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Foucault sem Foucault

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 24 de abril de 2015

          

“A alta cultura é a autoconsciência de uma sociedade. Ela contém as obras de arte, literatura, erudição e filosofia que estabelecem o quadro de referência compartilhado entre as pessoas cultas. ”
A definição é de Roger Scruton. Basta lê-la para perceber que a coisa aí definida cessou de existir no Brasil há muito tempo.
O único “quadro de referência compartilhado” que ainda resta é a mídia popular, com seus chavões, seus erros gramaticais, seus cacoetes de pensamento repetidos semanalmente por articulistas semianalfabetos.
Fora disso, há apenas subculturas grupais que se ignoram mutuamente e cuja unidade interna provém menos de crenças e valores compartilhados que de interesses profissionais, financeiros ou políticos imediatos.
Há uma cultura de empresários e economistas, uma de evangélicos, uma de gays, uma de advogados, etc. Sobretudo há uma de militantes esquerdistas que lutam com todas as armas da chantagem, da intimidação e das propinas para torná-la hegemônica e assim fazem dela um Ersatz grotesco de alta cultura, a mais eficiente garantia de que não haverá alta cultura nenhuma.
Explica o próprio Scruton: “A alta cultura é uma conquista precária, e dura apenas se apoiada por um senso da tradição e pelo amplo endosso das normas sociais circundantes. Quando essas coisas evaporam, a alta cultura é substituída por uma cultura de falsificações. A falsificação depende em certa medida da cumplicidade entre o perpetrador e a vítima, que juntos conspiram para acreditar no que não acreditam e para sentir o que são incapazes de sentir. ”
Esse parágrafo, que parece extraído diretamente das páginas da Ponerologia, em que o dr. Andrew Lobaczewsky descreve o ambiente de fingimento histérico que se espalha pela sociedade quando os psicopatas sobem ao poder, pode ser ilustrado por um fenômeno muito preciso e muito característico do Brasil de hoje.
Todo mundo sabe que um dos autores mais influentes na universidade brasileira é Michel Foucault. Foucault criou uma modalidade especial de marxismo que é praticamente a crença geral e oficial no nosso meio universitário, o qual, no entanto, não se limitou a absorvê-la, mas lhe deu uma inflexão muito peculiar, muito nacional.

