Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 9 de outubro de 2013
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 9 de outubro de 2013
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 5 de dezembro de 2011
O discurso comunista mudou muito ao longo dos tempos. Começou declarando que a classe revolucionária, incumbida de destruir o capitalismo, era o proletariado industrial. Desde Herbert Marcuse, acredita que os proletários são uns vendidos e que a tarefa de transformar o mundo cabe aos estudantes, prostitutas, bandidos e drogados (e, no Brasil, aos funcionários públicos, que Marx considerava aliados naturais da burguesia). Começou proclamando que idéias e doutrinas eram apenas um véu de aparências tecido em cima do interesse de classe. Decorrido um século e meio, admite, com Ernesto Laclau, que as classes nem mesmo existem, que são criadas pela propaganda revolucionária conforme os interesses do Partido no momento.
É difícil debater com gente que muda de conversa cada vez que a discussão aperta.
Mas uma coisa é inegável: a mentalidade comunista, que no início era um bloco dogmático de idéias prontas, foi se tornando uma trama obscura e proteiforme, um labirinto móvel de subterfúgios e desconversas, quase impossível de descrever. Na mesma medida, a adesão ao comunismo, que era a aceitação pura e simples de um esquema explicativo prêt-à-porter, foi se transmutando num processo psicológico complexo que se parece menos com a crença numa “ideologia” do que com a contaminação neurótica numa massa turva de sentimentos confusos.
Esse processo reflete a adaptação progressiva do movimento comunista a situações culturais criadas pelo descrédito intelectual do marxismo originário e pela necessidade de substituí-lo por novas versões cada vez mais escorregadias, imunes à crítica racional.
Ao longo desse processo, a propaganda comunista, que no início era propriamente uma “doutrinação”, repetição obsessiva de teses dogmáticas, foi se transformando cada vez mais num envolvimento emocional sem conteúdo doutrinal explícito, inoculando nos militantes menos uma concepção do mundo que um sentimento de participação comunitária fundado no ódio a entidades cada vez mais vagas e menos definíveis.
Em vez de perder credibilidade, porém, o discurso comunista ganhou força com isso, precisamente na medida em que já não é mais um “discurso” em sentido estrito e sim um aglomerado de símbolos de grande penetração emotiva, muitos deles não-verbais, que apelam por igual às frustrações e ressentimentos mais disparatados, unificando, por incrível que pareça, o ódio de feministas e gayzistas à moralidade religiosa tradicional e a hostilidade fundamentalista islâmica ao imoralismo decadentista das sociedades ocidentais. A coerência do discurso ideológico já não importa mais: só o que conta é a sedução, infinitamente adaptável aos interesses mutuamente contraditórios dos grupos sociais mais diversos, todos mesclados numa atmosfera emocional difusa onde todos os gatos são pardos e todos os pretextos são bem-vindos.
Por isso mesmo, a mente dos comunistas individuais, especialmente daqueles que atuam publicamente como “intelectuais”, foi se tornando cada vez mais complexa e inapreensível, suas falas cada vez mais elusivas e escorregadias, ao ponto de que suas opiniões já não podem ser “discutidas”, apenas analisadas como sintomas de um estado de espírito nebuloso que elas não expressam diretamente, apenas insinuam por entre sombras, como na linguagem dos sonhos.
A coesão de um discurso pode ser interna ou externa. No primeiro caso, as partes estão unidas umas às outras por um vínculo lógico. No segundo, pela referência a um conjunto de fatos ou coisas reconhecíveis. As duas formas de coesão podem vir articuladas, quando a coerência interna do discurso busca refletir com fidelidade um conjunto de relações objetivas.
Mas há ainda uma quarta possibilidade: o discurso nem é coerente consigo mesmo, nem reflete adequadamente uma realidade, nem articula essas duas exigências, mas continua exercendo, ao menos sobre certo público, um efeito persuasivo como se realizasse perfeitamente, e simultaneamente, as duas modalidades de coerência.
