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Remexidos pelo vira-bosta

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 18 de junho de 2007

Resposta a artigo de Armindo Abreu sob o título “O vira-bosta da Virgínia” que será publicado no mesmo número do DC.

O vira-bosta leva esse nome porque remexe cocôs. Mereço o apelido, porque há tempos não faço outra coisa. Que mais resta a um comentarista político no Brasil de hoje? É normal, portanto, que de vez em quando alguns dos remexidos protestem. É também previsível que o façam naquela linguagem rebuscada, tortuosa e lombricóide de oratória interiorana, que na obscuridade intestinal em que vegetam lhes parece o suprassumo da elegância literária. Apenas é fatal que, no manejo desses complexos arranjos verbais, às vezes percam o rumo do que pretendiam dizer e acabem se melando a si próprios na matéria excrementícia com que planejavam sujar o adversário. Lembro-me do ex-ministro da Justiça e assaltante de bancos aposentado, Aloysio Nunes Ferreira Filho, que ao ler uma sondagem que fiz de suas idéias me acusou de “mergulhar no esterco”, não me deixando alternativa senão lhe dar razão.

O sr. Armindo Abreu segue-lhe o exemplo. Desejando espalhar suspeitas escabrosas sobre as fontes do meu sustento nos EUA (É a CIA? É o Departamento de Estado?), comete a gafe irreparável de enviá-las justamente ao jornal que paga o meu salário de correspondente em Washington. Pretendendo afetar olímpico desprezo à minha pessoa, não consegue esconder os tremeliques de gozo que sacodem a sua vaidade senil ante a notícia de que foi mencionado na minha coluna – certamente o seu maior momento de glória nesta vida. Jurando que jamais me dirigiu a palavra, esquece que me dirigiu alguns milhares delas, já que me enviou um livro inteiro, decerto por saber que eu jamais o compraria. E, acusando-me de ter-lhe feito na minha coluna um ataque imotivado e gratuito, finge esquecer que o trecho mencionado não pode ter sido nem uma coisa nem a outra, pois foi escrito em resposta a coisas cabeludas que ele dissera de mim antes. Por que é que esse sujeito não tem um pouco de compaixão por si mesmo? Por que não relê o que escreve, em vez de se expor ao ridículo dessa maneira?

Mas no Brasil de hoje é assim: nem a substância fecal jogada no ventilador pode mais confiar no controle de vôo.

A nota que publiquei sobre o sr. Abreu tinha doze linhas. Ele me respondeu com 163. Se o leitor tiver a caridade de as ler até o fim, verificará que não respondem a nada ao que eu disse dele na coluna do dia 26.

O sr. Armindo, escrevi ali, “cacareja que meus artigos de 1999 foram plagiados do seu livro de 2005, que eu nunca disse uma palavra contra o establishment americano e que o Foro de São Paulo é ‘uma entidade quase ficcional’. Pela exatidão de qualquer das três afirmações mede-se a veracidade das outras duas. Como ele também me acusa de calúnia, injúria e difamação, mas não diz a quem caluniei, injuriei ou difamei, é ele quem, no mesmo ato, comete esses três crimes contra mim.”

Na sua resposta, ele não desmente nem justifica nenhuma de suas imputações. Ao contrário, acrescenta-lhes mais algumas: que padeço de “pretensiosa avidez em frenética busca por algum reconhecimento intelectual” (de quem, Deus do céu?), que sou um “anarquista cheio de ódio pela sociedade organizada” (organizada pelo PCC, pelo Comando Vermelho e pelas Farc), que sou bajulador de militares (o brigadeiro Ferolla, o general Andrade Nery e a Escola Superior de Guerra que o digam), que beijo as mãos dos Rockefellers (veja-se por exemplo http://www.olavodecarvalho.org/semana/060501dc.html), que fico fora do ambiente acadêmico para me furtar à “ampla concorrência de idéias” que ali vigora (você pode escolher entre ser leninista, maoísta ou trotsquista), que vivo às custas dos outros (exploro miseravelmente o Diário do Comércio) e, last not least , que meu pai e minha mãe não prestavam. Quanto a este último ponto, ele esclarece que a grande falha na minha educação doméstica foi não haver em minha casa uma penteadeira da vovó. Sim, admito essa deficiência. Mal consigo imaginar, no meu primitivismo bárbaro, os requintes de civilização que o pequeno Armindo adquiriu sentadinho horas a fio diante dessa venerável peça de mobiliário, ajeitando as ondas dos cabelos, aparando as cutículas, empoando o narizinho e se preparando, por esse meio, para os grandes embates intelectuais que o aguardavam na vida adulta.