Karl Marx inventou a teoria da ideologia, segundo a qual as ideias circulantes correspondem a interesses objetivos das classes sociais. Sem dúvida, algumas correspondem, mas Marx diz que todas são assim, que nada escapa à divisão do território mental entre a “ideologia proletária” e a “ideologia burguesa”.
Uma dificuldade temível, no entanto, rói essa teoria desde dentro: ou as ideias e crenças de um cidadão são determinadas pela sua posição de classe, ou, pertencendo a uma determinada classe, ele pode aderir à ideologia de outra, como aliás fez o próprio Karl Marx.
Para que esta última hipótese se realize e não seja uma mutação instantânea sem base racional, uma espécie de iluminação mística, tem de haver um território neutro desde o qual o indivíduo em transição examine as ideologias das classes em disputa e escolha livremente de que lado vai ficar.
Mas, se um indivíduo pode trocar livremente de ideologia, como Karl Marx indiscutivelmente trocou, é claro que a sua ideologia pessoal não é determinada pela da sua classe, e neste caso a expressão “ideologia de classe” se torna apenas uma figura de linguagem.
Isso é motivo mais que suficiente para abandonar de todo essa teoria ou no mínimo para só mencioná-la cum grano salis.
Mas Michel Foucault decidiu, em vez disso, radicalizá-la. Levada às suas últimas consequências, a teoria resulta no seguinte: diante de qualquer ideia ou afirmação, não interessa saber se ela é verdadeira ou falsa, se corresponde ou não aos fatos. Só interessa saber qual “esquema de poder” ela defende, e só há dois esquemas de poder: o dos “opressores” e o dos “oprimidos” – mais ou menos os mesmos que Karl Marx chamava de “burgueses” e “proletários”.
A pretensão de julgar as ideias pela sua veracidade ou falsidade é ela mesma um “esquema de poder” a serviço dos “opressores”. Verdade e falsidade nem mesmo existem: o filósofo deve esquecer essas noções e escolher sempre aquilo que aumente o poder dos “oprimidos”.
É óbvio que, como toda negação da verdade, essa tem a pretensão de ser ela própria uma verdade, caindo assim num raciocínio circular que, no fundo, acaba não dizendo nada.
Mas uma coisa é inegável. Embora a verdade não existisse, Foucault acreditava que sua teoria era verdadeira. Os longos estudos que ele consagrou ao sistema penitenciário, à instituição dos hospícios e à história da sexualidade mostram um sério esforço de provar com fatos e documentos – muitos deles ficcionais, infelizmente — a correspondência entre as ideias e os grupos de interesse que elas, no seu entender, representavam.
E é aí que entra o fenômeno caracteristicamente brasileiro a que aludi acima. Seja nas suas aulas, seja em seus pronunciamentos políticos, seja em artigos de mídia, o intelectual típico da esquerda brasileira atual – digamos, um Valter Pomar ou um Tarso Genro — aplica a teoria de Foucault de uma maneira sui generis, que ao próprio Foucault surpreenderia: ao acusar um autor ou opinador de falar em nome de um determinado “esquema de poder”, ou seja, de um grupo social empenhado na defesa de certos interesses, o referido personagem se dispensa de perguntar: (a) se esse grupo existe; (b) se o acusado pertence a ele ou compartilha de seus interesses.
A redução das ideias a expressões de um “esquema de poder” passa a valer por si como prova cabal da sua malignidade, independentemente de qualquer base sociológica real.
Se o que você diz diverge daquilo que o intelectual esquerdista deseja ouvir, ele simplesmente o cataloga num grupo social inexistente, ou alheio ao ponto em discussão, e está feito o serviço.
A veracidade ou falsidade do que você disse são postas fora de questão, não mediante a filiação da sua ideia ao grupo social a que você pertence, mas mediante a associação dela a algum grupo a que você não pertence ou que nem mesmo existe.
Foi exatamente assim que, fazendo eco a uma infinidade de intelectuais esquerdistas que não nos sonegaram suas opiniões sobre os últimos acontecimentos, o autor do Caderno de Teses do V Congresso do PT, ao ver na rua uma multidão inumerável de enfezados brasileiros antipetistas de todas as classes, idades e raças, sem uma liderança definida e sem qualquer apoio da mídia, dos partidos ou de qualquer organização empresarial, concluiu que tudo era uma manobra da “classe dominante” encabeçada, porca miséria!, pela Rede Globo, a qual, precisamente, fazia tudo para minimizar a importância dos protestos e achincalhá-los de maneira não muito velada.
Amputada de suas pretensões sociológicas por mais mínimas e evanescentes que fossem, a teoria de Foucault tornou-se uma técnica de xingar qualquer um de qualquer coisa e depois ir dormir com a consciência tranquila de haver desmascarado um temível “esquema de poder”.
Do fingimento histérico, a esquerda nacional evoluiu para a fabulação psicótica.

A internacionalização do engodo (2)

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de março de 2008

Reconhecendo que Tropa de Elite é “o filme brasileiro mais popular de todos os tempos” e que “o capitão Nascimento foi amplamente aclamado como um herói nacional”, o correspondente do jornal britânico The Guardian, sr. Conor Foley, em artigo publicado no último dia 18 de fevereiro, não hesita em se opor ao sentimento da quase totalidade dos nossos concidadãos, proclamando que, em vez disso, “o país deveria baixar sua cabeça de vergonha”. Os motivos que levam o jornalista a essa conclusão são, em essência, dois:

(1) O filme difama as ONGs dedicadas a “programas sociais”, ao mostrá-las repletas de jovens de classe média e alta que, como consumidores de drogas, alimentam o narcotráfico ao mesmo tempo que da boca para fora professam combatê-lo. “Uma série de estudos – alega Foley — tem demonstrado que estes programas… têm obtido sucesso na redução dos crimes.”

(2) O entusiasmo da multidão pelos métodos brutais do capitão Nascimento nasce da alienação e da ignorância: “A violência no Brasil é um sintoma de um largo conjunto de problemas sociais… A maioria da classe média brasileira nunca pôs o pé numa favela e fala sobre elas como se fossem outro país.”

Com relação ao primeiro item, seria da mais alta conveniência jornalística que Foley citasse os tais “estudos” em vez de apenas aludir vagamente a eles, mas nenhuma quantidade de “estudos”, mesmo citados um por um, poderá nada contra o fato de que a única cidade brasileira na qual houve uma redução significativa da criminalidade nos anos recentes foi São Paulo, onde o fator decisivo para isso não veio de nenhuma ONG, mas da ação policial direta.

