Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 25 de julho de 2005
O termo “neoliberalismo” foi inventado para enganar os nacionalistas, camuflando a aliança discreta entre a esquerda latino-americana e os poderes globais.
WASHINGTON, DC – Acabo de ler a entrevista do sr. Rubens Requeijão na revista Caros Umbigos , e lá vem de novo esse personagem de comédia da Atlântida tentando assustar criancinhas com o fantasma do “neoliberalismo” – o culpado de todos os males.
Mas é só um exemplo entre infinitos. A facilidade, a desenvoltura, a segurança com que no Brasil se usa esse termo, como se designasse uma entidade patente e arquiconhecida, é para mim o sinal mais evidente da psicose nacional, do completo divórcio brasileiro entre linguagem e realidade.
É deprimente observar como os autoproclamados representantes do “pensamento crítico”, incapazes da mais elementar análise crítica de seu próprio discurso, se deixam hipnotizar pelas palavras que empregam. Não existe nenhum “pensamento crítico” se você continua preso numa malha de compactados verbais, impotente para descascar suas várias camadas de significado e confrontá-las com os dados de realidade que presumidamente elas designam. Só o que existe, nessas condições, é pensamento mágico, é automacumba semântica.
“Neoliberalismo”, no vocabulário usual da esquerda – que no Brasil de hoje é o da mídia e da intelectualidade inteiras –, é uma corrente de opinião que favorece (a) a livre-empresa contra a intervenção estatal na economia, (b) o globalismo em detrimento dos interesses nacionais e (c) a moral judaico-cristã tradicional em oposição aos princípios “politicamente corretos”, buscando, por esses três meios, (d) ampliar a hegemonia norte-americana no mundo em prejuízo dos interesses das nações pobres. Com essas características, o neoliberalismo aparece como (e) sinônimo da “direita”, dando-se por pressuposto que (f) é a ideologia dominante no mundo dos negócios e entre os políticos antipetistas e anti-esquerdistas em geral.
Dado o objeto, só resta tomar posição diante dele: a primeira coisa que no Brasil se espera de um político, de um jornalista, de um formador de opinião, é que se defina – ou consinta em ser definido pelos outros – a favor ou contra o neoliberalismo. Tal seria a questão fundamental, o supremo divisor de águas que separa não apenas duas correntes políticas, mas dois sistemas de valores, duas concepções da existência.
A síntese dos elementos designados pela junção das camadas de significado forma um desenho apto a despertar o ódio dos nacionalistas, terceiromundistas e progressistas em geral. Como slogan político criado para reunir forças num vasto front anti-americano, o termo é perfeitamente apropriado.
Só resta perguntar se o objeto assim concebido pode existir efetivamente ou se, ao contrário, o impacto persuasivo da palavra não reside precisamente no fato de que ela junta numa síntese ideal elementos que, na realidade, só podem existir como entidades separadas, heterogêneas ou antagônicas. Um breve exame tirará isso a limpo:
1) Globalismo não é simples abertura de mercados: é introdução de regulamentações em escala mundial que transferem a soberania das nações para organismos internacionais. Nenhum apóstolo da economia de mercado é sonso o bastante para não perceber, hoje em dia, que a abertura das fronteiras arrisca não produzir um paraíso de liberdade econômica, e sim a proliferação de legislações e controles em escala global – o Leviatã dos leviatãs. A incompatibilidade lógica traduz-se, no plano da ação política, como briga de foice entre os liberais clássicos e os planejadores-legisladores econômicos globais. Nos EUA, isso é um fato do dia-a-dia. Mas, como no Brasil e em outros países da América Latina a mídia intoxicada de lendas esquerdistas jamais menciona esse fato, a união harmônica e indissolúvel de liberalismo clássico e globalismo pressuposta no conceito de “neoliberalismo” parece não só viável como realmente existente. Rarissimamente encontrei entre brasileiros um colunista de mídia, cientista social, empresário, analista econômico ou estrategista militar que tivesse alguma consciência desse engano monumental.
2) Um dos temas mais discutidos nos EUA é a contradição aparentemente insolúvel entre abertura econômica e segurança nacional. Os chineses, por exemplo, têm alguma chance de vencer a Chevron na concorrência para a compra da Unocal (a nona maior companhia americana de petróleo), mas, se isso acontecer, as conseqüências estratégico-militares podem ser desastrosas. A maior parte dos poços da Unocal está na Ásia, mais perto da China que dos EUA. Se os chineses cumprirem sua ameaça de invadir Taiwan, a quem a Unocal chinesa vai fornecer combustível? A eles ou às tropas americanas, comprometidas a defender a ilha custe o que custar? E não são só as empresas privadas que, na sua ânsia de livremercadismo absoluto, colocam o país em risco. O próprio governo americano, semanas atrás, estava quase fechando um negócio bilionário de venda de reatores nucleares à China, quando a Câmara dos Deputados, no último instante, vetou a brincadeira. Afinal, só um doido canta vitória comercial quando consegue bom preço na venda de armas ao inimigo que jurou matá-lo. Diante de fatos dessa envergadura – e eles são milhares –, como acreditar nos tagarelas brasileiros quando proclamam que a “idolatria do mercado” é um instrumento do poderio americano? Aqui, quem grita contra essa idolatria são precisamente os conservadores. Há pelo menos dez anos eles estrilam contra a orgia de investimentos na China, que os economicistas de plantão justificavam sob a desculpa da liberdade econômica, dotada, segundo eles, do poder miraculoso de gerar a liberdade política. Hoje as conseqüências dessa ilusão são tão evidentes que há mesmo quem suspeite que ela foi plantada na mente dos investidores americanos com o propósito consciente de esvaziar a ideologia capitalista dos valores morais e culturais que a sustentam, reduzi-la a um triunfalismo econômico suicida e usá-la como instrumento de liquidação das defesas nacionais americanas. Se essa hipótese lhes parece demasiado assustadora para ser verdade, lembrem-se de que a abertura econômica acoplada à destruição sistemática das bases morais do americanismo foi a marca registrada da era Clinton – e ninguém aqui ignora a intensa troca de favores entre os Clintons e a espionagem chinesa. Como lembrou o colunista Terence P. Jeffrey no semanário Human Events – de muita influência nos círculos bushistas –, os chineses leram Clausewitz e chegaram à conclusão de que comprar certos bens de capital é também “fazer política por outros meios”, isto é, guerra por outros meios.