Mas o detalhe mais patético da sua missiva é o empenho do remetente em fazer acreditar que a nota que escrevi a seu respeito foi uma tentativa – falhada e torpe, obviamente – de crítica literária ao seu livro. O leitor pode notar sem dificuldade que essa obra magna da cretinice universal só foi ali mencionada para identificar o autor; que a nota se destinava a responder a injúrias pessoais e não a comentar um livro. Se eu fosse comentá-lo, diria no máximo o seguinte:

1. A referida coisa é um compêndio de teoria da conspiração, montado com base em não mais de quinze títulos especializados (o restante da sua bibliografia é constituído de obras gerais e artigos de imprensa), o que mostra que seu autor não tem a menor idéia das exigências da pesquisa acadêmica, nem muito menos das complexidades de um tema cuja literatura superlota hoje muitas bibliotecas.

2. Sua tese é: Por trás de tudo o que acontece no mundo há um poder secreto, a oligarquia maçônico-financeira global originada na seita dos illuminatti , dominando e manipulando por igual a esquerda e a direita, o catolicismo, o judaísmo, o islamismo, o capitalismo, o comunismo, o fascismo etc. etc. etc. É em linhas gerais a mesma tese clássica dos velhos teóricos da conspiração, apenas ampliada para conceder aos “controladores”, como ele os chama, a absoluta unidade de comando em escala universal e o dom da onipotência divina. O livro reflete menos a realidade do poder global, com todas as suas ambigüidades, fraquezas e limitações, do que o efeito alucinógeno que algumas leituras assustadoras tiveram na mente em fogo do sr. Abreu.

3. Se ele parasse por aí, teria ao menos o mérito do divulgador, recolocando em circulação, ainda que num trabalho intelectualmente ginasiano, um tema importantíssimo que há mais de meio século é ignorado pela nossa classe acadêmica e pela mídia em geral. Mas ele resolve anexar aí sua própria contribuição original, que é adapar as teorias da conspiração mundial às lendas e tradições da xenofobia local, segundo as quais os gringos (conceito elástico que engloba o poder mundial, a ONU, o governo americano e cada empresa sediada nos EUA) querem nos tomar a Amazônia, o petróleo, os minerais atômicos, a água que bebemos e talvez até a penteadeira da vovó, monumento da cultura nacional.

4. Aí não há mais limites para a confusão, e não é de estranhar que os leitores, admiradores e seguidores do sr. Abreu – algumas dezenas de oficiais ditos “nacionalistas”, todos eles monstruosamente incultos – tirem do seu livro as conclusões práticas mais desastradas e as alardeiem triunfalmente em publicações comunistas e pró-comunistas (“A Hora do Povo”, www.vermelho.org , “Caros Amigos” etc.), como por exemplo a de que o Brasil deve se aliar aos demais “patriotas latino-americanos” (leia-se Hugo Chávez) para uma grande investida anti-imperialista contra “os gringos”. Evidentemente, nada no livro do sr. Abreu lhes informa que a direita americana é o único foco sério de resistência contra o poder global, nem portanto que atacando-a só fazem servir a este último e dar reforço à revolução esquerdista latino-americana, que eles mesmos juram ser um tentáculo desse poder. Que depois alguns deles fiquem chorando no travesseiro quando o desertor Lamarca recebe honras póstumas de general só mostra que não têm a menor idéia das conseqüências de suas próprias ações. Jamais os chamei de comunistas. Chamei-os de idiotas presunçosos, e por nada deste mundo perderia esta ocasião de fazê-lo de novo.

