Olavo de Carvalho
O Globo, 5 de novembro de 2000
Se nas coisas que escrevo há algo que irrita os comunas até à demência, é o contraste entre o vigor das críticas que faço à sua ideologia e a brandura das propostas que lhe oponho: as da boa e velha democracia liberal. Eles se sentiriam reconfortados se em vez disso eu advogasse um autoritarismo de direita, a monarquia absoluta ou, melhor ainda, um totalitarismo nazifascista. Isso confirmaria a mentira sobre a qual construíram suas vidas: a mentira de que o contrário do socialismo é ditadura, é tirania, é nazifascismo.
Um socialista não apenas vive dessa mentira: vive de forçar os outros a desempenhar os papéis que a confirmam no teatrinho mental que, na cabeça dele, faz as vezes de realidade. Quando encontra um oponente, ele quer porque quer que seja um nazista. Se o cidadão responde: “Não, obrigado, prefiro a democracia liberal”, ele entra em surto e grita: “Não pode! Não pode! Tem de ser nazista! Confesse! Confesse! Você é nazista! É!” Se, não desejando confessar um crime que não cometeu, muito menos fazê-lo só para agradar a um acusador, o sujeito insiste: “Lamento, amigo, não posso ser nazista. No mínimo, não posso sê-lo porque nazismo é socialismo”, aí o socialista treme, range os dentes, baba, pula e exclama: “Estão vendo? Eis a prova! É nazista! É nazista!”
Recentemente, cem professores universitários, subsidiados por verbas públicas, edificaram toda uma empulhação dicionarizada só para impingir ao público a lorota de que quem não gosta do socialismo deles é nazista. Não se trata, porém, de pura vigarice intelectual. A coisa tem um sentido prático formidável. Ajuda a preparar futuras perseguições. Consagrado no linguajar corrente o falso conceito geral, bastará aplicá-lo a um caso singular para produzir um arremedo de prova judicial. Para condenar um acusado de nazismo, será preciso apenas demonstrar que ele era contra o socialismo. Hoje esse raciocínio já vale entre os esquerdistas. Quando dominarem o Estado, valerá nos tribunais. Valerá nos daqui como valeu nos de todos os regimes socialistas do mundo.
Intimidados por essa chantagem, muitos liberais sentem-se compelidos a moderar suas críticas ao socialismo. Mas isso é atirar-se na armadilha por medo de cair nela. Já digo por que.
Socialismo é a eliminação da dualidade de poder econômico e poder político que, nos países capitalistas, possibilita – embora não produza por si — a subsistência da democracia e da liberdade. Se no capitalismo há desigualdade social, ela se torna incomparavelmente maior no socialismo, onde o grupo que detém o controle das riquezas é, sem mediações, o mesmo que comanda a polícia, o exército, a educação, a saúde pública e tudo o mais. No capitalismo pode-se lutar contra o poder econômico por meio do poder político e vice-versa (a oposição socialista não faz outra coisa). No socialismo, isso é inviável: não há fortuna, própria ou alheia, na qual o cidadão possa apoiar-se contra o governo, nem poder político ao qual recorrer contra o detentor de toda riqueza. O socialismo é totalitário não apenas na prática, mas na teoria: é a teoria do poder sintético, do poder total, da total escravização do homem pelo homem.
A formação de uma “nomenklatura” onipotente, com padrão de vida nababesco, montada em cima de multidões reduzidas ao trabalho escravo, não foi portanto um desvio ou deturpação da idéia socialista, mas o simples desenrolar lógico e inevitável das premissas que a definem. É preciso ser visceralmente desonesto para negar que há uma ligação essencial e indissolúvel entre elitismo ditatorial e estatização dos meios de produção.
O socialismo não é mau apenas historicamente, por seus crimes imensuráveis. É mau desde a raiz, é mau já no pretenso ideal de justiça em que diz inspirar-se, o qual, tão logo retirado da sua névoa verbal e expresso conceitualmente, revela ser a fórmula mesma da injustiça: tudo para uns, nada para os outros.
Porém, no próprio capitalismo, qualquer fusão parcial e temporária dos dois poderes já se torna um impedimento à democracia e ameaça desembocar no fascismo. Não há fascismo ou nazismo sem controle estatal da economia, portanto sem algo de intrinsecamente socialista. Não foi à toa que o regime de Hitler se denominou “socialismo nacional”. Stalin chamava-o, com razão, “o navio quebra-gelo da revolução”. Por isso os socialistas, sempre alardeando hostilidade, tiveram intensos namoros com fascistas e nazistas, como nos acordos secretos entre Hitler e Stalin de 1933 a 1941, na célebre aliança Prestes-Vargas etc. Já com o liberalismo nunca aceitaram acordo, o que prova que sabem muito bem distinguir entre o meio-amigo e o autêntico inimigo.
Por isso mesmo, é uma farsa monstruosa situar nazismo e fascismo na extrema-direita, subentendendo que a democracia liberal está no centro, mais próxima do socialismo. Ao contrário: o que há de mais radicalmente oposto ao socialismo é a democracia liberal. Esta é a única verdadeira direita. É mesmo a extrema direita: a única que assume o compromisso sagrado de jamais se acumpliciar com o socialismo.
Nazismo e fascismo não são extrema-direita, pela simples razão de que não são direita nenhuma: são o maldito centro, são o meio-caminho andado, são o abre-alas do sangrento carnaval socialista. Os judeus, perseguidos em épocas anteriores, podiam usar do poder econômico para defender-se ou fugir: o socialismo alemão, estatizando seus bens, expulsou-os desse último abrigo. Isso seria totalmente impossível no liberal-capitalismo. Só o socialismo cria os meios da opressão perfeita.
Não, a crítica radical ao socialismo não nos aproxima do nazifascismo. O que nos aproxima dele é uma crítica tímida, debilitada por atenuações e concessões. E essa, meus amigos, eu não farei nunca.