Isso acontece quando, sob a aparência de defender idéias ou expor fatos, ele não faz realmente nem isto nem aquilo, mas expressa apenas o sentimento de identidade do grupo social a que se destina. Como aí as idéias e fatos já não interessam por si mesmos, mas apenas como símbolos evocadores de certas reações emocionais, tudo o que o discurso precisa para que o aceitem como veraz e coerente, sem ser uma coisa nem a outra, é usar os símbolos corretos, capazes de despertar automaticamente as respostas instintivas desejadas. Para isso, evidentemente, esses símbolos têm de ser de uso geral e corrente no público-alvo: têm de ser lugares-comuns, chavões, frases feitas, clichês.
Uma linguagem de clichês pode ser usada deliberadamente, com arte e técnica, por um demagogo ou propagandista hábil, dominador dos meios de manipular as emoções do público. Mas também pode acontecer que, usada em excesso, ela se dissemine ao ponto de usurpar o lugar das outras formas de discurso, tornando-se o linguajar geral e espontâneo, o modo de pensar de todo um grupo falante, de toda uma coletividade de “intelectuais”. Neste caso, a intenção de manipular torna-se praticamente inconsciente, o que era demagogia torna-se uma forma de inocência perversa cujo praticante já não pode enganar os outros senão na medida em que se engana a si mesmo. A mentira deliberada desaparece do horizonte de consciência e se transmuta em fingimento histérico, constantemente reforçado pela autopersuasão compulsiva, em que a falsidade absoluta dos pretextos alegados contrasta pateticamente com a intensidade real dos sentimentos que despertam. O processo culmina num estado de completa alienação, em que vidas inteiras se constróem sobre a ignorância radical das condições objetivas que as fundamentam.
Quanto mais vasto o grupo social envolvido nesse jogo de teatro, mais vigoroso o reforço que cada um dos atores recebe de seus pares. Na mesma proporção, vai-se ampliando a permissão para a prática costumeira da incoerência e da falsidade, até que todo resíduo de compromisso com a razão e os fatos seja por fim abolido, trocado pela intensificação crescente do sentimento de identidade grupal, que a essa altura passa a valer como o único critério de veracidade concebível.
Não é preciso dizer que esse sentimento, na medida em que se intensifica, fortalece a coesão e a capacidade de ação unificada do grupo envolvido, resultando, por vezes, em acréscimo do seu poder político. Assim se explica o paradoxo aparente de que, ao longo do século XX, os grupos mais intoxicados de idéias inverídicas e absurdas – os comunistas e os nazistas – saíssem freqüentemente vencedores na disputa com adversários mais sensatos e realistas. Invertendo o otimismo inaugural da modernidade, que pela boca de Sir Francis Bacon proclamava “Conhecimento é poder”, a evolução dos acontecimentos mostrou que, se esse slogan continua válido no campo da ciência, da técnica e da indústria, na política a ignorância, a inconsciência e a loucura são armas nada desprezíveis – e isto não apenas no sentido banal de que a sonsice das massas pode ser manipulada por um demagogo esperto, mas no sentido mais temível de que o manipulador pode ser tornar tanto mais eficiente na medida em que ele próprio é ignorante, inconsciente e louco.
No Brasil, o fenômeno de alienação aqui descrito se apossou de praticamente toda a intelectualidade esquerdista ao longo do processo mesmo da conquista da hegemonia e do poder pelos partidos de esquerda, o sucesso político reforçando a loucura ao mesmo tempo que se beneficiava dela.
Há muitos anos não leio uma só linha escrita por intelectual de esquerda neste país onde não note uma linguagem de chavões auto-hipnóticos substituindo e abolindo as exigências mais elementares da razão e do senso de realidade. Os exemplos são tantos e tão onipresentes, que a única dificuldade em colhê-los é o embarras de choix. Em compensação, eles se parecem tanto uns com os outros, a uniformidade psíquica que os inspira no fundo é tão patente e repetitiva, que examinar um deles é, de certo modo, dar conta de todos eles.