Na verdade, o poder global é assunto seríssimo, o mais sério das últimas décadas. Para estudá-lo é preciso muito mais leitura do que o sr. Abreu pode sequer imaginar, além de cuidados metodológicos que implicam — nada mais, nada menos — uma revisão integral dos conceitos fundamentais da ciência política e das relações internacionais. Venho me dedicando a essa tarefa há pelo menos duas décadas. Algo do meu esforço nesse sentido transparece nos artigos deste Diário , bem como nas minhas aulas e nas apostilas de meus cursos que circulam sob o título “Ser e Poder” e “Questões de Método nas Ciências Sociais”.

Realmente não posso gostar de ver um amador despreparado se intrometer na área e bagunçar o panorama onde eu vinha tentando tão laboriosamente introduzir alguma ordem e clareza. O tema, além da sua complexidade quase inabarcável, remexe até às raízes uma infinidade de dores, crueldades, padecimentos e misérias. Aproximar-se dele sem as devidas precauções é, além de uma irresponsabilidade intelectual, uma leviandade moral dificilmente perdoável. Ser um vira-bosta não é para qualquer um.

Os dois pilares em que se assenta o poder global são a ignorância e a confusão. A primeira se produz ocultando os fatos; a segunda, divulgando-os em desordem perturbadora, sem uma perspectiva intelectual sensata. Jurando derrubar o primeiro desses pilares, o sr. Abreu reforçou formidavelmente o segundo, ao ponto de deixar seus leitores um pouco mais bobos do que já eram.

Admito as intenções patrióticas com que o fez, mas não posso dizer que essas intenções fossem verdadeiramente boas. Não há boa intenção sem amor à verdade, nem amor à verdade sem a rendição completa da inteligência à complexidade de fatos que não se deixam prender num esquema simploriamente unívoco, principalmente quando os atacamos com base num arsenal bibliográfico tão miserável quanto o de “O Poder Secreto!”

O problema do Brasil, no fundo, não é o esquerdismo, não é a corrupção, não é a violência, não é nem mesmo o “poder secreto”. É o desprezo atávico pelo conhecimento, ao lado de um amor idolátrico aos seus símbolos exteriores: diplomas, medalhas, honrarias acadêmicas, títulos honoríficos. O sr. Abreu contempla diariamente os seus, com deleites de menino trancado no banheiro com um número da Playboy . Está na hora tirá-lo de lá com uns bons tapas no traseiro e uma ordem taxativa: “Vá estudar, moleque.”

A direita autocastrada

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 28 de agosto de 2006

Quando me perguntam como quebrar a hegemonia esquerdista, a primeira fórmula que me ocorre é a do poeta austríaco Hugo von Hofmannsthal: “Nada se torna realidade na política de um país se antes não está presente, como espírito, na sua literatura.” A palavra “literatura”, aí, tem a acepção ampla de cultura superior escrita. Criem uma cultura superior na qual predominem os valores liberais e conservadores, e a esquerda não terá mais chance na política. Este resultado não se seguirá automaticamente, é claro, mas sem essa limpeza prévia do terreno mental nenhuma iniciativa política poderá prosperar contra o esquerdismo triunfante e monopolístico.

Entrem numa livraria qualquer e verão nas prateleiras a demonstração clara do que estou dizendo: a ascensão do império petista foi precedida de meio século de ocupação do espaço cultural. Antes de o Estado ser engolido pelo PT, impregnaram-se de esquerdismo militante as idéias, os juízos de valor, as palavras, os sentimentos, até as reações automáticas de aplauso e rejeição. A esquerda dominou de tal modo o imaginário nacional que até quem a detesta não ousa criticá-la senão nos termos dela, como se fosse possível derrotar politicamente o inimigo fortalecendo o controle ideológico que ele exerce sobre a sociedade. Políticos tarimbados como os srs. Marco Maciel, José Sarney ou Cláudio Lembo mimetizam o discurso politicamente correto, esperando atenuar sua imagem de “direitistas” e só conseguindo com isso atrair, junto com o ódio usual, uma boa dose de desprezo.

