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90 anos em 9 segundos

 Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, São Paulo, 14 de setembro de 2000

“No início da era cristã, a filosofia adormeceu. Seus cochilos acabaram por produzir o sonho filosófico conhecido como escolástica, que tinha por base Aristóteles e os ensinamentos da Igreja. A filosofia foi rudemente despertada desses devaneios medievais no século 17 pela chegada de Descartes, com sua declaração `Cogito, ergo sum’ (Penso, logo existo). Uma era de esclarecimento havia começado: o conhecimento baseava-se na razão.”

(Paul Strathern, Nietzsche em 90 minutos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997.)

O livro que traz essa afirmação, escrito para jovens, é hoje abundantemente distribuído entre estudantes do ensino médio. Quem quer que ingresse no estudo da filosofia por meio dele levará consigo, provavelmente pelo resto da vida útil do seu intelecto, um escotoma, um ponto cego bem no meio do seu horizonte de visão. Nada tem mais força hipnótica sobre as mentes juvenis do que um tacanho preconceito revestido da aura de uma verdade libertária. Uma vez introjetado o esquema do sr. Strathern, o cérebro do leitor já não poderá ser reconduzido à normalidade nem mesmo pela improvável leitura direta dos textos aludidos – porque os textos escolásticos estarão acima da capacidade de quem aprendeu filosofia com o sr. Strathern e os de Descartes serão lidos na linha sugerida pelo sr. Strathern.

Na realidade, o que ele diz é o contrário do que se encontra nos textos. Nas célebres Meditações de Filosofia Primeira, René Descartes, em busca da certeza absoluta, fundamento de todas as ciências, encontra como primeiro e inabalável ponto de apoio a certeza do próprio pensamento. Se penso, existo, ao menos enquanto penso. Não posso pensar e, ao mesmo tempo, negar que existo. Tal é a descoberta que ele enuncia no “Cogito ergo sum”. Só que, em seguida, ele percebe que dessa certeza puramente subjetiva ele não pode deduzir nada sobre o mundo exterior, nem mesmo a existência de um universo físico em torno. Preso na sua jaula solipsista, Descartes constata que, para sair dela, precisa de uma segunda certeza: a certeza do mundo físico. E onde ele vai buscá-la? Vai buscá-la no seguinte argumento: se tenho em mim o sentimento da existência do mundo exterior e se este sentimento não pode ser deduzido de mim mesmo, isto é, da certeza inicial do “cogito”, então só pode ter sido posto na minha alma pelo próprio Deus; e, como Deus é bom, não iria me enganar infundindo-me a certeza de coisas erradas. Logo, fica provado que o mundo exterior existe.

Compreenderam bem? Numa só penada, o devoto milico aposentado, que acabara de fazer uma peregrinação à Igreja de Nossa Senhora de Loreto para pedir inspiração, faz, não da razão, mas da fé cega na bondade de Deus, a base da certeza do mundo exterior, o princípio de todo conhecimento objetivo, o fundamento das ciências da natureza. É um monumental exagero de carolice a que nem o mais piedoso dos escolásticos jamais ousaria chegar, de vez que todos estavam advertidos, pelo menos desde Boécio (século 6) da necessidade de depurar a fé no cadinho da razão.

Por isso mesmo, F. W. von Schelling, um dos gigantes da modernidade, sobre o qual aliás não poderia pesar a menor suspeita de ser católico, dizia que, na passagem da escolástica ao cartesianismo, a filosofia tinha caído para um nível pueril. Leibniz, de maneira mais delicada, afirmava a mesma coisa, e também Husserl, entre homenagens de praxe a René Descartes, deixava claro não compactuar com o que chamava, pejorativamente, “exercícios de cinegética antiescolástica”.

Está claro que o sr. Strathern, seja ele quem for, jamais leu Descartes. Seu Descartes não é o filósofo de carne e osso, autor do Discurso do Método e das Meditações. É uma imagem popular, colhida na cultura de almanaque e reproduzida em milhões de almanaques para a imbecilização geral dos jovens.

Para metê-la no miolo mole de um ginasiano distraído, não é preciso nem os 90 minutos mencionados no título: sua ação cretinizante é instantânea, seu efeito, duradouro. Em nove segundos o leitor terá a garantia de, pelos 90 anos seguintes, não compreender nem René Descartes, nem a escolástica, nem, a rigor, coisa nenhuma.

No entanto, não é somente pela sua facilidade de absorção que o ensinamento do sr. Strathern será bem recebido. É também porque coincide, no tom geral, com o discurso anticatólico cuja repetição psitacídea é a condição inicial para, nas classes falantes, um sujeito ser admitido como espírito esclarecido.

