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Garras invisíveis

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 07 de agosto de 2015

          

Andei lendo, nos últimos dias, Till We Have Faces, a majestosa obra-prima em que C. S. Lewis toma de Apuleio o mito de Eros e Psique e o reconta à sua maneira. A narrativa é escrita na primeira pessoa pela princesa e depois rainha Orual, a irmã mais velha e mais feia da bela Psique, e assume a forma de um tremendo libelo contra os deuses, acusados de, sob a proteção da invisibilidade e da distância inacessível, fazer da vida humana um jogo arbitrário e cruel.
Justa e valente ao ponto de bater-se pessoalmente em duelo vitorioso contra o rei de um país inimigo, e educada, ademais, nos princípios da filosofia grega, Orual busca em tudo uma razão de ser, e não encontra. Sua revolta contra o destino chega ao auge quando os deuses lhe roubam a irmãzinha querida, a única alegria da sua triste vida, para fazer dela a esposa de um ser misterioso – um monstro, talvez – cujo rosto é proibido contemplar.
Quanto mais Orual se rebela, mais os deuses a perseguem, induzindo-a em erros e colocando-a em situações absurdas que ameaçam levá-la à insanidade. O romance tem passagens tão angustiantes que inspiram no leitor o “terror e piedade” da tragédia clássica, mas o desenlace da história no além-túmulo não é nada trágico, pois no fim das contas a rainha não é julgada pelos deuses perseguidores e sim pelo “deus desconhecido” que tudo cura e redime.
Não vou dar detalhes para não estragar a leitura. Mas para mim foi uma sorte estar lendo esse livro justamente numa ocasião em que tudo em volta me induzia a meditar sobre o destino paradoxal do cidadão numa democracia moderna, investido de direitos legais sublimes, mas submetido a poderes cada vez mais distantes e inacessíveis que o controlam, manipulam e atormentam num jogo de gato e rato.
Anos atrás li, não lembro onde, uma profecia budista de que no fim dos tempos os homens seriam deuses para os homens. Na época imaginei que se tratasse de um culto idolátrico, mas hoje entendo que não é preciso render-lhes culto para que alguns homens tenham os meios de reduzir o seu concidadão menos poderoso à condição de um rato que se debate em vão entre as garras de um gato invisível. O que os torna divinamente inalcançáveis não é nenhuma magia celeste, é a trama densa e indeslindável das leis, da burocracia e dos recursos tecnológicos postos à disposição de quem possa comprá-los. Governos, serviços secretos, partidos políticos, organizações revolucionárias e megaempresas transformaram-se em réplicas simiescas, mas não menos temíveis, dos deuses da antiguidade.
Eu poderia citar como exemplo o caso da pobre Debbie Schlussel, a colunista americana que em 2008, antes das eleições presidenciais, descobriu o certificado de alistamento militar grosseiramente falsificado de Barack Hussein Obama, prova cabal de que o candidato era um criminoso chinfrim, sem qualificações para obter uma licença de porte de arma ou mesmo um emprego de balconista do Wallmart. Até hoje essa verdade patente, visível a olho nu, enfrenta em vão a resistência sem rosto de poderes invisíveis e onipresentes (muito parecidos com o partido dos sonhos de Antonio Gramsci) que insistem em encobri-la com piadinhas evasivas, mesmo depois de sete anos de desastres presidenciais sem fim, que poderiam ter sido evitados antecipadamente mediante uma simples queixa na polícia.
A capacidade de desconversa desses fantasmas é ela mesma fantasmagórica. Sempre que se fala em documentos falsos, eles respondem em uníssono: “O presidente não nasceu no Quênia. ” Não contestam a acusação: mudam a identidade do acusador, forçando-o a patinar em falso. De onde vem essa oposição perversa, uniforme e obstinada? Nem todas as especulações dos teóricos da conspiração poderiam responder a essa pergunta envolta numa trama indeslindável de subterfúgios, que elas só tornam ainda mais enigmática. Pobre Debbie, pobre Orual.
Mas não preciso ir tão longe. Eu mesmo, durante a semana, vivi o papel do rato preso entre garras invisíveis. Se o leitor me permite, conto a história.
Como muitos outros escritores e jornalistas, uso o Facebook como canal de comunicação diária com o meu público leitor. Entremeando considerações filosóficas, piadas, recordações curiosas e invectivas contra o governo mais corrupto de todos os tempos, fui ampliando esse público até chegar além de 220 mil seguidores. Muitos deles, em 15 de março, foram às ruas com cartazes “Olavo tem razão”, protestando contra o silêncio ominoso da mídia e dos políticos em torno de denúncias que eu vinha fazendo desde 1993 contra o esquema comunopetista – ou comunolarápio – de apropriação do Estado.
Em 2013, tudo correu bem. O único inconveniente eram páginas repletas de caricaturações maldosas e pueris, quase sempre anônimas – o primeiro mas ainda nada alarmante sinal das garras invisíveis – que em reação me acusavam de tudo quanto era crime e me catalogavam, ao mesmo tempo, como espião do Mossad e agente islâmico, gnóstico maçom e fundamentalista cristão, nazista camuflado e comunista enrustido, além de fuçar a vida da minha família e recontar a minha biografia em tons horripilantes, com honestidade luliana e o senso cronológico de um drogado em plena bad trip.
A partir de 2014, porém, quando as verbas de propaganda concedidas pelo governo federal ao Facebook cresceram 118 por cento em comparação com o ano anterior (leia aqui), tudo mudou. Minha página passou a ser bloqueada a todo momento, sob as alegações mais levianas e despropositadas, enquanto as páginas que me acusavam até de assassinato eram, quando denunciadas pelos meus seguidores, abençoadas pelo Facebook com a garantia de que “não violavam as normas da comunidade”. Normas que, só posso concluir, lhes asseguravam o direito à prática impune do crime de calúnia, fazendo portanto do próprio Facebook uma organização criminosa, como aliás acontece com toda empresa que vai para a cama com o PT.
Agora, nas semanas em que vão ocorrer novas megamanifestações de rua contra o descalabro petista, veio um novo bloqueio, desta vez por trinta dias, de modo que eu não possa me comunicar com o público durante os protestos.
Só um mentecapto veria aí uma mera coincidência, pois o pedido de bloqueio partiu justamente da mesma página do MAV (Núcleo de Militância Virtual do PT), que me faz acusações caluniosas sob a proteção do Facebook (v. ilustração).
Como eu passasse a postar mensagens pela página da minha esposa, esta foi bloqueada também.
Quem são os agentes por trás dessa operação? Quem são os mavistas que a executam? Quem, na alta direção do Facebook, decidiu apoiar tão descaradamente crimes de calúnia e ainda perseguir a vítima?
Abrigados por trás de uma confortável invisibilidade, fazendo em pedaços a Constituição brasileira que proíbe o anonimato, os deusinhos do MAV e do Facebook infernizam a vida do cidadão e divertem-se a valer como larvas em festa no fundo do seu esgoto olímpico.
A partir de segunda-feira, minhas novas mensagens, incluindo os links para os artigos do Diário do Comércio, serão postadas na minha própria rede social, The Real Talk, (clique aqui).
Facebook que reproduza — ou esconda – o que quiser.

