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Um conselho de Heráclito

Olavo de Carvalho

O Globo, 22 de novembro de 2005

A regra mais importante do método filosófico é talvez aquela que Heráclito formulou na severa concisão da máxima: “Os homens despertos estão todos no mesmo mundo. Quando dormem, vai cada um para o seu mundo.” Abraham Lincoln traduziu isso dizendo que você pode enganar muitas pessoas por algum tempo ou algumas pessoas por muito tempo, mas não todo mundo o tempo todo. Saber que estamos no mesmo mundo em que viveram os sábios da China e do Egito, os profetas de Israel, os místicos hindus, os sacerdotes africanos e indígenas, os filósofos da Grécia e da Europa medieval, e que substantivamente nossa vivência da realidade não é mais rica nem mais válida que a deles, deveria bastar para alertar o intelectual moderno de que suas idéias, se não resistem a um confronto com a unanimidade dos séculos, não devem valer grande coisa.

Durante muito tempo os filósofos respeitaram essa unanimidade, embora só a conhecessem parcialmente. Hoje os livros clássicos de todas as tradições estão acessíveis em línguas modernas, e quem quer que ignore a convergência essencial das suas respectivas visões do universo, sobretudo no concernente à estrutura dos mundos espirituais, deve ser considerado in limine um apedeuta indigno de entrar na discussão de qualquer assunto intelectualmente relevante. Na impossibilidade de ler tudo, pelo menos a massa de documentos reunidos por Whitall N. Perry em “A treasury of traditional wisdom”, que acaba de sair em nova edição mais completa, é de conhecimento obrigatório para quem quer que pretenda opinar em questões de filosofia, religião, moral ou política. As três formas essenciais de registro da experiência espiritual humana são o mito, a revelação, a filosofia clássica. Essas três linguagens são eminentemente intertraduzíveis. Pelo seu estudo apreendemos a unidade da experiência humana da existência e descobrimos o óbvio: que ela forma o fundo do qual emergem todos os conceitos, todas as idéias, todos os critérios de conhecimento, mesmo nas ciências mais presumidamente autônomas como a física e a química (se têm dúvidas, consultem “A ciência e o imaginário” de André Corboz e outros, UnB, 1994). Fora disso, é tudo loucura pessoal ou moda cultural, destinada a dissolver-se no esquecimento, por mais barulho que faça durante algum tempo. No entanto é impressionante o número de filósofos dos dois últimos séculos que, com candura quase psicótica, asseguram que toda a humanidade anterior esteve enganada quanto a si própria e que eles são os primeiros a desvelar a autêntica realidade. Por milênios as gerações dormiram, imersas em mundos fictícios, até que Karl Marx, Freud, Nietzsche ou Heidegger viessem despertá-las para lhes informar — finalmente! — onde estavam. Acreditavam buscar Deus ou a sabedoria, Marx informa-lhes que apenas defendiam inconscientemente uma ideologia de classe. Imaginavam aspirar à perfeição moral, Freud lhes revela que era tudo um disfarce do desejo sexual reprimido. Sonhavam realizar elevados ideais, Nietzsche lhes mostra que só queriam o poder. Pensavam investigar o ser, Heidegger acusa-os de encobri-lo. Isto quando não aparece algum desconstrucionista para lhes dizer que nem mesmo existiam, que eram apenas signos de um texto imaginário.

Mesmo quando a investigação revela que essas interpretações pejorativas foram construídas em cima de fraudes, de manipulações e de ilogismos assombrosos, seu prestígio atual é tão grande que elas encobrem com sua sombra tudo o que veio antes delas, como se Sócrates ou Lao-Tsé não tivessem mais o direito de falar com suas próprias vozes, mas só pela boca de algum fiscal moderno. O resultado é que cada “nova verdade”, em vez de aumentar o acervo dos conhecimentos, só serve para suprimi-lo, para torná-lo incompreensível às gerações subseqüentes. A experiência humana de um Marx, de um Freud, de um Nietzsche — para não falar de um Sartre ou de um Foucault — é extraordinariamente diminuída, contraída, deixando de fora continentes inteiros registrados no legado universal. Para ser aceitos na comunidade intelectual elegante, temos de recortar nossa alma segundo o figurino desses egos mutilados, desprezando tudo o que não caiba no seu horizonte restrito. A “autoridade da ignorância”, como a denomina Eric Voegelin, tornou-se o critério supremo em todas as discussões. Já não queremos ser anões nos ombros de gigantes. Queremos que os gigantes se prosternem para que os anões se tornem a medida da estatura humana.