3) Se identificar o globalismo com a ambição nacional americana já é maluquice bastante, ainda mais insano é associá-lo ao conservadorismo religioso que, nos EUA, vem crescendo ano após ano. Para o automatismo mental brasileiro, nada mais óbvio e autoprobante do que essa associação. O cérebro nacional acostumou-se a saltar direto das palavras às reações emocionais que elas evocam, sem a menor necesside de referência a alguma realidade do mundo exterior. Assim, a associação verbal é infalível: religião = reacionarismo; reacionarismo = capitalismo; capitalismo = imperialismo ianque; imperialismo ianque = globalismo; globalismo = neoliberalismo; logo, a moral religiosa tradicional é um instrumento do neoliberalismo. Esse método puramente galináceo de raciocínio é hoje obrigatório em todas as universidades brasileiras, e tamanha é a sua autoridade que a simples tentação de corrigi-lo já desapareceu do fundo das almas. Deve portanto soar como um escândalo intolerável a informação que vou dar a seguir: todos os conservadores religiosos americanos – cristãos ou judeus – são, em maior ou menor medida, contra o globalismo. E são contra por um motivo muito simples: o projeto de cultura mundial administrada, que vem junto com a uniformização econômica do planeta, traz no seu bojo as sementes de uma neo-religião híbrida, meio ecológica, meio ocultista, criada em laboratório por engenheiros comportamentais da ONU (procurem saber quem é Robert Müller), e cuja implantação resulta pura e simplesmente na destruição completa do cristianismo e do judaísmo. Não foi por coincidência que uma onda de anti-semitismo e anticristianismo se espalhou pelo planeta nas últimas décadas: ela veio por intermédio da rede global de ONGs subsidiadas pela ONU e por fundações milionárias, empenhadas na “guerra cultural” pela criação de uma civilização biônica inaceitável para toda mentalidade religiosa tradicional. Mais especialmente, o ataque cultural globalista se volta contra a cultura americana, tentando criminalizar e destruir as suas raízes judaico-cristãs e substituí-las por uma nova moral abortista e hedonista adornada pelo culto de Gaia ou fetiches similares. Nos EUA não há quem não esteja consciente de que esse é o verdadeiro divisor de águas, o verdadeiro campo de combate pelo domínio dos corações e mentes no século XXI. Os debates brasileiros passam a anos-luz de distância do centro dos acontecimentos.
4) Por fim, é absolutamente falso que a esquerda, no Brasil ou em qualquer outro país do continente, oponha alguma resistência ao globalismo, exceto o mínimo indispensável para fins de camuflagem. Nenhuma corrente política existe para se opor àqueles que a subsidiam. As fontes de dinheiro para a esquerda, tanto na América Latina quanto nos EUA e na Europa, são hoje bem conhecidas, e elas são precisamente as mesmas que, a pretexto de livre mercado, financiam o estabelecimento da Nova Ordem Global: as fundações Ford, Rockefeller, MacArthur e sobretudo a rede tentacular de agentes do multibilionário golpista George Soros – eis aí os grandes financiadores e protetores do chavismo, do lulismo, do fidelismo e de todas as demais patologias políticas que, numa atmosfera geral de loucuras e mentiras, tem se apossado velozmente do poder em várias nações do continente. A essas fontes capitalistas devem somar-se os agentes políticos (Partido Democrata, Diálogo Interamericano, os Clintons, os Kennedys e uma multidão de Carters) que ajudam a drenar para os mesmos destinatários o dinheiro do governo americano, principalmente as verbas da USAID. O leitor encontrará nos sites www.discoverthenetwork.org e www.activistcash.com um mapeamento bem minucioso da circulação de dinheiro entre os potentados do globalismo e as organizações que, na América Latina e em outras partes do Terceiro Mundo, fingem combatê-los. Essa elite invariavelmente toma partido da burocracia mundial quando esta fere o interesse nacional dos EUA, tal como aconteceu na guerra do Iraque, nas discussões sobre o Tratado da Lei do Mar, na introdução da moral “politicamente correta” na educação emericana etc. Financiando a esquerda do Terceiro Mundo, ela tem a seu serviço um útil instrumento para enfraquecer a resistência americana, facilitando a implantação do governo mundial que a ONU já declarou ser seu objetivo prioritário para as próximas décadas.
Para isso, precisamente, serve o termo “neoliberalismo”: para ludibriar nacionalistas sonsos nos países pobres, desviando suas pretensões de resistência antiglobalista no sentido de um anti-americanismo despropositado que, hoje, é um dos instrumentos essenciais da ascensão da burocracia mundial.
Intelectuais esquerdistas tagarelas do Terceiro Mundo são os tipos mais caricatos e desprezíveis que a humanidade já conheceu. Estão sempre dispostos a inventar belas desculpas para servir a tudo o que não presta.
Quem quer que use o termo “neoliberalismo” com ares de falar a sério só pode ser um manipulador de idiotas ou um idiota manipulado. Não creio que algum dia terei interesse em saber em qual dessas duas classes se incluem o sr. Requeijão e os redatores de Caros Umbigos.