Essa falsa esperteza, tão miúda e provinciana quanto suicida, é o máximo de inteligência estratégica que um exame histológico atento revelará nos cérebros dos políticos “de direita” neste país. Com a colaboração prestimosa e servil dessas criaturas, os critérios e juízos de valor esquerdistas se impregnaram tão profundamente na mentalidade das classes falantes que já não são reconhecidos como tais: tornaram-se dogmas do senso comum. Nessa atmosfera, não é de estranhar que os eventuais opositores do governo já nem mesmo consigam imaginar o que é uma luta política, mas entendam sob esse termo a mera concorrência eleitoral. Essa é a diferença, no Brasil, entre a esquerda e a “direita”: a primeira quer o poder, a segunda quer apenas mandatos. Mandatos conquistam-se nas eleições; a luta pelo poder abrange um território muito mais amplo. Eleição não é política, é o resultado de uma política preexistente que começa no fundo anônimo e obscuro da sociedade, naquela camada quase invisível onde a hegemonia cultural se traduz como influência sutil exercida sobre as emoções básicas da população.

A esquerda sabe disso, a “direita” não. Os partidos de esquerda marcam sua presença numa variedade impressionante de campos da vida social – escolas, sindicatos, campanhas humanitárias, clínicas de psicoterapia e aconselhamento, telas de cinema, exposições de arte, novelas, programas culturais e educativos da TV, o diabo. A direita só é visível nos comitês eleitorais, às vésperas da votação. Isso é assim já faz muitos anos. Quem quer que tivesse observado esse fenômeno, como eu observei, teria chegado, como cheguei há mais de uma década, à conclusão de que a total esquerdização da vida política nacional era não só previsível como inevitável a prazo mais ou menos curto. Os inumeráveis idiotas – políticos, empresários, intelectuais, oficiais militares – a quem expus essa conclusão em tempo de reverter o processo, e que riram dela do alto de sua ignorância presunçosa, olhavam apenas o panorama eleitoral e, vendo ali a vitória fácil de um Collor, de um Fernando Henrique, proclamavam: a esquerda jamais dominará este país.

Ainda às vésperas das eleições de 2002, algumas dúzias desses sábios, selecionados entre brasileiros e brazilianists, consultados pelo Los Angeles Times, asseguravam que Lula não teria mais de trinta por cento dos votos. Não entendiam que os resultados das eleições anteriores refletiam apenas o conservadorismo residual da população brasileira, o qual, desprovido de canais de expressão cultural e partidária, acabaria por ceder terreno à invasão esquerdista. Tanto mais que esta última tomava o cuidado de não se apresentar ostensivamente como tal, camuflando-se de “populismo” ideologicamente neutro e ludibriando até observadores estrangeiros experientes como Mário Vargas Llosa.

Chamemos de direita, para fins de raciocínio, o conjunto heterogêneo e inorganizado dos que não querem viver sob o socialismo. Eles constituem, segundo uma pesquisa da Folha de S. Paulo, 47 por cento da população brasileira, face a 30 por cento de esquerdistas professos. Os restantes 23 por centro definem-se como centristas, com a ressalva de que aquilo que imaginam como centrismo inclui o apoio ostensivo a propostas conservadoras em matéria de moral e segurança pública. Com ou sem nome, a direita é 70 por cento dos brasileiros. Um programa político ostensivamente conservador teria portanto sucesso eleitoral garantido. Mas, como esse programa não existe — e se tentasse existir teria de vencer em primeiro lugar o desafio de criar uma linguagem própria num panorama semântico já totalmente impregnado de esquerdismo –, o resultado é que a população conservadora acaba votando em candidatos de esquerda nos quais não percebe esquerdismo nenhum mas apenas as qualidades externas mais afins à exigência conservadora, a começar, é claro, pela honestidade e honradez. Mas que honestidade e honradez pode haver em políticos que passam o tempo todo tentando parecer o que não são? E qual político brasileiro, de esquerda ou “direita”, se ocupa hoje de alguma coisa que não seja precisamente isso?

