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Difamação por osmose

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 16 de fevereiro de 2014

          

Na página “Pragmatismo” (ver link), um palpiteiro de nome Leandro Dias escreve: “É curioso que o mais radical deles, Olavo de Carvalho, enxergue ‘marxismo cultural’ em gente como George Soros (mega-especulador capitalista), associando-o ao movimento comunista internacional para subjugar o mundo cristão ocidental. Esse argumento em essência é basicamente o mesmo de Adolf Hitler: o marxismo e o capital financeiro internacional estão combinados para destruir a nação alemã (Mein Kampf, 2001[1925), p. 160, 176 e 181).”.

Curioso é que, ao comparar-me com Adolf Hitler, o articulista seja tão preciso ao indicar edição e página do Mein Kampf e se omita de tomar cuidado idêntico quanto ao outro polo da comparação, indicando qual o trecho ou livro onde eu teria rotulado George Soros de “marxista cultural”. Na verdade, não poderia fazê-lo, porque não apenas jamais usei esse termo ao falar dessa pessoa, como também tenho insistido que “marxismo cultural” é um conceito impreciso, para não dizer errado.

É assim que se dá, a uma vulgar e sórdida tentativa de criminalizar por associação, as aparências de uma comparação séria, idônea, científica. O sr. Dias é o enésimo a praticar esse truque sujo, mas desde quando a falta de originalidade é atenuante do crime?

Para ser exato, não sei sequer de alguma iniciativa do sr. Soros no sentido de fomentar o que quer que se pudesse chamar de “marxismo cultural”. O que sei é que ele tem financiado generosamente toda sorte de movimentos de esquerda, alguns empenhados na prática de uma violência física que dificilmente se diria “cultural”. A lista das organizações da esquerda radical subsidiadas por Soros é tão comprida que eu não poderia reproduzi-la aqui. Remeto o leitor à página http://www.discoverthenetworks.org/individualProfile.asp?indid=977.

Tipicamente, porém, o sr. Dias enfatiza a condição de “mega-especulador capitalista” do sr. Soros para apelar ao surradíssimo chavão marxista de que a cada classe corresponde uma ideologia específica, sendo portanto absurdo supor que um capitalista tenha algo a ver com a esquerda.

A coisa é de uma estupidez asinina, mas apostar na preguiça mental dos leitores de um site esquerdista sempre rende algum dividendo. É praticamente impossível que pelo menos uns quantos dentre eles, ao ouvir falar de capitalistas financiando comunistas, não reajam com a típica explosão de riso histérico – Quiá! Quiá! Quiá! – que lhes infunde um sentimento de superioridade infinita e de certeza indestrutível, apodítica.

E, no entanto, os fatos permanecem. O primeiro deles é que – para ficar ainda no terreno do mero “marxismo cultural” –, a Escola de Frankfurt não apenas foi fundada por um bilionário capitalista, Felix Weyl, como também foi sempre liderada por gente de família chique, como Max Horkheimer, Theodor Adorno, Leo Lowenthal e tutti quanti. Herbert Marcuse foi, ao longo das gerações, o único membro da equipe que veio de uma origem modesta.

Associar o tal “marxismo cultural” aos bilionários só é portanto estranho aos olhos de quem, por malícia como o sr. Dias ou por inépcia como os seus leitores, sobrepõe de bom grado os estereótipos aos fatos.

Fora e além da corrente frankfurtiana, a intimidade promíscua entre megacapitalistas e movimentos de esquerda radical é hoje uma realidade tão bem documentada, que só num chiqueiro intelectual como a esquerda brasileira pode ainda funcionar a tentativa de negá-la mediante o apelo ao chavão da “ideologia de classe”. Na mesma página que sugeri acima, o sr. Dias encontraria, se tivesse algum interesse pelos fatos, a lista de alguns dos principais financiadores bilionários dos movimentos de esquerda: http://www.discoverthenetworks.org/LMC.asp.

Muito antes da criação dessa página, porém, o economista inglês Antony C. Sutton já havia demonstrado, com abundância de documentos, que nem a economia soviética nem o movimento comunista internacional teriam sobrevivido sem a bilionária ajuda americana (v. The Best Enemy Money Can Buy. E já em 1956 uma comissão de inquérito da Câmara dos Representantes dos EUA havia confirmado a vasta colaboração das fundações bilionárias com o movimento comunista (v. René A. Wormser, Foundations: Their Power and Influence, New York, Devin-Adair, 1958)

É verdade que Adolf Hitler falava de uma aliança entre capitalistas e comunistas. Mas ele também dizia que o Tratado de Versalhes havia reduzido a Alemanha à miséria e que os trabalhadores alemães eram esfolados pelo credor internacional.

Devemos negar esses fatos só para evitar que um fofoqueiro compulsivo nos iguale a Adolf Hitler? Devemos temer a esse ponto a famosa “reductio ad hitlerum” ?

