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Prelúdio ao suicídio

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 18 de janeiro de 2001

Uma prova notável da cretinice vigente é o número de pessoas, na imprensa, nas universidades ou em toda parte, que imaginam que o puro ódio político que sentem por mim as investe de autoridade bastante para negar-me o estatuto de filósofo mediante o simples acréscimo de aspas ou de alguma expressão pejorativa ao termo que o designa, sem jamais se perguntar se elas próprias estariam habilitadas, já não digo a discutir, mas simplesmente a ler e compreender por alto algum de meus livros de filosofia – uma qualificação que, por mistério, lhes parece totalmente dispensável no caso.

Ao multiplicar-se o número de episódios que a ilustram, essa auto-atribuição de autoridade intelectual por parte de sujeitos obviamente despreparados para as mais elementares tarefas de uma vida de estudos assinala, mais que uma inusitada arrogância coletiva, uma grave perda geral do senso de realidade, do senso das proporções. Ultrapassado um certo limite, a ignorância pretensiosa deixa de ser um estado transitório de feiúra moral associado à má formação intelectual, e se torna um desvio de personalidade, um tipo de sociopatia.

Não conheço, no presente panorama mental brasileiro, sintoma mais alarmante e mais digno de estudo.

Não é normal, na imprensa do mundo, que um escritor que se dirige à parte mais culta do público desperte tanto interesse e tanta raiva na outra parte, a ponto de centenas de iletrados lhe enviarem cartas furiosas, onde as ameaças de processo judicial e de agressão física se mesclam pateticamente a todos os palavrões do idioma, complementados pela surpreendente assertiva de que o destinatário – não o remetente – é sujeito grosseiro e sem educação.

Um detalhe interessante é a repetição obsessiva de slogans e lugares-comuns do jargão esquerdista. Aparecendo justamente nas mensagens que com mais vigor condenam o meu antiesquerdismo como uma obsessão de chutar gatos mortos, a coisa soa como um eloqüente coro de miados num cemitério felino. E nunca um só desses defuntos miantes deu o menor sinal de perceber que seu próprio falatório dava a prova da falsidade do que alegava. A perda da sensibilidade lingüística acompanha “pari passu” a ascensão do simplismo fanático e da imbecilização moral.

Talvez ainda mais estranha é a convicção, que em muitos desses indivíduos parece totalmente sincera, de possuir, além daquela tremenda autoridade intelectual, também um significativo poder de intimidação. Escrevem, de fato, no tom feroz de quem espera que o destinatário, lendo, fique paralisado de medo ante um imponderável perigo iminente, desista de publicar artigos e, quem sabe, até mesmo se desmaterialize em pleno ar.

Muitas dessas pessoas, numa situação normal, nem mesmo leriam meus artigos, os quais obviamente não foram feitos para elas. Se não os lessem, nenhuma falta fariam ao autor, que conta com a compreensão e a simpatia de outras – e mais vastas – faixas de público. Por que então os lêem, se cada leitura as precipita numa crise de raiva que culmina numa auto-eletrocução verbal?

Tudo isso é fantástico, espantoso e, numa palavra, dadaísta. A observação, comum nos livros de historiadores, de que análogos fenômenos se observam regularmente nas crises pré-revolucionárias não prova que vai haver uma revolução no Brasil, mas sugere que uma parcela significativa da população falante já está em pleno transe de estupidez revolucionária, prelúdio do suicídio nacional.

Lógica da moral

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 4 de janeiro de 2001

Se há um princípio moral universal, é aquele que, para abreviar, chamarei “princípio de autoria”: cada um é autor de seus atos. Esta obviedade suprema tem conseqüências que, embora sejam igualmente óbvias, muitas vezes são negadas na prática. A ocorrência desse fenômeno assinala, nas pessoas envolvidas, uma consciência moral frouxa e autocomplacente. Quem quer que negue implicitamente o princípio de autoria falseia toda a moralidade.