Assim, toda a política brasileira tornou-se um sistema de armadilhas e auto-enganos: o eleitorado vota maciçamente em candidatos que representam o contrário simétrico das suas aspirações, os políticos que poderiam representar essas aspirações recusam-se obstinadamente a fazê-lo e se apegam à busca de uma sobrevivência degradante por meio da parasitagem servil do discurso adversário. É tudo fingimento, hipocrisia, teatro, camuflagem, desconversa. Nenhuma discussão objetiva do que quer que seja é possível nessas condições. Os tais “problemas nacionais” podem esperar sentados: nenhuma discussão política, pelos proximos anos, tocará em nada que tenha algo a ver com a realidade. Nossa única esperança de um despertar coletivo é o programa comunista do Foro de São Paulo alcançar sucesso total e, tranquilizado pela ausência de oposições, arrancar finalmente a máscara e dizer a que veio. Aí a platéia chocada perceberá que, por décadas, viveu entre as névoas de uma fantasia entorpecente. Mas essa tomada de consciência tardia já não servirá para nada, exceto para produzir lágrimas inúteis em torno da vida que poderia ter sido e que não foi.

Entre os homens da “direita”, muitos teimaram em recusar os meus diagnósticos, ao longo dos anos, sob o pretexto de que eu era demasiado pessimista. Nem percebiam o quanto sua resposta provava o que eu dizia. Pessimismo e otimismo são atitudes da mente, são estados subjetivos. Não têm nada a ver com a situação externa, com a realidade das coisas. É possível ser pessimista diante de uma situação objetivamente positiva e otimista quando tudo está perdido. Quando uma descrição do estado de coisas é rejeitada por ser “pessimista”, é claro que o ouvinte está respondendo na clave dos seus estados emocionais e não no da percepção da realidade. Ele não está impugnando um diagnóstico: está reagindo contra os sentimentos desagradáveis que ele lhe infunde. É uma mera reação de autodefesa psicológica, uma autovacina contra a depressão pressentida. Só reage assim quem está fragilizado demais para abstrair-se de estados emocionais e concentrar a atenção na realidade. Os fortes não têm medo de encarar o pior: os fracos fogem dele porque sua mera visão os esmaga. Aquelas afetações de otimismo, fingindo desprezo superior ante as minhas análises deprimentes, não eram senão sintomas de debilidade terminal. A liderança “direitista” já não tinha força nem para admitir sua própria fraqueza.

Um pouco mais adiante, ela agravou mais ainda a sua situação, quando, após a revelação dos crimes do PT, perdeu a oportunidade de denunciar toda a trama comunista do Foro de São Paulo e, por covardia e comodismo, se limitou a críticas moralistas genéricas e sem conteúdo ideológico. Estas podiam facilmente ser apropriadas pela esquerda, e de fato o foram. Rapidamente alguns ratos abandonaram o navio petista e trataram de tirar proveito do naufrágio, sendo ajudados nisso pela recusa obstinada da “direita” de falar de assuntos politicamente incorretos  O único resultado objetivo alcançado pelas denúncias de corrupção no governo foi a ascensão da sra. Heloísa Helena nas pesquisas eleitorais. Agradeçam esse resultado à autocastração voluntária da liderança “direitista”.

A tragédia do estudante sério no Brasil

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de fevereiro de 2006

Toda semana, recebo dezenas de cartas de estudantes que, em busca de alguma formação intelectual, encontraram nas universidades que freqüentam apenas propaganda comunista rasteira, porca, subginasiana.

Não são, como em geral imaginam, vítimas de puras circunstâncias políticas imediatas. Gemem sob uma montanha de fatores adversos à inteligência humana, que foram se acumulando no mundo, e não só no Brasil, ao longo das últimas décadas. Se a primeira metade do século XX trouxe um florescimento intelectual incomum, a segunda foi uma devastação geral como raramente se viu na História. A queda foi tão profunda que já não se pode medi-la. Num panorama inteiramente dominado por charlatães caricatos como Noam Chomsky, Richard Dawkins, Edward Said, Jacques Derrida, Julia Kristeva, a época em que floresceram quase que simultaneamente Edmund Husserl, Karl Jaspers, Louis Lavelle, Alfred North Whitehead, Benedetto Croce, Jan Huizinga, Arnold Toynbee – e na literatura T. S. Eliot, W. B. Yeats, Ezra Pound, Thomas Mann, Franz Kafka, Jacob Wassermann, Robert Musil, Hermann Broch, Heimito von Doderer – já se tornou invisível, inalcançável à imaginação dos nossos contemporâneos. Toda comparação é entre alguma coisa e alguma outra coisa. Não se pode comparar tudo com nada.

