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Em louvor de Lula

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de setembro de 2015

          

Na peça teatral “Processo e Morte de Stalin”, de Eugenio Corti – escritor da estatura de um Manzoni ou de um Tolstoi –, o ditador soviético convida alguns de seus ministros e assessores para um jantar na sua casa de campo, na intenção de prendê-los e sacrificá-los num dos seus célebres “expurgos”. Eles descobrem o plano e decidem virar o jogo. Desarmam os guardas da casa e já estão quase liquidando com um tiro na nuca o velho companheiro, quando surge a idéia de lhe dar uma última oportunidade de se explicar perante o tribunal do materialismo histórico.

O que se segue é uma obra-prima de argumentação dialética, na qual Stalin logra demonstrar, ante os olhos estupefatos de seus executores, que os crimes que perpetrou não foram jamais traições aos ideais revolucionários, mas sim a realização fiel, exata e genial dos princípios do marxismo-leninismo nas circunstâncias históricas dadas. Os conspiradores admitem que ele tem razão, mas resolvem matá-lo mesmo assim.

Para confirmar o dito de Karl Marx de que as tragédias históricas se repetem como farsas, alguém deveria escrever uma peça similar sobre o sr. Luiz Inácio Lula da Silva. Qualquer estudioso de marxismo que tenha feito a sua lição de casa – um tipo que, admito, é uma raridade absoluta tanto na esquerda quanto na direita hoje em dia –, tem a obrigação de perceber que, do ponto de vista da estratégia revolucionária, Lula nada fez de errado.

Ao contrário. Seguiu a receita fielmente, com um fino senso dialético das condições objetivas, dos momentos e das oportunidades, logrando realizar o quase impossível: salvar da extinção o movimento comunista latino-americano e colocá-lo no poder em uma dúzia de países. Fidel e Raul Castro jamais puseram isso em dúvida. As próprias Farc reconheceram-no enfaticamente, na carta de agradecimento que enviaram ao XV aniversário do Foro de São Paulo.

Mais ainda: no seu próprio país, Lula foi o líder e símbolo aglutinador da “revolução cultural” que deu aos esquerdistas o completo controle hegemônico das discussões públicas, ao ponto de que praticamente toda oposição ideológica desapareceu do cenário, sobrando, no máximo, as críticas administrativas e legalísticas que em nada se opunham à substância dos planos revolucionários. Isso nunca tinha acontecido antes em país nenhum. O próprio Lula, consciente da obra realizada, chegou a celebrar a mais espetacular vitória ideológica de todos os tempos ao declarar que, na eleição presidencial de 2002, o Brasil havia alcançado a perfeição da democracia: todos os candidatos eram de esquerda.

É fácil chamá-lo de ladrão, de vigarista, do diabo. Mas o fato é que essas críticas se baseiam num critério de idoneidade administrativa que só vale no quadro da “moral burguesa” e que, em toda a literatura marxista, não passa de objeto de zombaria. O que aconteceu foi apenas que Lula, como todo agente do movimento comunista internacional que não chega ao poder por meio de uma insurreição armada e sim por via eleitoral, como foi também o caso de Allende no Chile, teve de fazer alianças e concessões – inclusive e principalmente ao vocabulário da “honestidade burguesa”—com a firme intenção de jogá-las fora tão logo começassem a atrapalhar em vez de ajudar. Tanto ele quanto seu fiel escudeiro Marco Aurélio Garcia foram muito explícitos quanto a esse ponto: ele, em entrevista a Le Monde; Garcia, a La Nación.  Mover-se no meio das  ambigüidades de uma conciliação oportunista entre as exigências estratégicas do movimento revolucionário e os interesses objetivos dos aliados capitalistas de ocasião é uma das operações mais delicadas e complexas em que um líder comunista pode se meter. Mas, pelo critério dos resultados obtidos – o único que vale na luta política –, o sucesso do Foro de São Paulo é a prova cabal  de que Lênin, Stálin ou Fidel Castro, no lugar de Lula, não teriam feito melhor.

Nem mesmo o enriquecimento pessoal ilícito pode ser alegado seriamente contra ele, pelos cânones da moral revolucionária. De um lado, em todos os clássicos da literatura comunista não se encontrará uma única palavra que sugira, nem mesmo de longe, que o compromisso de fachada com a “moral burguesa” deva ser cumprido literalmente como guiamento moral da pessoa do líder, ou mesmo do menor dos militantes.

