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Ciência e democracia

Olavo De Carvalho


Diário do Comércio (editorial), 12 e março de 2007

Se você acredita que a “”ciência” pode ao mesmo tempo desfrutar de autoridade pública e obedecer ao princípio de falseabilidade de Popper, você está querendo o impossível. Nenhuma autoridade pública pode ter o direito de mudar de idéia ao primeiro exemplum in contrarium que apareça e anunciar que talvez mude de idéia de novo no dia seguinte se um segundo exemplo impugnar o primeiro. A liberdade da pesquisa científica depende essencialmente da certeza de que nada do que os cientistas digam terá conseqüências graves que eles não possam mudar com a mesma liberdade com que saltam de uma hipótese a outra. Tão logo uma hipótese científica é subscrita pelo Estado e se torna obrigatória por lei, ou é aceita pela sociedade e se torna crença geral, ela se furta ao princípio de falseabilidade e já não pode ser alterada senão pela ação de grupos de pressão e da propaganda em massa. A ciência, ao menos em sua autodefinição ideal, é o inverso da democracia: é o poder de impor a opinião de um só contra a autoridade de todos, desde que a primeira atenda melhor às exigências do método. É o oposto simétrico do governo da maioria.

Não obstante, a alegação de popperianismo convive tão bem com a reivindicação de autoridade pública, que se diria que certos apologistas do saber científico não têm a menor consciência das implicações do que dizem.

Ademais, o princípio de falseabilidade é um saco sem fundo: não se pode alegar um fato contra uma generalização se esse fato não contém em si o germe de uma nova generalização ao menos implícita. E toda nova generalização é, como suas antecedentes, apenas uma hipótese provisória. Uma hipótese provisória pode durar um minuto, dois minutos, três dias, um século, e ser derrubada de repente. Mas se antes de ser derrubada ela já dispõe de autoridade pública e se torna fundamento de leis e instituições, a comunidade científica não tem o poder mágico de anular retroativamente as conseqüências sociais e históricas das mudanças que ela mesma tenha legitimado com base na hipótese agora rejeitada. A autoridade pública da ciência é fraude no sentido mais essencial e incontornável do termo. O exercício da ciência, na medida em que supõe o direito permanente de mudar de idéia, exige a renúncia a toda autoridade pública por absoluta impossibilidade de arcar com as conseqüências duradouras da fé em hipóteses transitórias. Não pode haver autoridade pública sem responsabilidade pública, mas, sendo impossível punir a comunidade científica inteira por crime de responsabilidade como se pune um governante, é forçoso que essa comunidade renuncie à sua autoridade pública para preservar sua própria liberdade de investigação científica.

A coexistência pacífica de “ciência” e “democracia”, quando não a fusão pastosa das duas no “ideal da razão” como guia dos povos, é só um dos muitos delírios iluministas que se impregnaram na imaginação popular ao ponto de fazê-la tomar ingenuamente como homogêneneo e idêntico aquilo que na verdade é diverso e incongruente.

Hitlers em penca

Olavo de Carvalho


Época, 5 de novembro de 2000

Para milhões de brasileiros, o irracional tornou-se um direito e um motivo de orgulho

Numa carta recém-publicada em ÉPOCA, o remetente, após admitir que não compreendia nem meu vocabulário, nem meus argumentos, passava, com a mais cândida naturalidade, a opinar sobre minhas idéias num tom de absoluta segurança.

Eu gostaria de poder dizer que esse homem é um louco, um anormal. Não posso. No padrão atual de nossas classes alfabetizadas, sua conduta se tornou não apenas normal, mas obrigatória. Não é sintoma de maluquice individual: é sinal dos tempos. A total ignorância, a radical desorientação já não constituem, para o brasileiro legente, motivo razoável para refrear a volúpia de opinar, de julgar, de condenar ou aplaudir. A exigência de compreender é que se tornou abusiva, suspeita, intolerável.