Isso não quer dizer que as fontes do conhecimento tenham secado. Pensadores de grande envergadura – um Eric Voegelin, um Bernard Lonergan, um Xavier Zubiri – sobreviveram à debacle dos anos 60 e continuaram atuantes, o primeiro até 1985, o segundo até 1984, o terceiro até 1983. Mas seus ensinamentos são ainda a posse exclusiva de círculos seletos. Não entram na corrente geral das idéias, nem poderiam entrar sem sujar-se, sem transformar-se em matéria de discussões idiotas como vem acontecendo, graças à ascensão política de alguns de seus discípulos, com o infeliz Leo Strauss.

Pois a desgraça se deu justamente na “corrente geral”. O fim da II Guerra Mundial trouxe uma prodigiosa reorganização das bases sociais e econômicas da vida intelectual no mundo. Novas instituições, novas redes de comunicação, novos mecanismos de estocagem e distribuição das informações acadêmicas, novos públicos e, sobretudo, a ampliação inaudita do apoio estatal e privado à cultura e a formação dos grandes organismos internacionais como a ONU e a Unesco. Tudo isso veio junto com o descrédito do marxismo soviético e a profunda mutação interna da militância esquerdista internacional, a essa altura já plenamente imbuída das duas lições aprendidas da Escola de Frankfurt e de Georg Lukacs (mas também, mais discretamente, de Martin Heidegger): (1) a luta essencial não era propriamente contra o capitalismo, mas contra “a civilização ocidental”; (2) o agente principal do processo era a classe dos intelectuais.

Nessas condições, o crescimento fabuloso dos meios de atuação veio junto com o esforço multilateral de apropriação desses meios por parte de grupos militantes bem pouco interessados em “compreender o mundo” mas totalmente devotados a “transformá-lo”. A redução drástica da atividade intelectual ao ativismo político foi a conseqüência desejada e planejada dessa operação, realizada em escala mundial a partir dos anos 60.

Não que o fenômeno fosse totalmente desconhecido antes disso. Um vasto ensaio geral já vinha sendo realizado nos EUA desde a década de 30 pelo menos, através das grandes fundações “não lucrativas” que descobriram seu poder de orientar e manipular a seu belprazer a atividade intelectual, científica e educacional mediante a simples seleção ideologicamente orientada dos destinatários de suas verbas bilionárias.

Em 1954, uma comissão de investigações do Congresso americano já havia descoberto que fundações como Rockefeller, Carnegie e Ford exerciam controle indevido sobre as universidades, as instituições de pesquisa e a cultura em geral, orientando-as num sentido francamente anti-americano, anticristão e até anticapitalista. (Não me perguntem pela milésima vez com que interesse os grandes capitalistas podem agir contra o capitalismo. A explicação está resumida em http://www.olavodecarvalho.org /semana/040617jt.htm e http://www.olavodecarvalho.org /textos/debate_usp_4.htm .) Inevitavelmente, a influência exercida por essas organizações não consistiu só em introduzir uma determinada cor política na produção cultural, mas em alterá-la e corrompê-la até às raízes, subordinando aos objetivos políticos e publicitários visados todas as exigências de honestidade, veracidade e rigor. Sem essa interferência, fraudes cabeludas como o Relatório Kinsey ou a pseudo-antropologia de Margaret Mead jamais teriam conseguido impor-se ao meio acadêmico e à mídia cultural como produtos respeitáveis de uma atividade científica normal.

