Posts Tagged Nelson Rodrigues

A esquerda e os mitos difamatórios

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de julho de 2013

          

No show de ignorância dado à Folha de S. Paulo pelos líderes da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty), a estrela maior foi sem dúvida o sr. Milton Hatoum, que, incapaz de lembrar o nome de um só escritor brasileiro importante que fosse de direita, ainda completou a performance com esta maravilha: “Diziam que Nelson Rodrigues era, mas discordo. Era provocador, irônico, e na ditadura lutou para libertar presos.”

            De um lado, é absolutamente impossível, a quem quer que tenha lido o cronista carioca, ignorar seu anticomunismo intransigente, seu horror aos “padres progressistas”, seu apoio inflexível ao governo militar e até o orgulho com que ele se qualificava publicamente de “reacionário”.

            É óbvio que o sr. Hatoum só conheceu o pensamento de Nelson Rodrigues por ouvir falar, e ainda assim com muita cera nos ouvidos.

            Em segundo lugar, socorrer e proteger presos e perseguidos políticos durante a ditadura foi uma das ocupações mais constantes dos intelectuais de direita, entre os quais Adonias Filho (um dos muitos omitidos, por falta de espaço, no artigo anterior), Josué Montello, Antônio Olinto, Gilberto Freyre e Paulo Mercadante. Para cúmulo de ironia, o mais célebre e aguerrido defensor de presos políticos naquela época foi o advogado Heráclito Sobral Pinto, um católico ultraconservador que confessava e comungava todos os dias e, quando não estava tirando gente da cadeia, estava escrevendo furiosas diatribes contra o Concílio Vaticano II. Hoje seria chamado de “fundamentalista” e jogado no lixo com a multidão dos outros “ninguéns”.

            O que nunca se viu no mundo foi o beautiful people comunista correr em massa para estender a mão a perseguidos da ditadura soviética, chinesa, húngara, polonesa, romena ou cubana.

           Ao contrário, sempre que aparecia algum foragido revelando as torturas e padecimentos sem fim sofridos nos cárceres comunistas, a gangue toda se reunia, não raro em escala mundial, para achincalhá-lo como “agente do imperialismo”.

           Se o sr. Hatoum não conhece nem Nelson Rodrigues, seria loucura esperar que soubesse algo, por exemplo, do caso Kravchenco, em que toda a intelectualidade esquerdista se juntou para desmoralizar o ex-funcionário soviético que denunciava os horrores do Gulag. Kravchenco reuniu  testemunhas, provou o que dizia e venceu um processo judicial contra toda a plêiade dos bem-pensantes.

          Soljenítsin, quando esteve nos EUA, contou que os dissidentes soviéticos nunca receberam a menor ajuda da elite esquerdista americana, e sim apenas de sindicatos de trabalhadores (na época acentuadamente anticomunistas).

          Quando esteve no Brasil o pastor Richard Wurmbrand, homem que por dezesseis anos sofrera torturas e maus tratos numa prisão romena (confirmados em público por uma comissão médica da ONU), a mídia esquerdista o tratou como se fosse um demônio, um conspirador fascista.

          A mentalidade esquerdista intoxica-se de mitos difamatórios de maneira a não cair jamais na tentação de ver no adversário um rosto humano. Até hoje os quatrocentos guerrilheiros mortos na ditadura, muitos deles caídos de armas na mão, merecem mais lágrimas do que os cem milhões de civis desarmados que eles, como membros do movimento comunista internacional, ajudaram a matar. Até hoje os que nadam em indenizações milionárias como prêmio da sua cumplicidade com os regimes mais bárbaros e genocidas não consentem em dizer uma só palavra de conforto às vítimas da guerrilha brasileira, dando por pressuposto que a condição de ser humano é monopólio da esquerda, que aqueles que a esquerda matou, mesmo transeuntes inocentes, não passam de cachorros loucos abatidos pelo bem da saúde pública.

          Para o sr. Hatoum, basta um sinal de bondade na pessoa de Nélson Rodrigues, para produzir a conclusão automática e infalível: Não, ele não pode ter sido de direita.

          Nunca li os romances do sr. Hatoum, mas até admito, como hipótese extrema, que um idiota possa escrever um bom livro de ficção. O que é inadmissível é aceitar como “intelectual”, como formador de opinião, um sujeito que formou a sua na base do puro zunzum e sai por aí arrotando julgamentos sobre o que desconhece.

