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Cãozinho amestrado

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 20 de janeiro de 2013

          

O termo “teoria da conspiração” pode ser usado como um rótulo infamante ou como um conceito científico. No primeiro caso, ele tenta dar ares de coisa demencial a qualquer denúncia bem comprovada que, para uma platéia leiga, soe um pouco estranha à primeira audição. No segundo, como ensina Norman Cohn, ela expressa um conjunto de traços objetivamente verificáveis.

            O mais saliente desses traços é o uso de analogias e coincidências fortuitas como “provas” de unidade intencional por trás de discursos separados e inconexos vindos de agentes que se ignoram uns aos outros. Mesmo a mais vaga e frouxa afinidade de idéias é tomada aí como evidência de uma ação político-partidária organizada.

            Associada a esse traço vem a uniformidade da rotulação ideológica prévia e pronta, destinada a costurar num arremedo de explicação o repertório das informações abrangidas, evitando-se cuidadosamente a confrontação com hipóteses explicativas diversas ou antagônicas, condição sine qua non de qualquer investigação séria. A farsa pode ser e geralmente é camuflada sob uma pletora de fatos e documentos — aparentemente concordantes desde que amoldados sem discussão à clave interpretativa escolhida –, assim como pelo uso abundante de algum jargão acadêmico que dê ares de respeitabilidade ao que não passa de uma explosão irracional de ódio difamatório. Erros e mentiras de detalhe, bem espalhados ao longo do discurso, preenchem os rombos da explicação geral.

            Compreendida essa distinção, a tese do sr. Lucas Patschicki, Os Litores da Nossa Burguesia: O Mídia Sem Máscara em sua Atuação Partidária (2011), é, no sentido mais técnico e estrito, uma teoria da conspiração.

            No intuito de fazer crer que o jornal eletrônico Mídia Sem Máscara é uma perigosíssima organização fascista internacional decidida a consolidar a opressão burguesa e imperialista sobre a pobre classe trabalhadora, o sr. Patschicki usa dos seguintes expedientes:

            1. Arrola uma vasta bibliografia teórica, toda ela marxista, que repete a velha e surrada noção comunista do fascismo como “um fenômeno surgido com o imperialismo, cuja função política e social primária é o de reorganizar o bloco no poder de maneira brutal durante a crise aberta, para a manutenção e reprodução da sociedade de classes”. Que haja dois erros de português já nessa primeira declaração de princípios não deve nos surpreender – eles são abundantes em todo o texto, provando que a condição de semlietrado não é obstáculo a uma carreira acadêmica neste país –, nem deve nos desviar do essencial: o autor ignora ou exclui toda a imensa bibliografia não marxista, sobretudo mais recente, que impugna e reduz a pó essa definição do fascismo. O sr. Patschicki não é um historiador nem um cientista social: é um crente comunista que se mantém a uma profilática distância de toda leitura que possa abalar a pureza da sua fé. Tão inusitada é para ele a experiência dessa leitura, que, examinando o material do Mídia Sem Máscara, ele não pôde se furtar a “sentir náuseas um sem-número de vezes”. Com isso ele reproduz e exemplifica um fenômeno que eu já havia observado desde 2002, “a tendência incoercível (da militância comunista) de reagir às minhas palavras antes mediante uma agitação confusa de sensações ruins do que por qualquer elaboração intelectual… Quando as pessoas não têm como refutar uma idéia, jogam contra ela a expressão hipertrofiada de suas reações psicofísicas: ‘Me dá nojo’, ‘Me dá ânsia de vômito’ etc… ‘Ensino universitário’, no Brasil de hoje, consiste em adestrar a juventude nessas reações automatizadas.” O sr. Patischiki foi, nesse aprendizado, dócil como um cãozinho de circo: os reflexos condicionados comunistas impregnaram-se direto no seu aparelho digestivo, sem passar pelo seu cérebro.        