De outro lado, é fato histórico arquicomprovado que todas as estrelas maiores do cast comunista enriqueceram ilicitamente – Stalin, Mao, Fidel Castro, Pol-Pot, Allende, Ceaucescu –, sendo uma norma tácita que tinham até a obrigação de fazê-lo, de preferência com contas na Suíça, para ter os meios de resguardar-se e reiniciar a revolução no exterior em caso de fracasso do projeto local. O próprio Lênin só não chegou a poder desfrutar do estatuto de nababo porque semanas após a vitória da Revolução a sífilis terciária, cumprindo seu prazo fatal, o reduziu a um farrapo humano. Como dizia Yakov Stanislavovich Ganetsky (também chamado Hanecki), o mentor financeiro de Lênin, “a melhor maneira de destruirmos o capitalismo é nós mesmos nos tornarmos capitalistas”.

O movimento revolucionário sempre viveu do roubo, da fraude, do contrabando, dos seqüestros, do narcotráfico e, nos países democráticos onde chegou ao poder, do assalto aos cofres públicos. Lula não inventou nada, não inovou em nada, não alterou nada, apenas demonstrou uma habilidade extraordinária em aplicar truques tão velhos quanto o próprio comunismo.

No tribunal da ética revolucionária, portanto, nem uma palavra se pode dizer contra ele. As críticas só podem provir de três fontes:

a) Reacionários empedernidos, frios, desumanos e incompreensivos como o autor destas linhas, que não condenam Lula por desviar-se do movimento revolucionário e sim por permanecer fiel ao esquema de destruição civilizacional mais cínico e diabólico que o mundo já conheceu.

b) Aliados burgueses insatisfeitos de que ele viole de maneira demasiado ostensiva as regras da moral capitalista, sujando a reputação de quem só quer ajudá-lo.

c) Esquerdistas com precária formação marxista, que não entendem a natureza puramente tática da retórica burguesa de idoneidade administrativa e imaginam – ou se esforçam para imaginar diante do espelho — que a roubalheira seja uma traição aos ideais revolucionários.

Os primeiros são os únicos que dizem o português claro: a roubalheira petista não é um caso de “corrupção” igual a tantos outros que a antecederam, mas é um plano gigantesco de apropriação do dinheiro público para dar ao movimento comunista o poder total sobre o continente.

Os segundos, ideologicamente castrados, imaginam poder vencer ou controlar o comunopetismo mediante simples acusações de “corrupção” desligadas e isoladas de qualquer exame da sua retaguarda estratégica. Inclui-se aí toda a grande mídia brasileira, com a exceção de alguns colunistas mais ousados como Reinaldo Azevedo, Percival Puggina e Felipe Moura Brasil.

Os terceiros macaqueiam o discurso dos segundos na esperança de salvar a reputação do movimento revolucionário mediante o sacrifício de uns quantos “corruptos” mais visíveis. Nas suas mentes misturam-se, em doses iguais, a falsa consciência, o fingimento histérico de intenções angélicas e o desejo intenso de limpar com duas palavrinhas tardias uma vida inteira de serviços prestados ao mal.

Não espanta a pressa obscena dos segundos em celebrar estes últimos como heróis nacionais. Vêem neles uma ajuda providencial para tomar do parceiro incômodo o controle da aliança sem ter de passar por anticomunistas, uma perspectiva que os horroriza mais que o risco do paredón.

Botão de descarga

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 31 de julho de 2013

          

