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Vista calças

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 24 de agosto de 2010

“Afinal, você vai crer em mim ou nos seus próprios olhos?”
(Groucho Marx)

A quota de mendacidade dos nossos governantes já ultrapassou os limites do que seria tolerável num mitômano doente sem esperança de cura. E a quota de servilismo com que as lideranças empresariais, jornalisticas, militares e eclesiásticas deste país aceitam como normal e respeitável essa conduta obscena já ultrapassou o nível do que se poderia admitir num escravo amarrado e chicoteado, que o feitor, por mero sadismo, obrigasse a concordar que as vacas botam ovos e as galinhas dão leite.

A desenvoltura cínica de uns e a pusilanimidade de outros formam um quadro de abjeção moral imotivada, gratuita, voluntária, deleitosa, lúbrica, como nunca se viu no mundo. Os primeiros sabem que são trapaceiros, mas se orgulham disso. Os segundos sabem que cedem por puro medo, mas, disfarçando mal e porcamente o temor, juram que desfrutam de total liberdade num ambiente de segurança jurídica exemplar. A ordem democrática, neste país, consiste na igualitária distribuição da perversidade. Liberdade, igualdade, fraternidade e semvergonhice.

O pior é que nada, nada obriga esses indivíduos a serem assim. Uns têm todo o poder, não precisam se comportar como baratas se escondendo pelos cantos, fugindo da luz como da peste. Os outros não sofrem perseguição que justifique tanto acovardamento, apenas cedem antecipadamente ante riscos imaginários, numa apoteose de pusilanimidade.

Do lado do governo, os recentes progressos da cara de pau são inconcebíveis.

Depois de o sr. presidente ter expressado seu “repúdio” à crueldade das Farc sugerindo como castigo aquilo que até uma criança de cinco anos percebe ser o melhor dos prêmios; depois de o sr. Michel Temer ter assegurado que o ilustre mandatário nunca fez isso mas que o fez com a melhor das intenções (entenda quem puder), ainda vem esse aspirante a Tiririca, o sr. Walter Pomar, querer impingir-nos, com a cara mais bisonha do universo, a mentirinha pueril de que as Farc nunca participaram do Foro de São Paulo. Quer dizer então, ó figura, que o Raul Reyes mentiu ao dizer que presidira a uma assembléia do Foro ao lado de Lula? Quer dizer que o Hugo Chávez estava delirando ao dizer que conhecera Raul Reyes e Lula numa reunião do Foro? Quer dizer que o expediente da revista “America Libre” é todo falsificado? Quer dizer que as Atas do Foro foram inventadas por mim, que ainda tive o requinte de escrevê-las em espanhol? Ora, vá lamber sabão.

Quando chamo esse cavalheiro de aspirante a Tiririca, não faço isso por pura piada. Na escala dos níveis de consciência, o sr. Pomar está muito abaixo da abestada criatura. Tiririca tem autoconhecimento: sabe que é um palhaço. O sr. Pomar necessitaria de muitas vidas, se as houvesse, para elevar-se a tão iluminada compreensão de si.

Mas o que me espanta não é que esses sujeitos se lambuzem na sua porcaria mental ao ponto de se tornar impossível, em certos momentos, distingui-los de um rato emergido do esgoto. O que me espanta é o ar de veneração, o temor reverencial com que a opinião pública os escuta, mesmo e principalmente quando sabe que mentem como meninos pegos em flagrante travessura. Só ante o cano de uma metralhadora tem o homem o direito de acovardar-se a esse ponto, aviltando-se ainda mais do que aqueles que o aviltam. Mas cadê as metralhadoras? A única arma de que a casta governante dispõe para intimidar a nação, no momento, são caretas de despeito – aquele blefe moral, aquela fingida ostentação de superioridade que é a marca inconfundível dos fracos presunçosos. Como é possível que um povo inteiro se deixe assustar por isso, chegando à degradação suprema de fingir apreço a condutas que obviamente só merecem desprezo?

Pelas estatísticas de rendimento escolar e de criminalidade, o Brasil já é o país mais burro e mais assassino do mundo. Terá se tornado também o mais covarde? O mais sicofanta? O mais subserviente?

Meu falecido sogro, Fábio de Andrade, apresentou-se como voluntário na Revolução de 1932, aos quinze anos de idade, porque sentiu vergonha ao ler, por acaso, a mensagem enviada pelo comando revolucionário aos homens adultos que recusassem alistar-se: “Vista saias.” Mas os tempos mudaram. Essa mensagem não é mais apropriada aos dias que correm. É preciso substituí-la por: “Vista calças.” Muitos tremem ante a perspectiva dessa experiência inédita.

