respeitável; falar deles numa linguagem feita para humilhar e ferir seus sentimentos; achincalhar publicamente seu Deus, sua moral, seus profetas; fazer paródias grotescas de seus ritos, símbolos e preces; anatematizar o empenho proselitista que lhes foi ordenado pelo próprio Cristo; obrigá-los a aceitar, com presteza solícita, leis hostis a suas crenças; subestimar como detalhe irrelevante o massacre de milhões deles nos países comunistas; depreciar seus gestos de generosidade e auto-sacrifício mediante explicações pejorativas e atribuição maliciosa de intenções; esmagá-los no torniquete das cobranças contraditórias, acusando sua igreja de repressiva quando pune as condutas imorais e de corrupta quando as tolera.

Quem move esses ataques não são indivíduos isolados ou grupos clandestinos: é o establishment, é a mídia chique, são os professores nas cátedras, são os artistas nos palcos e nas telas, diante dos olhos do mundo, com a aprovação risonha das autoridades e dos bem-pensantes. As provas não têm de ser desentranhadas mediante tortuosas conjeturas estatísticas: elas estão diante de nós. Quem deseje investigá-las não terá dificuldade senão o embarras de choix.

E, se querem estatísticas, digam: qual a porcentagem de cristãos tradicionais na população brasileira e nas cátedras das universidades? No ministério FHC? Nos cargos de chefia da mídia? Façam essas contas e saberão o que quer dizer exclusão. Ainda bem que o reino dos cristãos não é deste mundo; porque até na cadeia “os bíblias” são um grupo à parte, alvo de chacotas dos demais detentos.

Quem diga ou faça contra gays um milésimo do que se diz e se faz contra os seguidores de Cristo será punido e exposto à execração universal. Mas quem ouse sugerir que cristãos também têm direitos já é virtualmente um réprobo, um inimigo do povo. Toda palavra em favor deles – inclusive as deste artigo – será recebida com protestos, com um brilho silencioso de ódio frio nos olhos ou, na mais branda das hipóteses, com um sorriso desdenhoso.

Por isso essa palavra não será dita nas reuniões com que o Brasil se prepara para o congresso mundial que, em 2001, se manifestará contra “todas” – entre enfáticas aspas – as discriminações. Omitindo-a, essas reuniões provarão apenas a discriminação dos mais quietos e resignados pelos mais barulhentos e ambiciosos. Só estes têm direito ao título de “discriminados”, outorgado pelas potências que regem o mundo. É a lei: quem não chora não mama. E quem chora escondido que mame as próprias lágrimas.

Operação Avestruz

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 23 de julho de 1998

O novo mundo de governo planetário e “paz perpétua” que se anuncia para o século vindouro só é reconfortante e tranqüilizador para a população dos cemitérios. Para o restante da humanidade, ele é tão estranho, incompreensível e atemorizador, que as mentes mais fracas se recusam a vê-lo e se refugiam numa feroz nostalgia das guerras e revoluções do século 20, onde pelo menos todo mundo acreditava saber o que estava em jogo. Como fantasmas num teatro abandonado, continuam a reencenar mecanica-mente os velhos enredos, para uma platéia vazia, enquanto em torno o universo rui.

Quando ouço os miúdos discursos domésticos de nossos esquerdistas e de nossos liberais, em defesa do Estado ou da livre empresa, não posso deixar de constatar que tudo não passa de uma regressão uterina para um extinto mundo simples, em reação de autodefesa psíquica ante um súbito e temível alargamento do cenário histórico.

Entre nossos intelectuais, acadêmicos, jornalistas, políticos e comentaristas de tevê, quase ninguém quer realmente saber o que se passa, e, bem ao contrário, todos buscam produzir ansiosamente um discurso qualquer que os dispense de olhar para o mundo e lhes dê a ilusão de estar pisando no terreno firme da década de 40.

Mas a simples ignorância natural não bastaria para defendê-los de um mundo que se precipita, em velocidade atordoante, para dentro do desconhecido. Para manter-se numa reconfortante penumbra, têm de produzir com esforço deliberado uma espécie de ignorância ativa , reforçada todos os dias mediante novas e mais engenhosas negações dos fatos. Toda a imprensa nacional, sem exceções visíveis, é hoje apenas um mecanismo auxiliar dessa vasta Operação Avestruz, a força-tarefa designada para a missão de tapar os olhos da massa às notícias incatalogáveis.

Um exemplo característico é a facilidade unânime com que se dá por pressuposto, seja para maldizê-la, seja para enaltecê-la, que a Nova Ordem Mundial não é se-não um novo nome do bom e velho imperialismo norte-americano. Partindo dessa premissa, tudo não passa de uma questão de reeditar o discurso varguista contra o inimigo estereotípico da soberania pátria, ou de, inversamente, louvar os benefícios de uma economia transnacional. Ano após ano, enquanto o mundo em torno vai se tornando cada vez mais sinistro e ininteligível, o confronto nacional de idéias repete o debate Almino Affonso versus Carlos Lacerda, ou, na mais atualizada das hipóteses, sambão versus Tropicália. A moçada das redações, ignorante até o limite do sublime, reproduz as velhas notícias, com o entusiasmo caipira do trilionésimo Colombo.

Há certos temas de atualidade, no entanto, que por sua simples menção bastariam para desmantelar todo o teatrinho mental em que essa gente se refugia, e os quais, por isso mesmo, jamais entrarão na nossa imprensa, se não for pelo preciso canal por onde estão entrando agora, isto é, por um artigo assinado do campeão nacional de atipicidade jornalística, que não é outro senão este vosso atento criado, obrigado.

Digo logo um deles: em muitos meios conservadores norte-americanos – aqueles mesmos que, no nosso catálogo mental, seriam os mais associados aos interesses das grandes empresas –, a Nova Ordem Mundial é abominada como temível ameaça à soberania nacional dos Estados Unidos . Na visão dessas pessoas, o Federal Reserve System que governa hoje a economia norte-americana é uma intervenção estrangeira, o resultado de uma conspiração de poderosos interesses multinacionais que pretendem transformar a nação ianque em instrumento passivo de um inédito esquema onde, pela primeira vez na História humana, o futuro será inteiramente fabricado em laboratório, re-baixando a democracia à condição de um véu de fumaça para encobrir secretos manejos de engenharia social.

Como os sujeitos que dizem isso destoam das nossas expectativas quanto ao que deve ser a conduta supostamente típica de um imperialista ianque, livramo-nos deles num relance, decretando que devem ser uns esquisitões irrelevantes ou então agentes disfarçados da mesma conspiração que condenam. À horrenda perspectiva de ter de pensar para poder compreender um fenômeno estranho, optamos, no primeiro caso, por imaginar que sabemos melhor que os americanos quem é e quem não é importante na sua política interna; no segundo, como bons paranóicos, apostamos num maquiavelismo hiperbolicamente satânico do denunciante para não ter de nos preocupar com a hipótese mais dosadamente maquiavélica que ele denuncia.

Em ambos os casos, é a Operação Avestruz em marcha.

A intelectualidade brasileira nunca foi muito hábil em prever para onde vai o mundo, e nós dentro dele. Pois agora sua minguada capacidade preditiva vai sendo ainda mais debilitada, com a ajuda de uma imprensa unanimista onde o que não sai num jornal não sai em nenhum deles, e em coro, diante de qualquer fato novo, recua com o horror do poeta García Lorca ante a “sangre derramada” de seu amigo, toureiro morto na arena:

– No! Yo no quiero verla!

Veja todos os arquivos por ano