Poucos jornalistas brasileiros têm denunciado a fraude geral do governo petista com a constância, o brilho e a bravura de Diogo Mainardi, mas isso não quer dizer que ele compreenda claramente o que está acontecendo neste País, nem que se abstenha de sugerir remédios capazes de até  agravar consideravelmente a situação.
Numa recente mensagem postada no seu Facebook, ele exclama: “Falta uma mudança total, de tudo. Falta uma greve geral que tenha a força de liquidar essa quadrilha do PT, incrustada no poder. Falta o impeachment da Dilma… O impeachment, na minha visão, funciona como o botão que se aperta para dar descarga na privada.”
Isso não seria grave se Mainardi fosse o único a pensar dessa forma, mas a sua visão do cenário político é a mesma de uma  grande parte da sociedade brasileira.
O primeiro erro dessa perspectiva é ignorar que às vezes o centro vivo do poder, portanto a fonte geradora do mal, nem sempre reside no ocupante do mais alto posto da hierarquia constitucional; e, quando está em curso um processo revolucionário comunista sob camuflagem democrática, não reside quase nunca.
É da natureza mesma do movimento comunista, sobretudo nas épocas de incerteza, não queimar jamais os seus quadros melhores expondo-os aos riscos de um cargo público demasiado visível.
O comando do processo está hoje nas mãos do Foro de São Paulo, e quando digo isso não me refiro nem mesmo às suas assembleias gerais, porém mais aos círculos de conversações discretas, ou até secretas, em que se fazem e desfazem governos e se decidem os destinos de nações inteiras sem que as respectivas populações tenham disso a menor notícia, ou, como confessou o sr. Lula, “sem que pareça”. O discurso que esse ex-presidente fez no 15º aniversário do Foro, em 2005 – documento que ninguém na grande mídia publicou ou leu –, contém informações essenciais onde se pode obter uma ideia do poder avassalador da organização que por quase duas décadas se fingiu de inexistente ou inofensiva com a ajuda do silêncio obsequioso da classe jornalística em peso (ver link). Igualmente significativas, sob esse aspecto, foram as declarações do sr. José Dirceu em entrevista ao sr. Antonio Abujamra à qual ninguém prestou alguma atenção inteligente (ver link).
Há anos o Foro decidiu que o fim do mandato de Lula assinalaria o fim da “etapa de transição” e o começo da conquista abrangente e definitiva do poder, ou, em outras palavras, o upgrade decisivo, a passagem do socialismo meia-bomba ao socialismo-bomba (ver link).
A recente onda de protestos, planejada e incitada por agentes do Foro, inclusive com treinamento de guerrilheiros urbanos para dar à coisa um aspecto devidamente atemorizante (ver link) e justificar medidas mais drásticas contra o bode expiatório de sempre, a “direita fascista” (ver link), mostra claramente que o comando revolucionário não hesitou em espremer a sra. Dilma Rousseff contra a parede, para que esta se definisse, isto é, assumisse a liderança do processo ou fosse passada para trás pelas facções mais ousadas da esquerda nacional.
Os resultados do teste, porém, apareceram embaralhados pela intromissão de um fator inesperado: espontaneamente, numa desorganização majestosa, massas de liberais, conservadores e cidadãos sem cor política revoltados contra a esbórnia federal saíram também às ruas em quantidades oceânicas e, em certos pontos, acabaram ocupando o espaço e os megafones destinados inicialmente à agitação esquerdista.
Embora atônita e desorientada – prova inequívoca de não ter passado no exame –, a presidenta foi salva pela decisão do comando revolucionário, ele próprio a essa altura atônito e desorientado, de dar marcha a ré na sucessão de badernas e fechar-se em copas para autocrítica e remanejamento estratégico. Não fossem esses imprevistos, o fracasso da presidenta em dirigir os acontecimentos teria marcado o fim da sua carreira política e a ascensão de novas estrelas de esquerda, longamente preparadas para isso na escolinha maternal do próprio Foro de São Paulo (ver link).
Dito de outro modo: se só Dilma Rousseff tivesse se mostrado perplexa e o próprio Foro não tivesse perdido o controle da situação, a cabeça da presidenta já teria rolado, e o sonho do sr. Diogo Mainardi teria se realizado, mas não em proveito do povo brasileiro e sim da parte mais furiosa da esquerda nacional, com a subsequente instauração de um regime francamente revolucionário. E este, com a  centralização abrupta e descarada do poder, não hesitaria em apelar, sob o pretexto de saneamento e até sob os aplausos da massa ingênua, não só à violência repressiva tipicamente comunista como também a formas de corrupção de tipo soviético, ainda mais requintadas e perversas do que aquelas a que nos habituou a mixórdia petista.
No rumo que as coisas tomaram, ficou tudo em suspenso até melhores análises estratégicas, mas, qualquer que seja o caso, o que está provado e bem provado é que livrar-nos de Dilma não é a mesma coisa que livrar-nos do mal. Se o fosse, o próprio Foro não teria chegado tão perto de apertar o botão de descarga. Mais sobre isso no próximo artigo.
Links:

Duas perguntas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 9 de abril de 2013

          