A cena dos ongueiros fumando maconha enquanto discutem Michel Foucault não é difamatória de maneira alguma. O círculo dos estudantes universitários e do show business, onde as ONGs recrutam a quase totalidade dos seus militantes e garotos-propaganda, ainda é o mercado principal para a venda de drogas no país. E a menção ao filósofo francês também não é gratuita, já que ele consumia drogas abertamente durante suas visitas ao Brasil, ajudando a legitimá-las como um vício elegante, sobretudo nas universidades. Foi partindo das classes letradas, e sobretudo dos meios intelectuais esquerdistas, que o uso das drogas se disseminou entre a população em geral. A elite esquerdista também colaborou nessa transformação fazendo campanha para eleger governadores e parlamentares que favoreciam uma política de tolerância – se não de cumplicidade – para com os narcotraficantes. Isso é uma história bem conhecida de todos os brasileiros, e o sr. Foley não tem nada a alegar contra ela senão a sua própria ignorância do assunto.

Quanto à “alienação”, a maioria dos nossos compatriotas não põe os pés nas favelas porque ou você entra ali com salvo-conduto dos traficantes – como o faz o pessoal das ONGs e, junto com ele, o próprio sr. Foley –, ou entra para comprar drogas, ou, se entra por outro motivo qualquer, sabe que vai sair embrulhado em plástico ou desaparecer para sempre, queimado junto com um pneu para que seu cadáver se torne irreconhecível. As favelas são efetivamente “outro país”, mas não porque o povo brasileiro não se interesse em saber o que nelas se passa, e sim porque constituem um território independente, onde as leis do país não vigoram, onde até mesmo as Forças Armadas temem entrar e onde a única autoridade é a dos potentados do comércio de entorpecentes, os quais só se distinguem dos antigos senhores feudais porque não estão atados por juramento de fidelidade a um rei e sim às Farc, a fornecedora principal de cocaína ao mercado brasileiro. Ninguém no Brasil ignora que os traficantes são um poder armado e que eles não vão ceder um milímetro desse poder se não forem obrigados a isso pela força, não por “programas sociais” que, na mais rósea das hipóteses, só servem para tornar a situação nas favelas materialmente mais tolerável para as pessoas honestas que ali vivem, sem libertá-las do jugo tirânico dos narcotraficantes. Para completar, o país inteiro sabe que muitas ONGs estão intimamente associadas ao esquema político esquerdista que apóia e protege as Farc. O aplauso das platéias brasileiras ao capitão Nascimento não reflete alienação, nem muito menos mentalidade fascista, mas o cansaço geral ante um discurso social hipócrita que, sob o pretexto de zelar pelos direitos humanos, faz do governo o padrinho dos delinqüentes e o carrasco da população. Esse cansaço, aliás, não expressa apenas um sentimento popular baseado em impressões vagas: ele reflete o conhecimento exato da situação, pois a violência criminal no Brasil começou a crescer sem limites justamente a partir da década de 80, quando as novas políticas adotadas pelo governo amarraram as mãos da polícia e deram rédea solta aos delinqüentes. O gráfico anexo número 1 – dados da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo — mostra isso claramente. O capitão Nascimento pode impressionar os espectadores britânicos pela violência das suas ações, mas no Brasil não é isso o que o diferencia de outros policiais: ele é diferente porque não rouba, não aceita suborno e usa a violência para matar criminosos, não para extorquir dinheiro de cidadãos inocentes. Ele põe sua truculência a serviço do povo, não do gangsterismo corporativo ou da santa aliança entre esquerdistas e narcotraficantes. É isto – e não a violência em si — o que o público brasileiro aplaude nele. Se o sr. Foley tivesse entrevistado um único espectador de Tropa de Elite, perceberia isso imediatamente. Mas para tanto seria preciso que ele se dispusesse a fazer algum esforço para compreender o povo que o hospeda, em vez de julgá-lo sumariamente desde o alto das virtudes humanitárias das quais se imagina portador.

“A violência no Brasil é um sintoma de um largo conjunto de problemas sociais” é o tipo da afirmação que não significa nada, com a ressalva de que o apelo às causas sociais remotas tem sido o mais constante pretexto para desestimular a ação policial contra o problema imediato, que é o fato de criminosos estarem vendendo drogas para as crianças nas escolas e matando a tiros cinqüenta mil brasileiros por ano.