Mas não é só isso. Quanto menos um brasileiro conhece um assunto, quanto menos tem a condição de pensar com independência, quanto mais, portanto, está reduzido a confiar cegamente em frases feitas, tanto mais se sente livre e senhor de si ao repeti-las e ao impugnar com veemência feroz o que lhe pareça contradizê-las.

E se, com a maior paciência, o interlocutor lhe demonstra ponto por ponto que tem razão, o ouvinte, ao ver-se compelido pelo peso das provas a admitir a conclusão que não deseja, se julga oprimido por uma imposição tirânica, injusta, arbitrária. Expulsa da alma, a razão é vivenciada como força externa hostil, inimiga do eu e da liberdade. Chegamos, pois, à completa inversão: a obediência automática a um ídolo amado tornou-se liberdade racional, a argumentação e a prova tornaram-se repressão autoritária. Autoridade é razão, razão é autoridade.

Eu gostaria de poder atribuir esse estado de coisas à pouca instrução. Não posso. Só as pessoas muito pobres, analfabetas ou quase, conservam o senso natural da diferença entre saber e não saber, entre anuência racional e crença cega. Nas classes média e alta esse senso foi desativado, precisamente, pela instrução: o tipo de instrução que não visa fazer do homem um sábio, um técnico, um trabalhador qualificado, mas um militante. Aquele que a recebe sente orgulho: imagina-se um “deserdado da terra” que ergueu a cabeça. Mas essa auto-explicação é pura fantasia. Um universitário não é um “deserdado da terra”. Seu orgulho, sua obscena alegria têm outra fonte. Sua vitória não foi sobre os privilegiados (pois ele próprio é um deles): foi sobre a insegurança que advém da consciência de não saber. Ressentindo-a como humilhação insuportável, ele aprendeu a vencê-la – mas não por uma longa e árdua busca de conhecimento. Aprendeu a sufocá-la pelo meio mais fácil: a repressão da consciência, substituída pelo embriagante sentimento de pertencer à multidão dos que “fazem História”. Estes não precisam “saber”. São superiores ao conhecimento. Não querem compreender, mas “transformar”. Por isso se sentem livres quando marcham ao som de slogans e palavras de ordem, escravos quando intimados a parar para pensar. Por isso seu discurso contra a opressão do mundo soa tão falso: é racionalização política de uma auto-exaltação vaidosa, é pretexto edificante de uma sórdida farsa interior.

Eu gostaria de poder resumir esse fenômeno sob o nome de “fanatismo”. Não posso. Nem todo fanatismo destrói a consciência. Esse é algo mais: é um fanatismo de sociopatas. E é a essa multidão de pequenos Hitlers que estamos confiando os destinos morais do país.

Que é o fascismo?

Olavo de Carvalho

O Globo, 8 de julho de 2000

Benito Mussolini resumiu a doutrina fascista numa regra concisa: “Tudo para o Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado.” No Brasil, se você é contra essa idéia, se você é a favor da iniciativa particular e das liberdades individuais, logo aparece um chimpanzé acadêmico que tira daí a esplêndida conclusão de que você é Benito Mussolini em pessoa. E não caia na imprudência de imaginar que essa conversa é demasiado pueril para enganar o resto da macacada. Quando você menos espera, guinchados de ódio cívico se erguem da platéia, e uma frota de micos, lêmures, babuínos, orangotangos e macacos-pregos se precipita sobre você, às dentadas, piamente convicta de estar destruindo, para o bem da humanidade símia, um perigoso fascista. Cuidado, portanto, com o que diz por aí. Você não faz idéia da autoridade intelectual dos chimpanzés na terra do mico-leão.

Na verdade, a idéia oficial de “fascismo” que se transmite nas nossas escolas não tem nada a ver com o fenômeno que em ciência histórica leva esse nome. É uma repetição fiel, devota e literal das fórmulas de propaganda concebidas por Stálin no fim da década de 30 para apagar às pressas a raiz comum dos dois grandes movimentos revolucionários do século e atirar ao esquecimento a universal má impressão deixada pelo pacto germano-soviético. Nessa versão, o fascismo e o nazismo surgiam como movimentos “de extrema-direita”, criados pelo “grande capital” para salvar “in extremis” o capitalismo agonizante. É lindo imaginar aqueles banqueiros judeus de Berlim, reunidos em comissão médica em torno do leito do regime moribundo, até que a um deles ocorre a solução genial: “É moleza, turma. A gente inventa a extrema-direita, ela nos manda para o campo de concentração, e pronto: está salvo o capitalismo.”