            2. Ao longo de todo o seu extenso trabalho, ele não encontra espaço para discutir ou refufar nenhuma afirmação minha ou as de qualquer outro colaborador do MSM. Limita-se a reiterar que são fascistas, dando sempre e invariavelmente como prova disso o fato de que convergem na sua oposição ao comunismo. Para isso ele dá por pressuposta, é claro, a redução de todo anticomunismo ao fascismo, coisa que ele aprendeu com seus orientadores, comunistões moldando a cabeça de um comunistinha. Assim, por exemplo, ele nem de longe examina criticamente a minha descrição da estrutura tripla do poder globalista no mundo; apenas proclama que ela é um disfarce do bom e velho imperialismo americano, e passa adiante todo pimpão, sem ter a menor consciência de que o cãozinho acumula assim as funções de palhaço.

            3. É quase inacreditável que, na investigação sobre uma publicação atual e atuante, o autor não tenha nem mesmo tentado entrevistar o fundador dela, nem seu editor executivo, nem qualquer de seus colaboradores, que poderiam ter corrigido inumeráveis erros de informação nascidos da interpretação fantasiosa dos documentos escritos. Um desses erros já falsifica na base as dimensões da publicação estudada: “O MSM foi criado em 2002… Naquela primeira edição, contou com a participação de cinqüenta e três colunistas…” Cinqüenta e três? O MSM não tinha nenhum colunista: limitava-se a reproduzir artigos extraídos de outros blogs. Era produto doméstico, criado inteiramente por mim, por minha esposa Roxane e por minha filha Maria Inês, com orçamento nulo. Nossa originalidade foi apenas a de reunir num site único materiais que estavam espalhados pela internet. A ampliação imaginária do tamanho do empreendimento é uma condição prévia das interpretações paranóicas que Patschicki lhe dá em seguida.

O único mal absoluto

Olavo de Carvalho

O Globo, 9 de fevereiro de 2002

Norman Cohn, em “The Pursuit of the Millenium”, assinala uma característica proeminente de certas seitas gnósticas medievais: seus adeptos sentiam-se tão intimamente unidos a Deus que se imaginavam libertos da possibilidade de pecar. “Isto, por sua vez, os liberava de toda restrição. Cada impulso que sentiam era vivenciado como uma ordem divina. Então podiam mentir, roubar ou fornicar sem problemas de consciência.”

A continuidade essencial da visão gnóstica do mundo nas ideologias messiânicas modernas — nazismo, fascismo, socialismo — é um dado histórico bem estabelecido pelos estudos de Cohn, Voegelin, Billington e tantos outros pioneiros que desbravaram o assunto desde a década de 30. É verdade que esses estudos continuam quase desconhecidos do nosso “establishment” universitário. Mas, quer o saiba ou não a elite intelectual de Catolé do Rocha, o fato é este: uma linha de sucessão perfeitamente nítida vem das heresias medievais aos revolucionários de 1789, a Marx, a Sorel, a Gramsci e a todos os seus sucessores na missão auto-atribuída de “transformar o mundo”.

Ao longo dessa linha, a crença na própria impecância essencial, derivada da certeza de união íntima a Deus, ao sentido da História, aos ideais eternos de justiça e liberdade ou a qualquer outra autoridade legitimadora transcendente — pois esta varia conforme a moda cultural, sem mudar de função — é que lhes infunde, geração após geração, um sentimento perfeitamente sincero de honradez e santidade no instante mesmo em que mergulham no mais fundo da abominação e do crime.

Não se trata de vulgar hipocrisia, mas de uma efetiva ruptura da consciência, que, elevando a alturas inatingivelmente divinas as virtudes da sociedade futura que o indivíduo acredita representar desde já, o torna “ipso facto” incapaz de julgar suas próprias ações à luz da moralidade comum, ao mesmo tempo que o investe, a seus próprios olhos, da máxima autoridade moral para condenar os pecados do mundo. Eis como as mais baixas condutas podem coincidir com as mais altas alegações de nobreza e santidade.

Foi com perfeita sensação de idoneidade que, após o fim da II Guerra, os marxistas continuaram discursando retroativamente contra a tirania e o genocídio nazistas, ao mesmo tempo que superavam rapidamente esses seus antigos concorrentes na prática da tirania e do genocídio.

Nas democracias, qualquer político vulgar flagrado em delito menor perde a pose, entra em crise depressiva e faz deplorável figura ante o olhar da multidão. É que não se imunizou previamente, por imersão nas águas lustrais da autobeatificação ideológica, contra o sentimento de culpa. Acossado pelas denúncias, ouve brotar desde dentro o clamor da sua própria consciência moral que, longamente reprimida, retorna das sombras para condená-lo, justamente no momento em que ele mais precisaria reunir suas forças para defender-se dos adversários externos. Então ele vacila e cai. Foi assim que caiu Nixon. Foi assim que caiu Collor.