Entre a pobreza e o crime, o vínculo não é direto nem logicamente necessário. O gráfico número 2, da mesma fonte, mostra que as áreas mais perigosas do Brasil são as mais prósperas, não as mais atrasadas. Ninguém sai por aí matando pessoas ou vendendo drogas simplesmente porque é pobre. Uma coisa não produz a outra sem a interferência de um terceiro elemento, este sim decisivo, tão decisivo que pode produzir o crime sem o auxílio da pobreza. Esse elemento chama-se ação humana, entendendo-se por este termo sobretudo a ação deliberada e organizada dos indivíduos e grupos que têm meios de influenciar a vida social como um conjunto, isto é, os intelectuais e os políticos. O primeiro desses grupos, como já venho demonstrando desde 1994 (v. http://www.olavodecarvalho.org/livros/bandlet.htm), ocupa-se, há décadas, em disseminar nas classes letradas o ódio à polícia e a simpatia cúmplice para com os bandidos. No Brasil não existe literatura policial como nos EUA, na Inglaterra ou na França. Existe, sim, literatura de apologia do crime. A ela dedicam-se os melhores escritores do país e a multidão de seus imitadores medíocres. Durante muito tempo, esse estado de espírito vigorou apenas no restrito grêmio dos intelectuais esquerdistas, que se queixavam, com razão, de estar isolados da massa popular. A partir dos anos 70-80, a TV e o cinema passaram a servir de megafone para esse grupo, fazendo com que seus cacoetes mentais se disseminassem pela população em geral e acabassem se traduzindo em políticas públicas que ofereciam todas as facilidades para os delinqüentes, praticamente convidando os policiais a transformar-se em servidores do narcotráfico em vez de arriscar a vida num trabalho perigoso que só lhes rendia o ódio organizado dos bem-pensantes.

A ação política inspirada nesses contravalores foi inaugurada no Estado do Rio de Janeiro pelo governador Leonel Brizola, um velho amigo e colaborador de Fidel Castro. Brizola foi eleito com o apoio financeiro dos chefes do jogo ilegal, e depois os recompensou generosamente bloqueando qualquer ação policial nas favelas justamente a partir do momento em que eles entravam em peso no mercado das drogas. Naquela época, o Brasil ainda era um país ordeiro, no qual a violência carioca formava um contraste chocante. À medida que os similares de Brizola foram tomando o poder em vários estados do país e chegaram por fim a dominar o governo federal, aquilo que era um fenômeno local carioca espalhou-se pelo território nacional inteiro, sempre sob a proteção dos políticos esquerdistas e de uma legião de ONGs sustentadas por verbas públicas.

A reação do sr. Foley ao filme de José Padilha é tão extravagante e despropositada que, não vendo motivos racionais que a justifiquem, sai em busca de outras hipóteses. Não tive de procurar muito. Num artigo publicado dois dias depois no mesmo jornal, sob o título “Viva Lula”, o correspondente do Guardian revela seu entusiasmo pela pessoa do presidente brasileiro, um entusiasmo tão cego e fanático que o leva a negar peremptoriamente os fatos mais óbvios e bem provados:

“Veja, a bíblia da classe média brasileira, tem derramado um fluxo constante de bile e invectivas sobre o governo Lula. Este é repetidamente, e espuriamente, associado a Castro, a Chhávez e aos guerrilheiros das Farc, e acusado de tentar subverter o Estado brasileiro.”

Ora, quem associa Lula às Farc e ao eixo Castro-Chavez não é Veja: são as atas que ele mesmo assinou como fundador e – por doze anos – presidente do Foro de São Paulo, o comando estratégico do movimento comunista na América Latina; e é também a palavra dele próprio, como se vê não apenas em um, mas em dois discursos que ele pronunciou já como presidente da República, nos quais confessa meticulosamente as atividades clandestinas que desenvolveu, com aqueles e com outros parceiros esquerdistas, no quadro do Foro de São Paulo. Já escrevi tanto sobre isso, e já dei tantas provas documentais, que nem agüento mais falar do assunto. E se Veja decidiu finalmente romper seu longo silêncio – contrastando, nisso, com o restante da grande mídia brasileira –, foi porque o acúmulo de provas que forneci a seu colunista Reinaldo Azevedo, homem sério e aberto à verdade, acabou por despertar nos donos da publicação alguns resíduos de escrupulosidade jornalística.