A comissão foi alvo de ataques virulentos de toda a grande mídia, e seu trabalho acabou por ser esquecido, mas ele ainda é uma das melhores fontes de consulta sobre a instrumentalização política da cultura (v. René Wormser, Foundations, Their Power and Influence, New York, Devin-Adair, 1958 – vocês podem comprá-lo pelo site www.bookfinder.com ). Na verdade, sem ele não se pode compreender nada do que se passou em seguida, pois o que se passou foi que o experimento tentado em escala americana foi ampliado para o mundo todo: a apropriação dos meios de ação cultural pelas organizações militantes e o sacrifício integral da inteligência humana no altar da “vontade de poder” simplesmente se globalizaram.

Recursos incalculavelmente vastos, que poderiam ter sido utilizados para o progresso do conhecimento e a melhoria da condição de vida da espécie humana foram assim desperdiçados para sustentar a guerra geral da estupidez militante contra a “civilização ocidental” que havia gerado esses mesmos recursos.

Embora esse processo seja de alcance mundial, é claro que o seu peso se fez sentir mais densamente em países novos do Terceiro Mundo, onde as criações das épocas anteriores não tinham sido assimiladas com muita profundidade e as raízes da civilização podiam ser mais facilmente cortadas. No Brasil, da década de 60 em diante, os progressos da barbárie foram talvez mais rápidos do que em qualquer outro lugar, destruindo com espantosa facilidade as sementes de cultura que, embora frágeis, vinham dando alguns frutos promissores. A comparação impossível entre as duas épocas, que mencionei acima, é ainda mais impossível no caso brasileiro. Na década de 50, tínhamos, vivos e atuantes, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Àlvaro Lins, Augusto Meyer, Otto Maria Carpeaux, Mário Ferreira dos Santos, Vicente Ferreira da Silva, Herberto Sales, Cornélio Penna, Gustavo Corção, Nelson Rodrigues, Lúcio Cardoso, Heitor Villa-Lobos, Augusto Frederico Schmidt, a lista não acaba mais. Hoje, quem representa na mídia a imagem da “cultura brasileira”? Paulo Coelho, Luís Fernando Veríssimo, Gilberto Gil, Arnaldo Jabor, Emir Sader, Frei Betto e Leonardo Boff. Perto desses, Chomsky é Aristóteles. É o grau mais alto pelo qual se medem. Chamar isso de crise, ou mesmo de decadência, é de um otimismo delirante. A cultura brasileira tornou-se a caricatura de uma palhaçada. É uma coisa oca, besta, disforme, doente, incalculavemente irrisória.

A inteligência, ao contrário do dinheiro ou da saúde, tem esta peculiaridade: quanto mais você a perde, menos dá pela falta dela. O homem inteligente, afeito a estudos pesados, logo acha que emburreceu quando, cansado, nervoso ou mal dormido, sente dificuldade em compreender algo. Aquele que nunca entendeu grande coisa se acha perfeitamente normal quando entende menos ainda, pois esqueceu o pouco que entendia e já não tem como comparar. Uma das coisas que me deliciam, que me levam ao êxtase quando contemplo o Brasil de hoje, é o ar de seriedade com que as pessoas discutem e pretendem sanar os males econômicos, políticos e administrativos do Brasil, sem ligar a mínima para a destruição da cultura, como se a inteligencia prática subsistisse incólume ao emburrecimento geral, como se inteligência fosse um adorno a ser acrescentado ao sucesso depois de resolvidos todos os problemas ou como se a inépcia absoluta não fosse de maneira alguma um obstáculo à conquista da felicidade geral. A prova mais evidente da insensibilidade torpe é o sujeito já nem sentir saudade da consciência que teve um dia.

Mas não, a inteligência nacional não acabou no dia em que os nossos estudantes tiraram o último lugar numa avaliação entre alunos do curso secundário de 32 países: acabou logo em seguida, quando o ministro da Educação disse que o resultado poderia ter sido pior.

