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Da mentira à impostura

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de março de 2009

Mentiroso compulsivo é aquele que, desmascarado, não dá o braço a torcer: persiste na mentira, adorna-a de novos floreios, jura, esbraveja, argumenta, e tanto insiste que acaba deixando o interlocutor em dúvida. Porém mais perverso ainda, um sociopata em toda a linha, é aquele que, em tal situação, se faz de desentendido e continua falando no tom da maior normalidade e segurança, como se nada tivesse acontecido. Aí a mentira singular se transmuta em impostura permanente, estrutural, alterando de uma vez o quadro das relações humanas e quebrando, na alma do ouvinte, não a confiança nesta ou naquela verdade em particular que ele julgava conhecer, mas no próprio valor da verdade em geral. No primeiro caso, a mentira buscava imitar a verdade, parasitando o seu prestígio; agora ela se impõe por seus próprios méritos, como um valor em si, independente e superior à verdade. Perplexo e atordoado pelo fascínio da insanidade, o ouvinte se vê atraído para dentro de uma espécie de teatro mágico, onde o preço do ingresso é a abdicação não só do poder, mas do simples desejo de conhecer a verdade.

Pois bem, esse é o jogo criminoso, sórdido e indesculpável, que a “grande mídia” brasileira inteira, sem exceção, tem jogado com seus leitores desde que se tornou impossível continuar negando e ocultando, como o fizera ao longo de dezesseis anos, a existência e o poder descomunal do Foro de São Paulo.

Agora, quando tocam no assunto que antes evitavam como à peste, nossos jornais o fazem no estilo distraído e anestésico de quem falasse de coisa banal e rotineira, que tivesse estado presente nas suas páginas desde sempre, com a regularidade das colunas de turfe e das histórias em quadrinhos.

Seriam mais decentes e toleráveis se persistissem na mentira, negando o óbvio com aquela intensidade louca do fingidor histérico, que grita e gesticula para se persuadir a si mesmo daquilo em que, no fundo, não pode acreditar. Entre o histérico e o sociopata vai toda a distância que medeia entre a paixão e o cálculo, entre a doença e a maldade, entre a explosão de um sintoma neurótico e o planejamento frio de um crime.

Relatando a vida de Vanda Pignato, a militante comunista brasileira que acaba de se tornar a primeira-dama de El Salvador, a Folha de S. Paulo do dia 23 informa, de passagem, meramente de passagem, que a referida “participava das reuniões do Foro de São Paulo, articulado pelo petismo e controvertido por já ter permitido a participação das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), convertida em narcoguerrilha”.

Não é uma belezinha? A mais poderosa organização política da América Latina, financiada por fontes misteriosas jamais investigadas, autora suprema da articulação clandestina que ludibriou povos inteiros durante uma década e meia e salvou o comunismo da extinção mediante o ardil de fazer-se de morto para assaltar o coveiro, de repente aparece como uma entidade normal, legítima como qualquer partido político, só vagamente “controvertida” por ter “permitido a participação” da narcoguerrilha colombiana! Como se o Foro tivesse se limitado a isso, em vez de prestar apoio unânime e incondicional às Farc, acusando o governo colombiano de “terrorismo de Estado”! Como se entre as fontes de sustentação financeira de um movimento tão vasto e dispendioso fosse dispensável, pela origem espúria, o dinheiro do narcotráfico! Como se do Foro não participassem também outras organizações criminosas, por exemplo o MIR chileno, seqüestrador de brasileiros, com direito a manifestações de solidariedade continental cada vez que um de seus agentes armados é preso e enviado à Justiça! Como se a mera existência de um poder invisível e onipresente, capaz de mudar a história de um continente sem que o público tenha a menor notícia do que está acontecendo, já não fosse em si mesma um formidável concurso de crimes, a anomalia das anomalias, a aberração das aberrações!

Nunca, fora dos países comunistas onde a mídia é oficialmente órgão de propaganda e desinformação, os jornalistas jogaram tão sujo quanto na ocultação pertinaz do Foro de São Paulo e na operação-desconversa que se seguiu à queda do muro de silêncio.

Mentir, eles mentiam antes. Agora partiram para o fingimento de segundo grau, a consolidação da impostura como um direito sagrado e um dever moral soberano, nada mais cabendo ao povo, diante desse ritual diabólico, senão curvar-se em respeitoso silêncio, prostituindo e sacrificando ante um ídolo de papel os últimos vestígios de dignidade que possam restar na sua alma exausta e entorpecida.