***

P. S. – Nunca fui admirador do sr. José Serra. Sua mania antitabagista, suas concessões ao politicamente correto, fizeram dele, para mim, um anti-exemplo. No entanto, seus últimos pronunciamentos de campanha – dele e do seu vice Índio da Costa – mostraram que ainda há algumas reservas de testosterona neste país (v. o comentário de José Nivaldo Cordeiro em http://www.youtube.com/watch?v=xURrDqLFg2g). Ganharam o meu voto e, mais que isso, o meu respeito.

Cartas a um amigo americano – I

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de novembro 2007

Quando você esteve no Brasil trinta anos atrás, o panorama de miséria, atraso, opressão e taxas altíssimas de mortalidade infantil por desnutrição parecia ser o resultado inevitável de um regime político dominado por oligarcas rurais corruptos e de uma economia agrícola latifundiária e monoculturista.

A reforma agrária, com distribuição de terras e ajuda estatal aos pequenos proprietários, parecia ser o remédio mais adequado para a situação desesperadora de milhões de brasileiros, mas os senhores do poder opunham à sua aplicação uma resistência obstinada, através do Congresso e da mídia.

Nos grupos políticos, intelectuais e militares livres de compromissos com os oligarcas, não havia muita divergência nem quanto ao diagnóstico, nem quanto à terapêutica. A necessidade da reforma agrária era admitida pelo consenso geral, só restando saber quem iria promovê-la, a esquerda ou a direita. Esta última, subindo ao poder em 1964, tomou logo a dianteira, promulgando o Estatuto da Terra e fundando em 1970 o Instituto nacional de Colonização e Reforma Agrária , que é até hoje o centro de comando da reforma agrária no Brasil.

No mesmo ano, a oposição comunista criou o Movimento dos Sem-Terra, para lutar por um modelo alternativo de reforma. Enquanto o governo preferia distribuir terras sem dono, aproveitando a reforma como instrumento de colonização das imensas áreas desocupadas do país, os comunistas preferiam invadir e ocupar as fazendas dos oligarcas, dando ao empreendimento o teor de luta de classes.

De início, o pretexto para fazer isso foi que se tratava de terras improdutivas, mas logo a distinção se tornou puramente acadêmica, pois fazendas altamente produtivas – algumas consideradas modelares pelos padrões da FAO – passaram a ser também invadidas. Invadidas, queimadas e totalmente destruídas. Isso mostrava claramente que o objetivo do MST não era a produção agrícola, mas sim a ocupação de espaços estratégicos que lhe dessem o controle sobre o sistema rodoviário, como acabou de fato acontecendo.

Outra diferença é que o modelo governamental privilegiava a exportação, enquanto os comunistas chamavam isso de concessão ao imperialismo e diziam preferir o mercado interno, embora jamais explicassem como abasteceriam o mercado interno (ou qualquer outro) queimando os meios de produção.

Antes, porém, que a distribuição de terras, seja pelo modelo governamental, seja pela via comunista, pudesse obter qualquer resultado economicamente sensível, sobreveio na década de 80 uma sucessão de fatos extraordinários que modificaram todo o quadro. No centro-oeste do Brasil há uma imensa extensão de terras que são as mais férteis do País. Uma parcela significativa dessa área foi ocupada pelo MST, cujos militantes, embora subsidiados pelo governo, não conseguiram — é claro — administrá-la, passando então a vender suas propriedades. Estas foram compradas, em parte, pelos antigos oligarcas, mas sobretudo por pequenos proprietários do Sul, que assim se tornaram grandes proprietários no centro-oeste.

Usando técnicas agrícolas aprimoradas, eles conseguiram em poucos anos
aumentar de tal modo a produção agrícola das grandes fazendas, que o preço dos alimentos básicos se tornou muito barato e o problema da fome praticamente desapareceu da cena brasileira.

Decerto, o candidato presidencial Luís Inácio Lula da Silva venceu as eleições de 2002 e 2004 anunciando um programa chamado Fome Zero, voltado aos “cinqüenta milhões de brasileiros que passam fome”, mas, após um dos comícios em que voltava a esse assunto, foi filmado declarando a seus assessores, na intimidade, que esse número era pura mentira.

E era mesmo. No Brasil um frango custa um dólar, um litro de leite meio dólar, o quilo de carne bovina dois dólares e meio, uma baguette cinqüenta centavos de dólar. Com cinqüenta ou sessenta dólares por mês você come sanduíches de carne e toma leite todos os dias. As mortes infantis por desnutrição, que eram endêmicas uns anos atrás, tornaram-se praticamente inexistentes.