No entanto as origens e a natureza do fascismo não são mistério nenhum, para quem se disponha a rastreá-las em autênticos livros de História.

Todas as ideologias e movimentos de massa dos dois últimos séculos nasceram da Revolução Francesa. Nasceram dela e nenhum contra ela. As correntes revolucionárias foram substancialmente três: a liberal, interessada em consolidar novos direitos civis e políticos, a socialista, ambicionando estender a revolução ao campo econômico-social, a nacionalista, sonhando com um novo tipo de elo social que se substituísse à antiga lealdade dos súditos ao rei e acabando por encontrá-lo na “identidade nacional”, no sentimento quase animista de união solidária fundada na unidade de raça, de língua, de cultura, de território. A síntese das três foi resumida no lema: Liberdade-Igualdade-Fraternidade.

A conjuração igualitarista de Babeuf e seu esmagamento marcaram a ruptura entre os dois primeiros ideais, anunciando duzentos anos de competição entre revolução capitalista e revolução comunista. Que cada uma acuse a outra de reacionária, nada mais natural: na disputa de poder entre os revolucionários, ganha aquele que melhor conseguir limpar sua imagem de toda contaminação com a lembrança do “Ancien Régime”. Mas para limpar-se do passado é preciso sujá-lo, e nisto concorrem, com criatividade transbordante, os propagandistas dos dois lados: as terras da Igreja, garantia de subsistência dos pobres, tornam-se retroativamente hedionda exploração feudal; a prosperidade geral francesa, causa imediata da ascensão social dos burgueses, torna-se o mito da miséria crescente que teria produzido a insurreição dos pobres; a expoliação dos pequenos proprietários pela nova classe de burocratas que se substituíra às administrações locais (e que aderiu em massa à revolução) se torna um crime dos senhores feudais. A imagem popular da Revolução ainda é amplamente baseada nessas mentiras grossas, para cuja credibilidade contribuiu o fato de que fossem apregoadas simultaneamente por dois partidos inimigos.

A terceira facção, nacionalista, passa a encarnar quase monopolisticamente o espírito revolucionário na fase da luta pelas independências nacionais e coloniais (o Brasil nasceu disso). A parceria com as outras duas transforma-se, aos poucos, em concorrência e hostilidade abertas, incentivadas, aqui e ali, pelas alianças ocasionais entre os revolucionários nacionalistas e os monarcas locais destronados pelo império napoleônico.

Pelo fim do século XIX, as revoluções liberais tinham acabado, os regimes liberais entravam na fase de modernização pacífica. O liberalismo triunfante podia agora reabsorver valores religiosos e morais sobreviventes do antigo regime, tornados inofensivos pela supressão de suas bases sociais e econômicas. Ele já não se incomodava de personificar a “direita” aos olhos das duas concorrentes revolucionárias, rebatizadas “comunismo soviético” e “nazifascismo”. Assim começou a luta de morte entre a revolução socialista e a revolução nacionalista, cada uma acusando a outra de cumplicidade com a “reação” liberal.

Essa é a história. O leitor está livre para tentar orientar-se entre os dados, sempre complexos e ambíguos, da realidade histórica, ou para optar pelas simplificações mutiladoras. A primeira opção fará dele um chato, um perverso, um autoritário, sempre a exigir que as opiniões, essas esvoaçantes criaturas da liberdade humana, sejam atadas com correntes de chumbo ao chão cinzento dos fatos. A segunda opção terá a vantagem de torná-lo uma pessoa simpática e comunicativa, bem aceita como igual na comunidade tagarela e saltitante dos símios acadêmicos.

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