Platão e Aristóteles estavam conscientes, por exemplo, de que não podiam usar termos gerais sem primeiro decompô-los analiticamente em suas várias camadas de significado. Passados mais de dois milênios, aceitamos grosseiras figuras de linguagem — “materialismo dialético”, “libido”, “vontade de poder” — como se fossem conceitos objetivos, e nem sequer nos damos conta de que não resistem à mais modesta decomposição analítica. Raciocinamos por fetiches e fórmulas mágicas. Acreditando estar no pináculo do conhecimento, descemos ao nível do auto-engano pueril.

A onda de ataques à memória do general Ernesto Geisel é um espetáculo deprimente de hipocrisia, pois não busca senão encobrir, sob uma afetação de escândalo ante delitos conjeturais, os dois únicos grandes crimes efetivos praticados por aquele ex-presidente. E busca encobri-los porque ambos foram cometidos, precisamente, com a cumplicidade ao menos moral de seus atuais acusadores: (1) a ajuda fornecida a Cuba para a investida imperialista que matou cem mil angolanos; (2) os empréstimos irregulares ao governo comunista da Polônia, as famosas “polonetas”, um rombo de fazer inveja a milhares de juízes Lalaus e outros tantos PCs Farias.

Quarta-feira, participei pela última vez de um debate com intelectual esquerdista. É sempre a mesma coisa. Provo que o sujeito não sabe do que está falando, que não leu os autores que cita, que não compreende o que ele próprio diz — e o fulano sai batendo pezinho, alegando autoridade sacrossanta e dizendo-se vítima de complô. Para mim, chega. Não agüento mais bater em criança.

Cegos, caolhos e videntes

Olavo de Carvalho


O Globo, 28 de outubro de 2000

“O diabo diz a verdade nove vezes para
poder mentir melhor na décima”

Provérbio árabe

A cumplicidade entre esquerda oficial e violência revolucionária já se tornou tão patente que, como enfatiza o ex-ministro da Justiça, Paulo Brossard, só não a vê quem não quer. Mas, entre os que a vêem, há alguns que têm por ofício impedir que os outros vejam. Tais criaturas não são cegas nem videntes: são seres intermediários, que, tendo em terra de cegos um olho só, furam um de quem tenha os dois, para que não venha a tornar-se ameaça às suas prerrogativas reais de caolhos.

O nome de seu ofício é “desinformação”. Evidentemente não se pode exercê-lo sem ser também um expert em informação, pelas mesmas razões que tornariam dificultoso montar uma boa fraude fiscal sem conhecer as leis fiscais.

Para a consecução de sua tarefa, é indispensável pois adquirir primeiro um certo prestígio de fonte isenta e confiável, o que neste país é bem barato e pode se obter pela simples prática cotidiana da tucanidade, isto é, da duplicidade, ambigüidade, inocuidade ou quantas mais poses a imaginação popular associe, por motivos insondáveis, à idéia de justiça, bom-senso e savoir-faire (do mesmo modo como, em compensação e por razões igualmente misteriosas, toma como sinal de honestidade e bom caráter a obstinação vitalícia na mentira sectária).

A indefinição política exterior não prejudicará em nada o exercício das altas funções desinformáticas, pois nesse cargo de elite não se trata de fazer propaganda (isto fica para os militantes, os desprovidos de ambos os olhos), e sim de dar às lorotas partidárias, em momentos criteriosamente selecionados, a credibilidade das evidências acima de qualquer suspeita.