Todos os assessores de Lula sabem que ele não é bom em guardar segredos. O homem fala demais e por isso tem de viver cercado de amortecedores incumbidos de camuflar retroativamente o sentido de suas palavras. Que seus ajudantes diretos se ocupem desse serviço sujo, é deprimente mas é natural. O que singulariza o caso brasileiro é que toda a grande mídia, até mesmo a “de oposição”, consentiu voluntariamente em colaborar no mesmo empreendimento: não contente em ocultar por dezesseis anos a existência da mais poderosa organização política e revolucionária que já existiu na América Latina, encobriu até a confissão saída da própria boca do fundador e comandante da entidade. Autoconstituídos em serviço proteção à imagem presidencial, os maiores jornais e canais de TV do Brasil se tornaram ainda mais lulistas do que o próprio Lula.

O fenômeno, em si, já era espantoso. Nada de semelhante se observou jamais na história da mídia mundial. Com a entrada em cena do sr. Foley, o maior engodo jornalístico de todos os tempos conquistou um merecido upgrade, subindo à escala internacional. Afinal, por que só os brasileiros teriam o direito de ser ludibrados?

Votando no capitão

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 11 de outubro de 2007

Quem quer que tenha acompanhado as minhas aulas sobre a “teoria dos quatro discursos” – e, graças à internet, é um bocado de gente, a esta altura – sabe que uma das principais dificuldades na arte da palavra é a mudança de clave do discurso poético para o retórico. Ninguém faz isso direito, porque a primeira das duas modalidades está focalizada na exteriorização de percepções íntimas, a segunda no manejo deliberado das reações do ouvinte ou leitor. Expressão é uma coisa, persuasão é outra. Nos dois casos, trata-se de criar uma verossimilhança, mas a verossimilhança poética é pura coerência entre imagens, a retórica um acordo bem dosado entre o que você quer dizer e o que o público quer ouvir. Por isso o discurso poético se dirige a um auditório geral e indefinido, abrindo-se à multiplicidade imprevisível das interpretações que lhe dêem, ao passo que o retórico se dirige a uma platéia em particular, permanecendo ineficaz sobre as demais, exceto se ouvido como mera produção poética, desligada dos fins práticos a que visava originalmente.

Daí o fenômeno, tão repetidamente comprovado, de que o artista narrador, seja no romance, no teatro ou no cinema, não tenha controle quase nenhum sobre o sentido político-ideológico da história que narra, o qual sentido não depende da narrativa em si, mas dos fatos do mundo exterior – remotos e fora do alcance do artista — a que a platéia associe os episódios narrados, fazendo destes o símbolo daqueles.

Gênios do porte de um Stendhal ou de um Balzac não venceram essa dificuldade – por que deveríamos exigi-lo dos nossos miúdos cineastas tupiniquins? Todos eles são mais comunistas que a peste, mas isso não impediu que em “Central do Brasil” o menino perdido, fugindo do inferno urbano, encontrasse no Brasil rural os antigos valores que são a essência mesma do conservadorismo: a família, a religião, a segurança, o amor ao próximo. Nem que “Cidade de Deus” resultasse numa apologia do que pode haver de mais reacionário e pequeno-burguês: subir na vida por meio do trabalho honesto.

Agora, José Padilha é crucificado pela esquerda porque em “Tropa de Elite”, pela primeira vez, o cinema nacional mostra a violência carioca pelo ponto de vista da polícia, que é o dos cidadãos comuns, e não pelo dos bandidos, que é o da classe artística, dos “formadores de opinião” e do beautiful people esquerdista em geral. Padilha não fez isso porque queria, mas porque, tendo optado por uma narrativa realista, teve de ceder à coerência interna entre os vários elementos factuais em jogo, mostrando as coisas como elas aparecem aos olhos de qualquer pessoa que esteja boa da cabeça e não tenha se intoxicado nem de cocaína nem de Michel Foucault, como o fazem aqueles três grupos de criaturas maravilhosas. O resultado é que no seu filme os traficantes são assassinos sanguinários, os policiais corruptos são policiais corruptos, os policiais bons são homens honestos à beira de um ataque de nervos, os estudantes esquerdistas metidos a salvadores do país são clientes que alimentam o narcotráfico e mantêm o país na m…. Todo mundo sabe que a vida é assim, e é por isso que instintivamente todo mundo acha que descer a mão em bandidos, por ilegal que seja, é incomparavelmente menos grave do que o imenso concurso de crimes – guerrilha urbana, homicídios, seqüestros, assaltos, contrabando, corrupção política – que o narcotráfico traz consigo. Daí que, entre as razões do policial idôneo e as da bandidagem – que são as mesmas da esquerda iluminada –, o povo já tenha feito sua escolha: Capitão Nascimento para presidente.

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