Lindeza moral incomum

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 9 de fevereiro de 2006

Quando em 2001 a elite petista de São Paulo se mobilizou para proteger Mauricio Norambuena, seqüestrador do publicitário Washington Olivetto, ela tratou de alardear que o seqüestro não fôra crime político, que seus autores não pertenciam mais ao MIR (braço armado do Partido Comunista chileno), que eram apenas ex-militantes agindo em proveito próprio. Mas, se Norambuena não tinha mais conexões políticas, por que tantos políticos se interessavam pelo seu destino? A pergunta já vinha respondida antes de formulada: era tudo uma simples iniciativa de direitos humanos, tão desprovida de teor político quanto o próprio seqüestro. Para tornar essa noção mais verossímil, os porta-vozes da campanha davam a entender que não gostavam nem um pouco dos seqüestradores, tipinhos egoístas que tinham abandonado a luta e agora se aproveitavam, para lucro pessoal, da prática adquirida em heróicos seqüestros políticos.

Na época, fiquei maravilhado com a destreza desse golpe de teatro que, por meio de premissas implícitas e elipses mentais, trazia embutidas cinco mensagens falsas e contraditórias de uma só vez, tão compactadamente que o público mal tinha tempo de separá-las e julgá-las uma a uma:

1 – Seqüestrar é feio, mas em proveito da esquerda é bonito.

2 – A esquerda continental já não se dedicava a essas truculências meritórias. Tornara-se pacífica, inofensiva e legalista como uma estátua de Rui Barbosa.

3 – Por louváveis que fossem, os seqüestros já não eram necessários politicamente e tinham sido abandonados, o que, embora fosse pura mudança de tática, devia ser considerado ainda mais louvável.

4 – Depois disso, a esquerda se tornara vítima de seus ex-militantes, que, perdidos seus ideais, se deixaram infectar de mentalidade capitalista e delinqüiam por lucro pessoal.

5 – Mas tão elevados eram os padrões éticos da coitadinha, que ela sobrepunha ao justo ressentimento a consideração dos direitos humanos desses traidores e, sem nenhum interesse político, se dispunha a defendê-los.

Era mesmo uma coisa linda. São Francisco e Madre Teresa, juntos, não fariam tanta caridade.

Agora vejamos os fatos e a lógica por trás da boniteza:

Fato 1: Os seqüestradores de Olivetto trabalhavam, sim, para o MIR chileno e não por conta própria. (Um deles, Cristián San Martín Morales, que em dezembro passado fugiu do cárcere de Temuco, Chile, acaba de afirmar isso claramente em mensagem à revista La Tercera, acompanhada de uma foto em que posa ao lado da bandeira da organização.)

Fato 2: A cúpula petista não podia ignorar isso, já que o PT, no Foro de São Paulo, tinha contato e estreita parceria com o MIR.

Lógica: Dada a unidade da estratégia revolucionária do Foro, a mobilização em favor de Norambuena não podia ter sido nenhuma iniciativa apolítica, mas a parte correspondente ao PT na divisão do trabalho entre duas organizações irmãs. Não se tratava de defender abstratamente direitos humanos, mas de reverter em proveito político e publicitário da esquerda a prisão do seqüestrador. Desde que existe esquerda no mundo, cada violência que ela pratica tem sempre na retaguarda uma organização legal pronta para, em caso de erro, entrar em ação por outros meios e tentar tirar vantagem do gerenciamento de danos.

A mobilização, em suma, foi um ato de cumplicidade com o seqüestro. Alguns dos medalhões utilizados para isso podiam ignorar o cálculo estratégico por tras da iniciativa, mas é impossível que todos o ignorassem.

Basta esse episódio para vocês verem que tipo de gente governa o país hoje em dia.

***

Um coronel escreve ao JB reclamando que aquilo que eu disse dos oficiais nacionalisteiros não se refere só a eles, mas a todos os militares do Brasil, donde conclui que devo a eles uma retratação. Olhe aqui, coronel: se digo que um grupo está contra o espírito tradicional das Forças Armadas, não posso estar ao mesmo tempo acusando disso as próprias Forças Armadas. Aprenda a ler e não me amole.

Quem pode contra isso?

Olavo de Carvalho

O Globo, 21 de junho de 2003

O rumo das coisas neste país é tão claro, tão evidente, que qualquer dificuldade de enxergá-lo só pode nascer de uma recusa oportunista ou de um pavor mórbido de admitir a realidade.

A ocupação total do espaço dos debates políticos pelos bate-bocas internos da esquerda é já um fato consumado. Consumado e, segundo parece, irreversível. Doravante, toda divergência profunda e geral, toda polêmica entre concepções opostas da sociedade, está excluída do cenário público. Restam as miudezas administrativas e fiscais, cuja discussão deixa intacto o unanimismo socialista, transfigurado em “quadro institucional”.

As demais correntes políticas, encolhendo-se em trejeitos de bajulação servil ou saltitando em volta da mesa para ciscar migalhas do banquete federal, reduziram-se a instrumentos auxiliares das facções esquerdistas em disputa.

Se, durante a campanha eleitoral, não tivessem ajudado o candidato petista a ocultar suas ligações com o Foro de São Paulo e as Farc, não estariam hoje nessa situação.