A revista acadêmica Intelligencer, do Patrick Henry College, de Purcellville, Virginia, enviou-me esta semana algumas perguntas sobre a situação política na América Latina. As respostas que ofereci a pelo menos duas delas não me parecem desprovidas de interesse para o leitor brasileiro.
Pergunta:  Quais foram as causas da mudança da América Latina para o socialismo/comunismo depois de a região ter alcançado algum sucesso no capitalismo?
Resposta: A história da América Latina no último meio século pode se dividir em três etapas. Primeiro vieram as ditaduras militares e a derrota da esquerda armada. Depois, a volta da democracia e uma fase de entusiasmo epidérmico pelo capitalismo liberal, coincidindo com a queda do comunismo no leste europeu. Por fim, a ascensão geral das esquerdas.
É evidente que a terceira etapa foi preparada durante a segunda, quando a opinião pública parecia imaginar que o comunismo estava morto e enterrado para sempre, mas na verdade apenas se fazia de morto para assaltar o coveiro. O que aconteceu foi que, na época, a direita não entendeu de maneira alguma o processo de transformação interna do movimento comunista.
Os militares haviam se concentrado no combate à esquerda armada, sem fazer praticamente nada contra o comunismo no campo ideológico e cultural, que, precisamente na época da maior repressão, ia sendo discretamente dominado pelos esquerdistas. Na quase totalidade dos países da América Latina, estes dominavam o aparato cultural e jornalístico,  justamente no instante em que a queda da União Soviética lançava entre eles um estado de confusão ideológica muito propício a uma revisão estratégica profunda, que veio a acontecer com rapidez extraordinária – sem que a direita, então embriagada de ilusão triunfalista, nem sequer o percebesse.
Essa revisão foi composta pelos seguintes itens: (1) a reforma organizacional dos partidos comunistas, que abandonaram a antiga linha vertical de comando para adotar uma organização mais flexível em “redes” e propiciar a articulação estratégica entre todas as facções de esquerda, passando por cima de antigas dissensões ideológicas; (2) uma mudança radical no discurso ideológico, que, em vez da transformação estrutural da economia, passou a enfatizar toda sorte de interesses grupais antagônicos ao sistema, ao qual já não se declarava guerra abertamente, mas se combatia desde mil lados ao mesmo tempo, lançando na sociedade uma confusão dos diabos.
Essas transformações refletem aquilo que Augusto del Noce chamou, um tanto ironicamente, de “suicídio da revolução”: dissolvida toda visão clara de um futuro socialista, a luta revolucionária esfarelou-se em mil e uma linhas de combate aparentemente inconexas que, segundo o mesmo del Noce, não faziam avançar a causa socialista ostensivamente, mas iam corroendo todos os valores morais e culturais da sociedade capitalista, que, assim, assumia  feições cada vez mais malignas e odiosas.
As novas gerações de adeptos do capitalismo, já educadas fora dos valores morais e culturais que sustentavam o regime, colaboraram nesse processo, entregando-se a um pragmatismo amoral que transformava o capitalismo precisamente no monstro que os esquerdistas desejariam que ele fosse. Os esquerdistas, por sua vez, aproveitavam-se disso para fomentar a corrupção e ao mesmo tempo denunciá-la, lançando as culpas no capitalismo.
O conjunto tornou-se tão confuso que ninguém, na direita, compreendia o que estava acontecendo. Atônitos e paralisados, os políticos conservadores e liberais (no sentido latino-americano do termo) foram cedendo a um avanço ideológico cujo perfil comunista de conjunto lhes escapava por completo, Foi assim que a facção que no começo dos anos 90 parecia quase extinta veio a se tornar a dominadora quase absoluta do continente.
Pergunta: O presidente Hugo Chávez  teve  ampla responsabilidade nessa mudança?
 Resposta: Não, de maneira alguma. Chávez foi apenas o espantalho usado pela esquerda para distrair os observadores norte-americanos, que concentravam nele as suas atenções enquanto empreendimentos de muito maior envergadura, dirigidos desde o Brasil, isto é, desde o foro de São Paulo, iam consolidando a posição das esquerdas no continente.
O governo e a mídia dos Estados Unidos entraram num tal estado de alienação que chegaram a acreditar que havia na América Latina duas esquerdas, uma totalitária e ameaçadora, representada por Hugo Chávez, e outra democrática e até pró-americana, personificada por Lula – mas Lula foi o fundador e, por doze anos, o dirigente máximo do Foro de São Paulo.
Mais realista foi a visão das FARC (Forças Armadas Revolucionárias) da Colômbia, que logo enxergaram na fundação dessa entidade a salvação e o futuro do movimento comunista. Chávez só se tornou membro do Foro quando este já  tinha cinco anos de existência e seus planos estratégicos para o domínio continental estavam em plena execução.
Nunca houve entre Chávez e o Foro, ou entre Chávez e Lula, a  mínima divergência. O próprio Lula, em dois discursos, que chegaram a ser reproduzidos no site oficial da Presidência da República brasileira, reconheceu que o Foro tinha elevado e mantido Hugo  Chávez no poder. Este foi  um instrumento dócil da entidade, encarregado de condensar em si os temores internacionais, acobertando as operações de conjunto do Foro no restante do continente.

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