A prática desse ofício chega no entanto a ser desafiadora, pois há poucas coisas importantes que os brasileiros não ignorem, e é preciso uma inventividade incomum para desinformar os desinformados. Às vezes é preciso mesmo chegar à ousadia de negar que aconteceu algo que ninguém sabe que aconteceu. Assim, por exemplo, o público imagina que o PT é um partido como qualquer outro, diferente apenas pelo conteúdo das suas propostas de governo. Imagina isso porque não sabe que os demais partidos não têm um braço armado, nem contatos íntimos com organizações criminosas e revolucionárias de outros países, nem um serviço secreto particular com espiões e grampos por toda parte, nem uma rede de doutrinadores treinados para inocular ódio político nas crianças desde o pré-primário, nem um sistema de fiscalização para impedir que seus adversários conquistem empregos nas universidades, nem uma série de outros recursos aos quais o PT deve o seu sucesso e que o tornam, entre os partidos, uma raposa entre as galinhas, só não as comendo todas de uma vez porque não está seguro de poder digeri-las.

E como ninguém sabe que essas coisas existem, o profissional desinformático declara corajosamente que elas não existem, reforçando a crença estabelecida de que o PT quer apenas governar constitucionalmente e não derrubar o Estado constitucional, como, não obstante, é precisamente o que em seus documentos internos ele diz que vai fazer.

Caso o leitor deseje conservar o uso de seus dois olhos, minha recomendação é que, em vez de buscar informações em fontes que abrem ou fecham ao sabor de interesses políticos, passe a procurá-la nas que estão permanentemente abertas e brotem de lugares próximos à origem dos fatos.

O Rio Grande do Sul, por exemplo, é um dos poucos estados onde os não-petistas se interessaram em estudar e conhecer o fenômeno petista. Os gaúchos carregam o PT nas costas há uma década e, como dizia Nietzsche, “quem sofreu sob o teu jugo te conhece”. Alguns o conhecem tanto que foram removidos de seus postos na imprensa, sob ameaça governamental de cortar os anúncios oficiais, dos quais a mídia se torna tanto mais dependente quanto mais a economia local marcha para a total submissão ao Estado com resignação de carneiros rumo ao matadouro ou, em alguns casos, com obscena alegria masoquista.

Do Rio Grande chegam-nos quatro livros nos quais, da boca das vítimas e testemunhas diretas, o leitor obterá a descrição dos processos de governo petista: intimidação dos adversários, chantagem, desmontagem da polícia e sua redução ao estatuto de órgão auxiliar da violência revolucionária, substituição do poder legislativo por militantes e paus-mandados, uso abundante de crianças como instrumentos de propaganda ideológica, manipulação das verbas do Estado em favor do partido, politização totalitária de todas as relações humanas – enfim, uma imagem em miniatura do que será o Brasil de amanhã se a opinião pública continuar confiando naqueles que lhe asseguram que nada disso está acontecendo.

Esses livros são: “A nova classe no poder”, de J. H. Dacanal (Porto Alegre, Novo Século), “O impeachment do Governo Olívio Dutra”, do advogado Paulo Couto e Silva (Fundação Paulo do Couto e Silva); “Os 500 dias do PT no governo são outros 500”, do deputado estadual Onyx Lorenzoni (Sulina); e “Totalitarismo tardio: o caso do PT”, organizado por José Giusti Tavares (Mercado Aberto). O primeiro é lúcida narrativa da resistível ascensão do PT gaúcho; o segundo, o diagnóstico da ilegalidade essencial dos processos de governo petistas; o terceiro, o comentário do avanço revolucionário à medida que foi repercutindo na Assembléia Legislativa; o último, uma preciosa coleção de análises do totalitarismo petista, assinadas por um psiquiatra, um filósofo e dois cientistas políticos, que conseguiram furar o bloqueio e inserir esse tema explosivo num seminário para doutorandos em direito promovido por quatro prestigiosas instituições acadêmicas.