Mas, justamente porque as deduções lógicas no caso são bem fáceis de fazer, e de fato se fazem quase que por instinto, é evidente que o falseamento delas, quando ocorre, raramente se dá por simples erro lógico, mas denota quase sempre, no autor do juízo, algum fundo falso. Não por coincidência, as pessoas moralmente frouxas são as que mais se apressam a emitir juízos morais severos com pouco conhecimento de causa. Invariavelmente, acabam caindo na negação do princípio de autoria, e assim revelam a imoralidade de suas intenções por trás de sua máscara de probidade. São pessoas que carregam por dentro a angústia difusa de culpas mal conscientizadas, das quais buscam aliviar-se mediante acusações a terceiros. A política é o campo preferencial de atuação desses falsos moralistas, porque em política sempre se pode falar de maneira ambígua e irresponsável, procurando por exemplo atingir pessoas determinadas e concretas através de acusações genéricas a entidades abstratas e indeterminadas (classes sociais, modelos econômicos), tentando dar à mera responsabilidade política a conotação de grave culpa moral pessoal, etc.

Se cada um só está obrigado, em princípio, a responder por seus próprios atos, é também um ato assumir livremente a responsabilidade por atos alheios, como os cônjuges se responsabilizam mutuamente por suas obrigações econômicas, ao casar-se. As responsabilidades do indivíduo podem estender-se em círculos concêntricos cada vez mais amplos, indo das obrigações mais diretas, absolutas e incondicionais às mais indiretas, abstratas e relativas, como a do governante que, pela “ética da responsabilidade” weberiana, deve assumir a culpa até mesmo pelos resultados mais indesejados e imprevisíveis de suas decisões, tornando-se então “politicamente” culpado sem verdadeira culpa moral pessoal.

Essa escala que vai da responsabilidade pessoal direta até a responsabilidade indireta e quase simbólica é bastante fácil de apreender e, como eu já disse, é de fato apreendida quase instintivamente… exceto quando o desejo de inculpar é mais forte que a razão. Neste caso, muito freqüente na política, uma linguagem de imputação moral direta é usada contra um acusado que não poderia ter responsabilidade pessoal concreta nos fatos em questão, como por exemplo quando o criador de uma política econômica desastrada (supondo-se que ela o seja mesmo) é chamado de “assassino” por conta de uma complexa conjetura estatística que associa “índices de desemprego” a “índices de mortalidade” e, num salto lógico formidável, atribui a esse indivíduo a autoria de não sei quantas mortes.

Esse tipo de retórica é um evidente charlatanismo, e seu usuário deve ser considerado, desde logo, desqualificado para opinar em questões morais. Por exemplo, os autores do Livro Negro do Capitalismo, paródia grotesca do Livro Negro do Comunismo, procuram nivelar, como igualmente abomináveis, as execuções de dissidentes decretadas pessoalmente por Stalin e Fidel Castro e as mortes por desnutrição acontecidas na África ou na Ásia e atribuídas, mediante longas cadeias de conjeturações econômicas, a efeitos indiretos de políticas econômicas adotadas nos países ricos. Esse nivelamento nega, na base, o princípio de autoria, e não é desculpável como mero erro de lógica cometido com boas intenções. Os responsáveis por esse tipo de propaganda desmascaram-se, no ato, como pessoas moralmente escorregadias e indignas de confiança.

Similarmente, o homem que, nada tendo cedido de seus bens aos pobres, discursa iradamente contra governantes que não tomaram tais ou quais medidas que no seu entender eliminariam a pobreza está aplicando o princípio de autoria de maneira dúplice e autocontraditória: desobrigando-se de fazer pelos desamparados o pouco que está ao seu alcance, ele cobra o muito que supõe estar ao alcance de outros, autonomeando-se assim um juiz mais habilitado a julgar aquilo que só conhece por conjetura do que aquilo que sabe por experiência direta. Quanto mais esse indivíduo discursar contra os outros, mais estará se desmascarando a si próprio.

Reale ante os medíocres

 

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 21 de dezembro de 2000

Ao longo dos últimos anos, Miguel Reale raramente foi mencionado nos jornais ou na tevê sem que viesse à baila, de novo e de novo, obsessivamente, sua ligação de juventude com o integralismo. Recentemente, nas comemorações de seus 90 anos, o grande jurista e filósofo foi submetido mais algumas vezes a esse ritual humilhante e insensato.