A cultura do beicinho

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 23 de janeiro de 2005

No Brasil, quando você topa uma discussão franca e prova o seu ponto de vista honestamente, com fatos e lógica, o resultado é invariável: a parte derrotada chama você de intolerante. Tolerância, no entender desse povo, não é abdicar da força em favor da razão. É abdicar da razão para não ferir o apego sentimental que o interlocutor tem a opiniões insustentáveis. Mas, com toda a evidência, o amor às próprias opiniões, a recusa de submetê-las ao teste da lógica, é a definição mesma da intolerância. O que os brasileiros chamam de tolerância é a intolerância imposta por meio da chantagem emocional que faz beicinho quando contrariada por argumentos. Só o que a distingue da intolerância totalitária são os meios que emprega. Entre o beicinho e a guilhotina, a diferença é de grau, não de substância. Tanto que do beicinho se passa, com a maior facilidade, aos insultos e às ameaças de morte – morte ao “intolerante”.

Opiniões, neste país, não são hipóteses concebidas para tentar descrever a realidade. São símbolos de uma personalidade ideal, próteses psíquicas em que se amparam as identidades pessoais vacilantes. São amuletos. Desativar um deles pelo exame racional não é trocar uma visão tosca da realidade por uma visão mais aprimorada: é desfazer um encantamento protetor, é colocar uma alma em risco, demolindo seus pilares de papelão. É, mais que um insulto, uma agressão, um crime. A resposta ao crime é a violência legítima: já houve quem propusesse, em nome da tolerância, cortar minhas mãos, para que não pudesse escrever, e minha língua, para que não pudesse falar. E alardeava isso com a consciência limpa de quem, acuado por perigo iminente, agisse em defesa própria.

Circulam pela internet inumeráveis mensagens, e não de braçais semi-analfabetos, mas de estudantes e professores, que, tendo lido meus artigos, perguntam aterrorizados: “Que faremos se um dia ele chegar ao poder?” Acreditam piamente que não sou um simples cidadão privado, um estudioso sem ligações políticas empenhado em analisar e compreender os fatos: sou um elemento – um “quadro”, como se dizia no velho Partidão – de um vasto esquema golpista, fortemente subsidiado por grandes empresas, às vezes com algum envolvimento direto da CIA e do Mossad, empenhado em trazer de volta o regime militar ou mais provavelmente a teocracia medieval, tão propícia, como se sabe, ao capitalismo moderno e mais ainda aos judeus. Dito isso, acusam-me de disseminar teorias conspiratórias. Juntam-se às centenas para discutir os meios de me tirar de circulação e se regozijam com o benefício que assim trariam à democracia e à liberdade de pensamento. Fazem isso com a maior seriedade. Depois empilham sobre a minha pessoa densas camadas de vitupérios – canalha, verme, fascista, porco, safado – e, com idêntica convicção subjetiva, asseguram que não vai nisso nenhuma hostilidade, apenas uma crítica serena às minhas idéias.

Estaria eu exagerando ao ver nessa amostragem um sinal do estado de enervamento psicótico e inconsciência febril em que se encontram as classes alfabetizadas deste país, depois de nutridas durante décadas com a ração da mais pura paranóia comunista, terceiromundista e anti-americana?

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Talvez tenhamos mesmo herdado dos portugueses aquela propensão, assinalada neles pelo conde Keyserling, de tentar conciliar o inconciliável e, evidentemente, dar sempre com os burros n’água por isso mesmo. Lula se acha apto para atuar de mediador entre Chávez e Uribe porque está persuadido de que é os dois ao mesmo tempo. Não deixa de ter razão. Seu partido é leal às Farc e sua política econômica é leal aos EUA. Seu governo se alimenta do agronegócio e o declara o principal inimigo. Estufa as empresas com subsídios e às esvazia por meio do fisco. Cospe nas Forças Armadas e tenta seduzi-las para a estratégia continental da esquerda. Getúlio Vargas também, segundo observou José Ortega y Gasset, fazia política de esquerda com a mão direita e de direita com a mão esquerda. Terminou, mui coerentemente, usando a mão direita para dar um tiro no lado esquerdo do peito.

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