O dinheiro distribuído pelo Fome Zero pode ajudar as pessoas a comprar
sapatos ou a pagar a conta de luz, mas quase ninguém precisa dele para comprar comida. O MST, ricamente subsidiado pelo governo, continua clamando pela reforma agrária, mas é o maior latifundiário do País e sua produção é irrisória.

Cada vez mais o movimento se dedica a objetivos puramente político-estratégicos, invadindo e queimando fazendas produtivas ao longo das rodovias, para poder paralisar o tráfego quando bem entende e assim exigir mais e mais dinheiro do governo.

Sua militância compõe-se em grande parte de desempregados urbanos que perceberam as vantagens de transmutar-se em falsos agricultores sem-terra para poder viver de verbas estatais ou, melhor ainda, de receber de graça terras do Incra, vendê-las e entrar novamente na fila.

Não espanta que, nessas condições, o objetivo declarado do MST, hoje,
seja o de destruir precisamente a parte mais produtiva e próspera da agricultura nacional, o chamado agronegócio.

É preciso acabar com essa bête noire porque ela produz comida barata, alimenta o país e desmoraliza não só o MST como também, no fim das contas, a própria idéia de reforma agrária.

A segunda parte da carta, na próxima segunda.

O primado da etiqueta

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 26 de outubro

Par délicatesse j’ai perdu ma vie”, dizia Arthur Rimbaud, e Geraldo Alckmin arrisca perder a eleição por puro bom-mocismo. O debate de segunda-feira foi uma grotesca encenação de normalidade, favorecendo o candidato que tem mais a esconder. Nem uma menção ao caso Celso Daniel, à promessa oficial de legalizar o aborto, à colaboração secreta com Hugo Chávez, ao enriquecimento relâmpago do Lulinha, à cumplicidade petista com os narcotraficantes das Farc e seqüestradores do Mir. Em vez do confronto entre a honestidade e o crime, o que se viu foi uma tranqüila discussão entre gerentes, ambos igualmente respeitáveis, dignos – e insípidos. O falseamento da situação de debate é tudo o que a mentira precisa para sair vencedora. Mas, no Brasil de hoje, o que se entende por exercício da democracia é o primado das regras de polidez sobre a verdade, a moralidade, as leis, o direito à informação. É a apoteose do enfeite, em plena derrocada de tudo o mais.

***

Recado ao general Ivan de Souza Mendes: No tempo da ditadura, o senhor era o chefe do SNI. Grampeava, mandava e desmandava. Agora, quando vê seus inimigos de ontem subindo por uma escada de sangue e fezes rumo ao poder total, apressa-se em segui-los como um cãozinho, derramando-se em louvores ao governo, desculpando seus crimes e mendigando simpatias da esquerda às custas dos que arriscam vida, emprego e reputação para defender a honra das Forças Armadas contra o assédio difamatório comunopetista. Sua entrevista no Consultor Jurídico de 24 de outubro é uma das coisas mais abjetas que já li. Não sei se o senhor disse o que disse por ser ignorante, mentiroso ou senil. Oro a Deus por esta última hipótese, a menos infame das três. Mas, se o senhor ainda tiver força para discutir comigo, só me restará acreditar numa das outras duas.

Refiro-me especialmente ao trecho em que o senhor tenta dar a impressão de que Lula já não é um aliado de Chávez. Num momento em que o ditador venezuelano lança a construção de vinte bases militares na Bolívia, reduzindo virtualmente o Brasil à condição de nação cercada (v. http://www.firmaspress.com/705.htm), ocultar os laços de fidelidade entre ele e o nosso presidente é desinformação comunista da espécie mais traiçoeira, da qual só resta perguntar se o senhor é agente esperto ou instrumento bobo. O discurso de Lula no Foro de São Paulo em 2 de julho de 2005 e a subseqüente atitude presidencial ante a invasão das propriedades da Petrobrás na Bolívia provam que ele está comprometido até à medula com a estratégia de dominação continental comunista, da qual as iniciativas bélicas de Hugo Chávez são apenas a concretização mais vistosa. Se o senhor ignora esses dados, por favor, não se autonomeie chefe da Agência Nacional de Burrice: vá para casa desfrutar de sua aposentadoria e não dê palpite em assuntos que exigem conhecimento. Se os conhece e faz de conta que os ignora, então é um servidor do chavismo. Eu gostaria de poder fugir a essa conclusão, mas não vejo como fazê-lo senão por via de um melancólico diagnóstico gerontológico.

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