O integralismo foi um fascismo abrandado e inofensivo, um ultranacionalismo sem racismo, que celebrava a glória de índios, negros e caboclos. Entre os líderes do movimento havia, é verdade, um anti-semita declarado, o excêntrico historiador e cronista Gustavo Barroso, maluco não desprovido de talento, várias vezes presidente da Academia Brasileira. Mas, quando começou para valer a perseguição aos judeus na Alemanha e todos os bem-pensantes do mundo fizeram vistas grossas, foi do chefe supremo do integralismo, Plínio Salgado, que partiu uma das primeiras mensagens de protesto que chegaram à mesa do Führer (e na certa foi direto para o lixo). Se os educadores deste país tivessem vergonha na cara, esse feito quixotesco seria alardeado com orgulho em todas as escolas – não por seus efeitos políticos, que foram nulos, mas como símbolo do espírito de um povo que nunca deixou seus melhores sentimentos serem sacrificados no altar de fanatismos ideológicos.

Em vez disso, tratamos de escondê-lo, para dar a criaturas inocentes e honradas o ar sinistro de cúmplices de Hitler. Fazemos isso sob a inspiração de educadores e intelectuais comunistas, que precisam mentir e caluniar o tempo todo para disfarçar a co-autoria comunista de muitos dos crimes do nazismo entre 1933 e 1941.

Os escritos de Plínio hoje nos parecem melosos e de um hiperbolismo delirante. Politicamente, seu único pecado é a completa tolice. Moralmente, são inatacáveis. Ademais, o integralismo era católico – e sob o nazismo os católicos, convém não esquecer, eram o terceiro grupo na lista dos candidatos ao campo de concentração, depois dos judeus e dos politicamente inconvenientes (v. Robert Royal, Catholic Martyrs of the XXth Century, New York, Crossroad, 2000).

Que vergonha existe em ter seguido esse líder? Nenhuma, evidentemente.

Porém, se um homem é induzido a explicar isso de novo e de novo e de novo, como um suspeito num interrogatório policial, ele acabará sempre dando a impressão de que está escondendo alguma coisa. E é essa impressão que nossos solícitos repórteres esquerdistas buscam criar em torno de Miguel Reale.

Ninguém no mundo merece esse tratamento. Mas quando a intelectualidade bem-pensante se reúne para aplicá-lo a um sábio nonagenário a quem a Nação deve algumas de suas maiores conquistas no campo das ciências humanas, então é de suspeitar que estamos diante da velha conspiração dos medíocres que enxergam no gênio alheio a mais intolerável das afrontas.

No entanto, como a loucura de Hamlet, essa mediocridade tem método. A malícia, a perversidade e a baixeza do seu ardil, cujo uso se tornou institucional ao ponto de a breve militância integralista ser mais destacada na imagem pública de Miguel Reale do que as seis décadas e meia de formidáveis realizações intelectuais que se lhe seguiram, mostram a que ponto não só as idéias comunistas, mas até os hábitos e reflexos da mente comunista se impregnaram no modo de ser dos nossos jornalistas e da nossa classe letrada em geral.

Mesmo pessoas que já não aprovam conscientemente o marxismo são presas desses hábitos. Após 40 anos seguidos de “trabalho de base” nas redações, sem encontrar a menor resistência, os comunistas conseguiram impor seus critérios ideológicos como se fossem a única norma existente, a única norma possível do bom jornalismo. Se nossa imprensa não sabe falar de Miguel Reale sem uma genuflexão prévia ante o altar dos preconceitos esquerdistas, é simplesmente porque, nisso como em tudo o mais, ela simplesmente se habituou à troca rotineira da informação pela desinformação. Hoje em dia, milhares de jornalistas que de comunistas não têm nada subscreveriam com a maior tranqüilidade a seguinte declaração: “A missão da imprensa é minar, pela crítica, as instituições vigentes” – sem saber que a frase é de Karl Marx e que ela não é uma receita de jornalismo e sim de revolução comunista. Por isso, quando pensam estar fazendo jornalismo, estão apenas ajudando o comunismo a sair do túmulo e a colocar em seu lugar, no jazigo vazio, o Brasil.

Por ter escapado a esse cacoete vulgar, atendo-se a discutir a obra do filósofo no plano que lhe corresponde autenticamente, o caderno especial do JT consagrado a Miguel Reale, semanas atrás, se destacou como um momento especialmente nobre na história do nosso jornalismo, à altura, pelo menos, da nobreza do homenageado.

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