Se o Führer disser que dois mais dois são quatro, devemos, indignados, proclamar que são cinco? Se os discursos de Hitler não contivessem nenhuma verdade capaz de ser reconhecida pelos ouvintes, como iria persuadi-los a aceitar a mentira do projeto nacional-socialista? Até o diabo, segundo um velho ditado, diz a verdade nove vezes para poder mentir melhor na décima.

Evidentemente, nem todos os diabos de terceira classe tomam essa precaução. Confiados no prestígio do seu mestre, crêem que podem dizer uma mentira para cada verdade, como o sr. Dias, que, ao comparar dois autores, cita com precisão um deles e espera, cruzando os dedos, que o outro saia sujo por osmose.

Carta a um amigo

Olavo de Carvalho

O Globo, 2 de outubro de 2004

Um amigo, vítima recente da bandidagem carioca, me escreve que a desordem reinante ultrapassou os limites do tolerável e que é preciso a população tomar alguma atitude, só restando saber qual. Enviei a ele a seguinte resposta:

“A vida da sociedade, como a dos indivíduos, vai para onde vai o pensamento humano. ‘Tal como o pensardes, assim o será’, diz a Bíblia. Na sociedade, a função do pensamento corresponde aos intelectuais, aos formadores de opinião, à classe das pessoas que falam, escrevem, ensinam e moldam a mentalidade das gerações. No Brasil, há quarenta anos os intelectuais, influenciados pelo ‘marxismo cultural’, vêm inoculando nas classes dirigentes, nos legisladores, nas autoridades e na opinião pública a crença de que os bandidos são bons e a ordem legal é ruim. Eles sabem perfeitamente que não é assim, mas aprenderam que os delinqüentes são uma poderosa força corrosiva que deve ser usada para minar as instituições e abrir o caminho para o socialismo. Começaram por favorecer os bandidos na literatura e no cinema, depois nos jornais e nos noticiários de TV, nos debates públicos em geral, nas escolas e, por fim, nas leis. Leis que criminalizam a polícia e protegem os bandidos. Leis que desarmam os homens honestos e dão aos delinqüentes o monopólio do uso da força. É absolutamente impossível que, numa sociedade influenciada hegemonicamente por essas idéias, situações como a que você vivenciou não se tornem a experiência diária da população e que, nessas condições, a vida de todos não se torne um inferno. De todos, exceto os marginais e seus protetores, a classe dos intelectuais ativistas, cada vez mais poderosa, mais rodeada de prestígio, mais subsidiada pelo Estado e mais arrogante nas suas pretensões. E, justamente quando a vida se torna um inferno, esses charlatães ainda tiram novo proveito da situação, explicando tudo como produto de ‘causas sociais’ impessoais, e exigindo, na alegada intenção de corrigi-las, leis que tornem o cidadão ainda mais impotente e os bandidos ainda mais eficientes.

“A culpa única e exclusiva do presente estado de coisas cabe aos intelectuais ativistas. Quando ouvir um sociólogo, um professor, um artista, um jornalista pontificando sobre as causas sociais e econômicas da criminalidade, lançando as culpas sobre ‘a sociedade’, saiba que está diante do culpado em pessoa; diante de um criminoso ainda pior do que aqueles que, nas ruas, transformam em ação os pensamentos dele. Os apóstolos de ‘um mundo mais justo’, os adocicados pregadores de ‘uma sociedade mais fraterna’, são os gurus do crime. É contra eles que deve ser dirigido o esforço dos cidadãos honestos que não exigem uma sociedade paradisíaca, mas querem apenas sossego para trabalhar, liberdade para andar nas ruas, segurança para criar seus filhos.”

O que está dito aí não é novidade nenhuma. Todo mundo só hesita em admitir essas coisas porque a aposta nacional na idoneidade do beautiful people das artes e letras foi alta demais. Descobrir uma intenção perversa em tantas “pessoas maravilhosas” seria traumático. Por isso, sempre que queremos pôr ordem no galinheiro, a primeira idéia que nos ocorre é solicitar o parecer técnico da raposa.

***

Mas não é só no Brasil que isso acontece. Em artigo recente, o jornalista Steven Plaut denuncia a diferença de tratamento dado pela mídia aos agitadores de direita e de esquerda israelenses. Enquanto os primeiros são mantidos sob vigilância cerrada, os segundos conservam seu status de cidadãos acima de qualquer suspeita, por mais que façam contra Israel. No último Yom Kippur, eles pintaram slogans obscenos e pró-terroristas na Grande Sinagoga de Jerusalém e divulgaram os lugares onde os virtuais assassinos políticos podem encontrar seus alvos prediletos, Sharon e Netanyahu. O episódio foi noticiado como mero “protesto” e não como crime.

Se até o povo mais durão do universo fraqueja ante a chantagem moral esquerdista, por que nós, brasileiros, haveríamos de reagir melhor?

Mas, lá como cá, um dia isso vai ter de acabar – ou com a demissão da raposa, ou com a morte da última galinha.

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