Em artigos seguintes desta série examinarei com certa minúcia um desses escritos, tomado como amostra de laboratório. Ele não se distingue em quase nada de seus similares que circulam às pencas pela mídia impressa e pela internet. Escolhi-o por duas razões apenas: (1) É texto que alude à minha pessoa, o que me facilita a averiguação dos fatos por testemunho direto. (2) Ele manifesta de maneira especialmente clara o estado mental da intelectualidade esquerdista, por ter sido escrito por um dos membros mais tipicamente burros e loucos da comunidade, o sr. Caio Navarro de Toledo.
Olavo de Carvalho
Zero Hora, 2 de abril de 2006
Pretendendo distinguir-se de seus antecedentes antigos e medievais pela virtude do senso crítico em oposição à fé dogmática, o pensamento moderno nasce montado num conjunto de suposições de uma ingenuidade tão gritante, que é como se séculos de tirocínio crítico tivessem de repente desaparecido da memória humana e sido substituídos pela presunção infantil de saber tudo por meio de truques simples, como que por mágica.
A doutrina da mente humana como centro regulador e fonte dos significados, que é o dogma central da modernidade, só pode parecer verossímil se o filósofo basear todas as suas conclusões no modelo esquemático de um observador consciente perante um objeto passivo do mundo físico – pedra, árvore, montanha –, abstraindo-se por completo da ação que porventura esse objeto, se fosse um cão ou um ser humano, poderia exercer sobre o observador pretensamente inatingível e supremo.
Chega a ser estranho que, ante algum dos filósofos que proclamavam a soberania da mente como centro ordenador do caos externo, ninguém da platéia se erguesse para perguntar:
— Qual mente humana, cara pálida? A sua ou a minha? Eu sou um caos que você ordena ou você é o caos e eu a fonte da ordem? Pois, se você responder que nós dois nos ordenamos um ao outro, estará admitindo acima de nós ambos um princípio ordenador comum que nos transcende e que não fazemos senão colocar em ação no momento em que mutuamente ordenamos, nas formas reconhecíveis com que nos apresentamos visualmente um ao outro, os supostos aglomerados caóticos de nossas respectivas presenças corporais
De Descartes a Kant, um século e meio decorrerá antes que essa dificuldade tão óbvia apareça com plena clareza e receba um tratamento crítico mais elaborado. O poder ordenador sobre o presumido caos da realidade será então transferido da mente humana individual para a universalidade da razão e das formas a priori da sensibilidade. Mas essa solução é ridícula: equivale a supor que, entre dois observadores, cada um transmite ao outro impressões sensíveis caóticas que ambos põem em ordem instantaneamente graças à universalidade de suas respectivas razões e formas a priori. Ou seja: pode ser que, por baixo das formas humanas com que nos vemos mutuamente, você seja de fato uma galinha e eu um hipopótamo, e só nos vemos com formas humanas idênticas porque, malgrado a diferença imensurável e incognoscível de nossas respectivas estruturas corporais “em si mesmas”, fomos miraculosamente dotados de idêntica racionalidade humana e idênticas formas a priori da sensibilidade. A hipótese é tão rebuscada e artificiosa que chega a ser cômico que tenha sido vista como uma solução em vez de um problema. Não teria sido muito mais racional supor que nos vemos com formas humanas porque nossos corpos têm formas humanas, comproporcionadas aliás às suas respectivas estruturas de percepção e faculdades racionais? Ah, não! Isso nunca! Isso seria supor uma razão abrangente que ordenasse ao mesmo tempo o mundo, os seres e as respectivas faculdades de percepção e raciocínio. Seria incorrer em pecado mortal de aristotelismo. Seria falta de “senso crítico”. Senso crítico, nesse sentido, é fugir da experiência real e limitar o exame a exemplos ficcionais impossíveis em si, mas logicamente apropriados à conclusão que se pretende obter.