          Hoje, esse tipo de gente domina não só a FLIP, como todo o mercado editorial, as universidades e a mídia cultural, mas um dia a juventude brasileira, cansada de ser ludibriada por esses farsantes, adquirirá cultura por conta própria (espero sinceramente ajudá-la nisso) e não se curvará mais às opiniões recebidas. Submeterá seus gurus aos testes mais duros e chutará o traseiro daqueles que forem desmascarados como ignorantes palpiteiros a serviço de interesses mafiosos e partidários. Garanto que, entre meus alunos, há pelo menos cem que são incomparavelmente superiores, em inteligência e conhecimentos, aos donos da FLIP e à massa de seus puxa-sacos. O renascimento cultural do Brasil vem-se preparando no silêncio e na modéstia do trabalho sério, do esforço genuíno, na paciente aquisição dos instrumentos da vida intelectual superior. Quando esses jovens ocuparem o espaço que merecem, não haverá mais lugar para os picaretas de luxo, para os comedores insaciáveis de verbas públicas, para os apadrinhados de um governo que vive da mentira e da corrupção. Quando soar a hora, cada um destes últimos, desprovido da interproteção mafiosa, será julgado no tribunal da competência e da honradez intelectual e, muito previsivelmente, jogado às trevas do anonimato, de onde nunca deveria ter saído.

Saudades do jornalismo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 23 de abril de 2012

Quatro ou cinco décadas atrás, você abria os jornais e encontrava análises políticas substantivas. Fossem “de esquerda” ou “de direita”, os articulistas ainda acreditavam numa coisa chamada “verdade” e faziam algum esforço para encontrá-la. Eram também homens de boa cultura literária, conheciam e respeitavam o idioma. Tenho saudades dos longos artigos de Júlio de Mesquita Filho, Paulo Francis, Antônio Olinto, Paulo de Castro, José Lino Grünewald, Nicolas Boer, Gustavo Corção; do próprio Oliveiros da Silva Ferreira, que está vivo mas longe da mídia diária. E tantos outros. Tantos e tantos.

Hoje em dia temos puros polemistas, que não investigam nada, não explicam nada, não fazem nenhum esforço intelectual, não tentam entender coisa nenhuma, só tomam posição, lavram sentenças como juízes e ditam regras. Também os havia então, mas como escreviam bem! Carlos Lacerda, Nelson Rodrigues e Raquel de Queiroz eram provavelmente os melhores. O próprio Otto Maria Carpeaux era do time. Contrastando com a destreza dialética alucinante da sua crítica literária, os artigos de política que ele publicava no Correio da Manhã, produzidos em série e como que por automatismo, eram traslados servis das palavras-de-ordem do Partidão, do qual em pleno declínio de suas faculdades intelectuais ele se fizera “companheiro de viagem” por puro medo da ditadura, talvez do desemprego. Estão repletos de erros pueris, desinformação comunista grossa, mas neles ainda se reconhece o pulso firme do escritor. Do outro lado, havia, por exemplo, David Nasser. Sempre se sabia de antemão o que ia defender ou atacar. Mas com que graça se repetia, variando as formas ao ponto de fazer as opiniões mais estereotipadas soarem como novidades!

Tudo isso está morto e enterrado. Em toda a grande mídia só raros colunistas ainda honram o idioma, e o melhor deles não é brasileiro, é português: João Pereira Coutinho. Leio com satisfação Reinaldo Azevedo (o mais informado) e Neil Ferreira (o mais engraçado). Os outros que dão gosto estão só na internet. Em todos os grandes jornais ninguém escreve com a seriedade de Heitor de Paola, a elegância de Percival Puggina, a inventividade de Yuri Vieira, a precisão vernácula de José Carlos Zamboni, a erudição bem-humorada de J. O. de Meira Penna. Os outros que me perdoem: a lista dos melhores excluídos não tem mais fim.

Nas faculdades estuda-se, por incrivel que pareça, a decadência do jornalismo brasileiro. Mas lança-se a culpa em tudo, menos nos jornalistas. Como se a má pintura não fosse nunca obra de maus pintores ou a comida sempre fosse ruim a despeito dos excelentes cozinheiros. A classe tem um tremendo esprit de corps quando lhe interessa, mas nunca faz um julgamento sério de seus próprios atos, uma avaliação realista do seu impacto na sociedade. Narra sua história como se fosse autora de tudo o que é bom, vítima inerme de tudo o que é mau. Nada, absolutamente nada, lhe dói na consciência. Não lhe ocorre nem mesmo a conveniência de um vago mea culpa por ter ocultado o Foro de São Paulo ao longo de dezesseis anos, praticando a censura com mais eficácia, amplitude e tenacidade do que a Polícia Federal do tempo dos militares. Sua falsa auto-imagem raia a sociopatia pura e simples (v.http://www.olavodecarvalho.org/semana/111130dc.html,http://www.olavodecarvalho.org/semana/111124dc.html ehttp://www.olavodecarvalho.org/semana/111125dc.html). Nos anos da ditadura, como a liberdade de imprensa e a liberdade de ação da esquerda sofressem juntas as mesmas restrições oficiais (amplamente inoperantes na prática), jornalismo e esquerdismo se deram as mãos na luta contra o inimigo comum. Foi justo e oportuno. Mas, decorridas três décadas do fim do regime, a aliança de ocasião não quer admitir que seu tempo passou, que não há mais inimigos armados contra os quais o fingimento é a única defesa da parte mais débil. Na época a esquerda já dominava a mídia, mas fazia-se de coitadinha, de nanica, de excluída. Oprimida nas ruas e nas praças, discriminava os direitistas nas redações (como a intelectualidade acadêmica fazia nas universidades), reproduzindo às avessas, no microcosmo da profissão, o controle repressivo que o governo exercia na escala maior em torno. Hoje ela domina o país inteiro, e o que era precaução tática compreensível se tornou instrumento de perpetuação de poderes e prestígios imerecidos. A arma dos fracos tornou-se uma gazua nas mãos dos fortes. Nunca, ao longo de todo o período militar, a esquerda esteve tão amordaçada quanto a direita conservadora, especialmente religiosa, está hoje na grande mídia. Para camuflar esse estado de coisas, é preciso eternizar o luto, alimentar e realimentar, com um jorro constante de lágrimas forçadas e caretas de pavor fingidas, padecimentos e temores velhos de mais de um quarto de século. Essa é a mentira estrutural que está na raiz de todas as degradações do jornalismo brasileiro. É a proibição total da sinceridade. A destruição da linguagem vem daí. Ninguém pode escrever direito quando vive de se esconder de si mesmo.