Dinheiro e poder

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 16 de setembro de 1999

Sempre que ouço um político de esquerda verberar em tom profético a cobiça capitalista, pergunto-me se ele imagina mesmo que o anseio de poder é uma paixão moralmente superior ao desejo de dinheiro, ou se simplesmente finge acreditar nisso para se fazer de santinho. Evidentemente, não há terceira alternativa. Nenhum militante esquerdista quer fazer uma revolução só para depois ir para casa viver como obscuro cidadão comum da república socialista: cada um deles é, por definição, o virtual detentor de uma fatia de poder no Estado futuro. Essa é, entre os adeptos de um partido, a única diferença entre o militante e o simples eleitor. Ao assumir a luta revolucionária, o mínimo que um sujeito espera é um cargo de comissário do povo. Afinal, não teria sentido que, após ter arcado com a responsabilidade de líder ativo na destruição do capitalismo, ele desse menos de si à “construção do socialismo”. (O mesmo, é claro, aplica-se, mutatis mutandis , aos militantes do fascismo ou de qualquer outra proposta de mudança radical da sociedade. Enfatizo o socialismo pela simples razão de que no Brasil de hoje não há um movimento de massas de inspiração fascista.)

Toda militância revolucionária é, pois, inseparável da ânsia de poder, e é preciso um brutal descaramento ou uma inconsciência patológica para não perceber que essa paixão é infinitamente mais destrutiva que o desejo de riqueza. A riqueza, por mais que as abstrações dos financistas tentem relativizá-la, tem sempre um fundo de materialidade – casas, comida, roupas, utensílios – que faz dela uma coisa concreta, um bem visível que vale por si, independentemente da opulência ou miséria circundantes. Já o poder, como bem viu Nietzsche, não é nada se não é mais poder. Isto é a coisa mais óvia do mundo: por mais mediada que esteja pelas relações sociais, a riqueza é, em última instância, domínio sobre as coisas. O poder é domínio sobre os homens. Um rico não se torna pobre quando seus vizinhos também enriquecem, mas um poder que seja igualado por outros poderes se anula automaticamente. A riqueza desenvolve-se por acréscimo de bens, ao passo que o poder, em essência, não aumenta pela ampliação de seus meios, e sim pela supressão dos meios de ação dos outros homens. Para instaurar um Estado policial não é preciso dar mais armas à Polícia: basta tirá-las dos cidadãos. O ditador não se torna ditador por se arrogar novos direitos, mas por suprimir os velhos direitos do povo.

Foi preciso que a inteligência humana descesse a um nível quase infranatural para que uma filosofia – ou coisa assim – chegasse a inverter equação tão evidente, vendo na miséria o fundamento da riqueza e no poder político o instrumento criador da igualdade.

O fenômeno mais característico do século 20, o totalitarismo, não foi um desvio ou acidente de percurso no caminho do sonho democrático: foi a conseqüência inescapável de uma aposta suicida na superioridade moral do poder político e na sua missão social igualitária. O resultado dessa aposta está diante dos olhos de todos. A prometida igualdade econômica não veio, mas, em contrapartida, a diferença de meios de ação entre governados e governantes cresceu a um ponto que os mais ambiciosos tiranos da Antiguidade não ousaram sequer sonhar. Júlio César, Átila ou Gêngis Khan recuariam horrorizados se alguém lhes oferecesse os meios de escutar todas as conversas particulares ou de desarmar todos os homens adultos. Hoje os governantes já estudam como programar geneticamente a conduta das gerações futuras. Não se contentam com o poder destrutivo dos demônios: querem o poder criador dos deuses.

É uma das mais atrozes perversidades da nossa época que o homem imbuído do simples desejo de enriquecer seja considerado um tipo moralmente lesivo e quase um criminoso, enquanto o aspirante ao poder político é visto como um belo exemplo de idealismo, bondade e amor ao próximo. Um século que pensa assim clama aos céus para que lhe enviem um Stalin ou um Hitler.

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