E é assim que, de esclarecimento em esclarecimento, com a ajuda de solícitas professorinhas e devotados jornalistas culturais, a burrice, cada vez mais, rege o mundo.

Astúcias Indígenas

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 31 de agosto de 2000

Os índios que anarquizaram os festejos de 500 anos de Brasil e foram reprimidos pela polícia estão exigindo uma indenização bilionária. Um dos pretextos é: “danos culturais”. Mas quanto o Estado deveria cobrar deles pelo dano que, a serviço de potências estrangeiras, infligem à cultura nacional ao negar publicamente a legitimidade da existência do Brasil enquanto nação? Sim, quando proclamam que o território é deles, que todos os que viemos nas caravelas ou nas levas de imigrantes somos intrusos e usurpadores, o que reivindicam é a reintegração de posse do maior latifúndio que já existiu na face da Terra, e a conseqüente dissolução do Estado indevidamente instalado na sua propriedade por um bando de posseiros, arrivistas e criminosos.
Um Estado que aceita discutir nesses termos não precisa nem mesmo ser destruído: ele já acabou. Pois o protesto dos índios não se voltou contra o governo, contra o regime, contra esta ou aquela lei: voltou-se, com toda a força de uma irracionalidade fingida, contra a civilização brasileira no todo – excetuado o elemento indígena – e portanto contra a existência do organismo estatal que é a cristalização jurídica e política da sua obra de cinco séculos. Que o façam de maneira acentuadamente paradoxal, abrigando-se à sombra das leis de um Estado soberano para negar a soberania do mesmo Estado, é um curto-circuito lógico que poderia ser atribuído à ingenuidade pretensiosa de povos ainda mal despertos para as realidades complexas da civilização moderna, se não fosse antes um nonsense planejado, obra da astúcia dos estrategistas europeus e norte-americanos que os orientam, todos eles bem treinados na técnica de suscitar crises pela estimulação contraditória da opinião pública, na arte de desarmar a reação de um povo pelo choque dos sofismas paralisantes. Criar “movimentos sociais” no Terceiro Mundo é hoje uma profissão especializada, ensinada a alunos europeus e norte-americanos em cursos de alto nível nos organismos internacionais. Nenhuma, absolutamente nenhuma reivindicação ou agitação se elevou neste país nos últimos vinte anos sem ser planejada por engenheiros sociais estrangeiros, subdiada por fundações e governos estrangeiros, respaldada pela mídia estrangeira e enquadrada meticulosamente numa estratégia global em que os interesses dos reclamantes entram apenas como gatilhos para desencadear transformações que vão muito além do que esses enfezados marionetes possam imaginar.
Cada um desses movimentos é pura chantagem, calculada para desferir um golpe mortal na soberania do Estado brasileiro. É mais um passo na marcha incessante e brutal de centralização, onde um poder maior, com pretensões ao monopólio, dissolve os poderes intermediários com a ajuda dos grupos menores, descontentes com a situação local.

Já escrevi, outrora, em defesa das culturas indígenas. Mas, hoje, discutir a justiça ou injustiça da causa indígena em abstrato e fora do contexto político mundial é cair num engodo lógico, num jogo de diversionismo hipnótico. Ninguém que queira justiça começa por negar a autoridade do próprio tribunal ao qual recorre. O que os índios e seus mentores estão exigindo não é justiça: é a destruição do tribunal.
A manifestação ocorrida nos festejos tem as marcas inconfundíveis de uma operação planejada por cientistas comportamentais para gerar artificialmente um constrangimento sem saída: permiti-la seria dar caráter oficial à negação da legitimidade do Estado brasileiro; reprimi-la é expor-se a humilhações na mídia internacional e a chicanas jurídicas como esse grotesco pedido de indenização.
Os índios, um dia, foram povos indefesos, que só sobreviveram à derrota graças à generosidade do vencedor, generosidade que eles próprios jamais tiveram para com as tribos que guerreavam. Hoje, eles são uma arma temível nas mãos das potências que regem o mundo, e aproveitam-se dessa situação para tirar vantagens abusivas e destruir o Estado que os acolheu e lhes deu direitos especiais. A malícia de sua estratégia revela que já não têm mais nada do pretenso caráter “primitivo” que um dia justificou a promulgação desses direitos: alcançaram a maioridade, tornaram-se um grupo político moderno, astucioso e perigoso, aliado de interesses imperialistas e inimigo jurado da nação brasileira.