Mas queriam porque queriam sonhar que estavam vivendo na Suíça ou na Inglaterra, numa democracia de Primeiro Mundo, num jardim pós-comunista com instituições estáveis e imunes à tentação revolucionária. Assim, ajudaram o comunismo a fazer-se de morto para assaltar o coveiro.

Agora, é tarde para reagir. O totalitarismo camuflado e sorridente que nos domina já não tolera divergência senão interna. À primeira e comedidíssima tentativa de oposição frontal, o PFL já recebeu o choque pavloviano apto a dissuadi-lo de idênticas ousadias no futuro: acusado de lavagem de dinheiro, seu líder foi posto na constrangedora alternativa de perseverar na timidez suicida ou de mostrar-se mais valente na defesa da sua própria liberdade do que o foi na da liberdade alheia.

A investida contra ele é só mais um capítulo da novela que, conforme já anunciei aqui faz tempo, terminará com a prisão ou a marginalização completa de todos os líderes políticos não esquerdistas de maior destaque.

O uso da própria lei como instrumento de destruição da classe dominante é um requinte da estratégia revolucionária brasileira, que se preparou para isso mediante a meticulosa criação de regras fiscais e trabalhistas impossíveis de cumprir, que virtualmente criminalizam a atividade capitalista e colocam a classe empresarial de joelhos ante o governo, deixando-o agora livre para cortar cabeças ou aceitar que se curvem em preito de vassalagem.

Há mais de uma década venho escrevendo que a onda pseudomoralizante, encabeçada pelas esquerdas mas aplaudida com patética ingenuidade por quase toda a opinião pública nacional, é uma manobra insincera e astuta, um instrumento da estratégia destinada a substituir os políticos e líderes empresariais tradicionais por uma classe de revolucionários infinitamente mais ambiciosos, desonestos e perigosos do que milhares de “anões do orçamento” e juízes Lalaus.

O maquiavelismo perverso da operação revela-se na escala de prioridades no combate aos crimes. É uma escala invertida.

Não há males mais graves do que o morticínio generalizado, o narcotráfico, os seqüestros. É impossível investigar esses crimes em profundidade sem chegar às suas fontes: as Farc, o MIR chileno e, no topo, Fidel Castro e o Foro de São Paulo.

Ora, essas entidades e pessoas são intocáveis. As Farc são combatentes pela liberdade, o MIR é um grupo de idealistas angélicos, Fidel Castro é a voz de Deus na Terra, o Foro de São Paulo é um inocente círculo de debates acadêmicos.

Tal é o dogma oficial.

Logo, é preciso desviar as atenções para delitos menores e incruentos, dando a impressão de que o juiz Lalau é Fernandinho Beira-Mar, Bornhausen é Lucky Luciano e cada homem rico é um assassino de mulheres e crianças.

Aterrorizado ante a impossibilidade de conter o narcotráfico e a violência, o povão encontra alívio postiço na humilhação de ricaços de opereta, “poderosos” que não podem nada.

A manobra diversionista tem ainda a vantagem secundária de introduzir no aparente combate ao crime a subtonalidade implícita de luta de classes, preparando o povo para aplaudir, logo mais, a destruição geral e ostensiva da classe indesejável.

Para realizar a operação, os partidos de esquerda já tinham, antes do acesso ao poder, sua própria máquina investigativa, infiltrada em todos os escalões da administração e muito bem articulada com a classe jornalística, esta última ansiosa por superar sua condição subalterna de fornecedora de notícias e elevar-se ao papel de “agente de transformação social”.

Agora têm tudo isso e mais o aparato fiscal e policial do Estado.

Quem pode contra isso? Nunca, neste país, uma facção política reuniu em suas mãos um poder tão geral, tão incontrastável, tão avassalador, em face de oposições tão frágeis e desarmadas, reféns do consentimento provisório de um poder revolucionário ao qual não convém ainda declarar seu nome.

A esquerda brasileira é onipotente. Tão onipotente que pode se dar o luxo cíclico das automutilações revigorantes, rejeitando uma parte de si como “direitista” para que todo o país acompanhe a parte restante num movimento geral para a esquerda, cada vez mais para a esquerda.

A velha classe dominante está encurralada e paralisada, gastando suas últimas reservas de energia numa fútil encenação de tranqüilidade que só prova o seu medo de perceber que está com medo.

O medo emburrece. O medo não reconhecido emburrece duplamente. Parece que neste país os empresários já não entendem sequer o que acontece quando as indústrias passam a ter metas oficiais a cumprir e punições se falharem. É o fim da liberdade econômica, a total redução do empresariado a órgão auxiliar da administração estatal. Ainda não é o comunismo, mas já é o “socialismo alemão”, a economia nazifascista, que, deixando com os burgueses a posse nominal dos meios de produção, fazia da burguesia mesma uma propriedade do Estado.

Mas quem quer saber o que acontece? É melhor fingir que não aconteceu.

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