Já o revolucionário, o militante, o malfeitor ideológico, quando exposto às provas inumeráveis de seus crimes sangrentos e inumanos, se sente revigorado, fortalecido, enaltecido. Pois esses crimes, para ele, não são crimes: são sinais da bondade futura. Só assim se explica que homens que, por onde quer que tenham subido ao poder, só espalharam morte, miséria e sofrimentos incomparáveis, como fizeram no Leste Europeu, na China, no Vietnã, na Coréia do Norte, no Camboja e em Cuba, ainda se sintam com autoridade bastante para verberar os pecados das democracias capitalistas, como se estas não tivessem provado mil e uma vezes sua capacidade de corrigir-se a si mesmas e se encontrassem urgentemente necessitadas dos conselhos morais de revolucionários, narcoguerrilheiros e genocidas.

Não é necessário dizer que essa autodivinização, que preserva da consciência dos próprios pecados o apóstolo do “mundo melhor”, corresponde literalmente à total rendição da alma ao pior dos pecados: a soberba demoníaca. “Todos os pecados se apegam ao mal, para que se realize”, dizia Sto Agostinho: “Só a soberba se apega ao bem, para que pereça.”

A destruição do bem por parasitagem interna é mais eficiente do que a simples acumulação de males. Reduzido a pretexto legitimador da violência, da crueldade e da desordem revolucionárias, o bem acaba por se identificar com elas, e qualquer tentativa de lhes opor resistência é que se torna um pecado nefando. Quando o encargo de julgar moralmente a sociedade recai precisamente sobre aqueles indivíduos que se tornaram os mais incapazes de julgar-se a si mesmos, o resultado é esse: uma moral invertida, uma antimoral de perversos e celerados afirma-se com a intransigência de um neomoralismo mais rígido e intolerante do que todos os moralismos conhecidos. Hoje em dia, em círculos letrados, já ninguém pode falar contra o consumo de drogas, contra a libertinagem, contra o aborto em massa ou contra certas formas de banditismo sem ver-se cercado de olhares de reprovação, como se tivesse dito algo de indecente.

Confundindo, rebaixando e prostituindo os padrões de julgamento, a simples presença, na vida intelectual e política, de um número suficiente de homens imbuídos dessa religiosidade às avessas já é um poderoso fator de deterioração moral da sociedade, inibindo a ação repressiva e infundindo nos delinqüentes uma autoconfiança ilimitada.

No fim, nada mais haverá a alegar contra um assalto, um homicídio, um estupro, exceto que, eventualmente, lhe faltou o devido “nihil obstat” ideológico. Tal é, por exemplo, o raciocínio do deputado Walter Pinheiro, líder do PT na Câmara Federal, ao pronunciar-se contra os seqüestradores de Washington Olivetto: “Eles seqüestram, torturam por dinheiro, não têm ética. Não são guerrilheiros, são bandidos.” Que é que isso significa, senão que seqüestrar, torturar e matar em nome das crenças do deputado, à maneira de um Fidel Castro ou de um Pol-Pot, faria, dos delinqüentes, lindos exemplos de moral superior? E notem não há aí a simples diferença do “crime comum” para o “crime político”. Pinochet também não matou por dinheiro. Matou por política, mas isto não basta para beatificá-lo aos olhos do deputado. Não é qualquer motivo político que serve. A esquerda tem, hoje como nos tempos de Stálin, não apenas o monopólio da licença para delinqüir, mas o monopólio do crime bondoso. Seqüestros, torturas, homicídios não são maus nem bons em si mesmos. São relativos. O único crime, o único pecado, o único mal absoluto, é estar contra o partido de S. Excia. Daí que sua correligionária, Heloísa Helena, se mostre menos indignada com a maré montante da criminalidade do que com a simples tentativa de investigar as ligações, mais que prováveis, entre seqüestros, narcotráfico e revolução continental. Crimes podem ser condenáveis ou louváveis, conforme a gradação de pureza de seus pretextos ideológicos. A investigação é má em absoluto, porque é coisa “da direita”.

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