Num sentido mais profundo do que o ministro imaginava, poderia mesmo. Na eleição seguinte, o país colocou na presidência um carreirista enriquecido, de terno Armani e unhas polidas, que, por orgulhar-se de jamais ler livros, foi proclamado um símbolo da autenticidade popular. A imagem era falsa, grotesca e insultuosa, mas ninguém percebeu. Se existe um grau abaixo do grotesco, porém, ele foi atingido logo em seguida, quando o escritor Raymundo Faoro, quanto mais bobo mais celebrado nas esquerdas como inteligência luminosa, sugeriu o nome do então presidenciável para ocupar uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Perto disso, tirar o último lugar num teste chegava a ser meritório.

Se o desespero dos estudantes que me escrevem viesse só da situação política, haveria esperança de saná-lo por meio da ação política. Mas a ação política é um subproduto da cultura e, no estado em que as coisas estão, nenhuma ação política inteligente, ao menos em escala federal, é previsível nas próximas duas ou três gerações. Nas próximas eleições, por exemplo, o país terá de optar novamente entre PT e PSDB, isto é, os dois filhotes monstruosos gerados no ventre da USP, a mãe da esterilidade nacional, ou como bem a sintetizou o poeta Bruno Tolentino, a “p… que não pariu”. Sim, a política brasileira virou uma imensa assembléia de estudantes da USP, com o Partido Comunista de um lado, a Ação Popular de outro, num torneio de arrogância, presunção, hipocrisia, sadismo mental, mendacidade ilimitada e estupidez sem fim. A USP levou meio século para chegar ao poder, e ainda não parou de gerar pseudo-intelectuais ambiciosos, ávidos de mandar, sedentos de ministérios. Sua obra de destruição está longe de haver-se completado.

Da política nada de bom se pode esperar num prazo humanamente suportável. Uma ação cultural de grande escala – a fundação de uma autêntica instituição de ensino superior, para contrabalançar a desgraça uspiana – também não é nada provável, dada a omissão das chamadas “elites”, sempre de rabo entre as pernas, oscilando entre lamber mais um pouco os pés da canalha petista ou apegar-se ao primeiro zesserra que apareça.

Ao estudante que consiga ainda vislumbrar o que é vida intelectual e faça dela o objetivo de sua existência, restam dois caminhos: o exílio, que pode levar ao lugar errado (a miséria brasileira nasce em Paris), e o isolamento, que pode levar os mais fracos a um desespero ainda mais profundo do que aquele em que se encontram.

A única solução viável, que enxergo, é a formação de pequenos grupos solidários, firmemente decididos a obter uma formação intelectual sólida, de início sem nenhum reconhecimento oficial ou acadêmico, mas forçando mais tarde a obtenção desse reconhecimento mediante prova de superioridade acachapante. Já não leciono no Brasil, mas a experiência mostrou que muito aluno meu, com alguns anos de aulas e bastante estudo em casa, já está pronto para dar de dez a zero, não digo em alunos, mas em professores da USP do calibrinho de Demétrio Magnoli e Emir Sader, o que, bem feitas as contas, é até luta desigual, é até covardia.

O processo é trabalhoso, mas simples: cumprir as tarefas tradicionais do estudo acadêmico, dominar o trivium , aprender a escrever lendo e imitando os clássicos de três idiomas pelo menos, estudar muito Aristóteles, muito Platão, muito Tomás de Aquino, muito Leibniz, Schelling e Husserl, absorver o quanto possível o legado da universidade alemã e austríaca da primeira metade do século XX, conhecer muito bem a história comparada de duas ou três civilizações, absorver os clássicos da teologia e da mística de pelo menos três religiões, e então, só então, ler Marx, Nietzsche, Foucault. Se depois desse regime você ainda se impressionar com esses três, é porque é burro mesmo e eu nada posso fazer por você.

Mas o ambiente universitário brasileiro de hoje é tão baixo, tão torpe, que só de a gente apresentar essa lista – o mínimo requerido para uma formação séria de filósofo ou erudito –, o pessoal já arregala os olhos de susto. Na verdade, o estudante brasileiro não lê nada, só resumo e orelha, além de Emir Sader e da dupla Betto & Boff, que não valem o resumo de uma orelha. É tudo farsa, chanchada, pose. Não há quem não saiba disso e não há quem não acabe se acomodando a essa situação como se fosse natural e inevitável. A abjeção intelectual deste país é sem fim.

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