Libertinos e opressores

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, São Paulo, 17 de agosto de 2000

Com razão imputa-se a todo autor de escritos anti-semitas uma responsabilidade moral pelo massacre dos judeus na Alemanha nazista. Mas há uma obstinada recusa de perceber idêntica relação de causa e efeito entre a maciça propaganda anticristã dos três últimos séculos e as ondas de perseguição religiosa que, entre as revoluções francesa, mexicana, espanhola, russa e chinesa mataram, segundo o mais comedido dos cálculos, 20 milhões de cristãos. Essa cegueira intencional é tanto mais indesculpável quando se sabe que, em vez de haver no caso uma simples confluência acidental das palavras de uns e dos atos de outros, os ataques verbais e a violência física partiram sempre da mesma fonte: as lideranças revolucionárias que pretenderam, nas palavras de Lenin, “varrer o cristianismo da face da terra”.

É evidente que o efeito acumulado de acusações, assaltos polêmicos, reportagens histéricas, sátiras e chacotas, romances, peças e filmes de escândalo apaga os traços humanos do rosto da sua vítima, transformando-a numa coisa entre desprezível e monstruosa, ao mesmo tempo que dessensibiliza o público, preparando-o para aceitar como normais e corriqueiras as crueldades que venham a se fazer contra ela.

A mais grotesca e perversa forma de propaganda anticristã é a exploração da curiosidade adolescente em torno da vida sexual de padres e freiras. É natural que a imaginação fantasiosa de um jovem tímido, ardente de desejos insatisfeitos, faça das pessoas submetidas ao voto de castidade um símbolo ampliado de sua própria frustração, e as conceba como bacantes encarceradas, a gemer e espumar de luxúria entre as correntes. É natural que o imbecil juvenil imagine um bordel nos porões de cada claustro, e não possa pensar em freiras sem ser sacudido por violentas ereções. Mas a era moderna fez disso um gênero literário, uma tradição artística, que de Diderot, Sade e Laclos até o cinema de Buñuel e Kawalerowicz adornou de pretextos chiques uma concepção pueril e analfabeta da vida religiosa.

Daí nasce a hipocrisia que, fazendo-se de defensora da liberdade, apresenta os religiosos como vítimas de repressão injusta e brutal, como se a vida monástica lhes fosse penalidade imposta à força e não vocação que, antes de traduzir-se em compromisso, deve passar por toda sorte de testes e barreiras dissuasórias.

IstoÉ acaba de entrar para a biblioteca da subliteratura erótico-monástica, com um número especial de “sex lib” anticlerical suscitado pela edição do livro autobiográfico Outros Hábitos (Editora Garamond), de Anna França, uma ex-religiosa em cujo cabedal de experiências espirituais se destaca um caso de amor lésbico com a então superiora do seu convento.

A revista não esconde sua simpatia por dona Anna, chamando-a “destemida”, como se fosse preciso destemor para desafiar, com respaldo da mídia, da moda, do Estado e de todos os bem-pensantes, uma Igreja que já não pode se defender senão pelas folhas de jornalecos de paróquia…

Todo o enfoque da coisa é, aí, mais que perverso: é inverso. Mas a inversão não está só na atitude geral, e sim no conteúdo mesmo dos fatos apresentados. Dona Anna conta que no convento havia casaisinhos de namoradas bem à mostra, porém jamais reprimidos porque a sapatão-em-chefe era afinal a autoridade reinante, a quem ninguém ousaria contrariar, além de ser pessoa de posses cujas doações calavam muitas consciências. Só que, após narrar esses fatos que falam por si, dona Anna quer que digam o contrário do que dizem. Apresenta-os como uma denúncia contra a Igreja, quando a Igreja é, no caso, manifestamente a vítima da prepotência e do oportunismo de uma lésbica que se infiltra nela para aproveitar-se da autoridade da instituição e usá-la para a satisfação egoísta de desejos pessoais sobrepostos ao dever, como professores se aproveitam de seus alunos, sargentos de seus recrutas, patrões de seus empregados. Casos como esses não são incomuns. Serão argumentos contra a moral conservadora? Ou contra o autoritarismo onipotente de libertinos que, a refrear um pouco seus desejos, prefeririam ver perecer meia humanidade? Contem o número de mortos das revoluções insufladas por esses libertinos e digam-me quem, nessa epopéia hedionda, é o oprimido, quem o opressor. Ou, para simplificar, digam-me apenas o que IstoÉ e o resto da mídia fariam com a Igreja se, em vez de deixar aquela madre instalar no convento sua ilha particular das Amazonas, ela punisse com a expulsão sua conduta imoral.

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