Para cima e para baixo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de fevereiro de 2011

Conforme se sinta feliz ou infeliz, ajustado ou deslocado na sua época, você tenderá a enxergar a passagem do tempo histórico como evolução ou decadência. Os filósofos pré-socráticos, por exemplo, lhe parecerão precursores da ciência atual ou portadores de uma sabedoria perdida. A Idade Média, um período de trevas ou a apoteose da inteligência humana. A II Guerra Mundial, uma regressão à barbárie antiga ou o cúmulo da barbárie moderna.

A nenhuma época da História faltam qualidades que justifiquem uma opinião e a outra. Se há neste mundo algum julgamento que seja desesperadoramente subjetivo, é aquele que vê a caminhada da espécie humana sobre a Terra como uma gloriosa escalada em direção aos céus ou uma inexorável descida aos infernos.

“Todas as épocas são iguais perante Deus”, ensinava o grande historiador Leopold von Ranke. Quanto mais você estuda a História, mais se persuade de que não existe nela uma linha identificável – muito menos uma que leve claramente para baixo ou para cima.

Julgamentos de evolução ou decadência só fazem sentido quando há um objetivo e um prazo, claros e determinados, que possam servir de medida do avanço ou retrocesso. Como ninguém sabe para onde a História deve ir nem quanto ela vai durar, cada um é livre para medi-la segundo a régua que bem entenda e chegar a conclusões opostas às do seu vizinho.

No entanto, há na História entidades e instituições que têm uma finalidade clara e pretendem atingi-la num prazo concebível. Essas podem ser julgadas, pois têm em si seu próprio padrão de medida. A Igreja Católica, por exemplo, prometeu fazer santos, e os fez em profusão desde o primeiro dia, mas não pôde continuar a produzi-los na mesma quantidade e nem mesmo na proporção do crescimento do número de almas humanas na Terra. Dizer que algo ai não está muito bem não é nada de subjetivo.

O movimento sionista prometeu dar aos judeus um país no prazo de duas ou três gerações. Deu-lhes o país, mas cercado de inimigos. Foi um progresso caro e perigoso, mas quem não concordará que é melhor estar espremido na sua própria terra do que num país estrangeiro onde cada um está louco para jogar você num gueto ou num campo de concentração?

Já o socialismo não prescreveu a si mesmo nenhum prazo, mas o morticínio, a miséria e a opressão que produziu ao longo de um século já superaram tão amplamente a dose de sofrimentos humanos ele que prometia curar, que não é nem um pouco insensato prever que ele não poderá se sair melhor se lhe dermos outra chance (a última coisa que devemos fazer, na minha modesta opinião). De outro lado, seu fracasso em atingir os fins declarados não implica que ele tenha perdido também o prestígio mágico adquirido pelas suas promessas iniciais. Ao contrário: o número de fiéis do socialismo parece aumentar na mesma proporção do número de cadáveres que ele vai deixando pelo caminho. O socialismo decai como ideal legítimo no mesmo passo em que progride como máquina de conquista do poder. Como diria Nelson Rodrigues, o fracasso subiu-lhe à cabeça.

A cultura superior no Brasil também não nasceu com prazo, mas é razoável e aliás habitual medi-la pela evolução de um país vizinho nascido na mesma época e em condições não muito diversas. O transcurso de dois séculos fez aí toda a diferença: a elite pensante do nosso Império nada perdia na comparação com os Founding Fathers, mas enquanto os Estados Unidos são hoje o centro da alta cultura universal, reunindo os maiores filósofos, os maiores cientistas, os maiores artistas e as melhores universidades, o Brasil simplesmente saiu da história intelectual do mundo. Saiu pelo ralo. Pode-se perguntar o que deu errado e responder com máxima objetividade: Tudo.

A pergunta sobre evolução e decadência não é sempre descabida. Basta que seja limitada a entes e processos historicamente mensuráveis e que você esteja preparado para agüentar o tranco da resposta.

Veja todos os arquivos por ano