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Terríveis mamães

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 24 de maio de 2001

Todo mundo sabe – e os testemunhos psicanalíticos e psiquiátricos o confirmam abundantemente – que uma grande fonte de sofrimentos humanos é a possessividade materna. Muitas mulheres têm, de fato, uma dificuldade de reconhecer em seus filhos criaturas independentes. Vêem-nos como propriedades pessoais e adornos destinados ao seu próprio embelezamento subjetivo.

A revolução psicológica dos anos 60, que muito contribuiu para minar a autoridade familiar e que é geralmente celebrada na intelectualidade progressista como um momento importante na libertação do ser humano, insistiu muito nisso.

No entanto, dessa mesma revolução psicológica nasceu a forma atual e radicalizada de reivindicação feminista que, de maneira aparentemente paradoxal, restabelece a possessividade materna em níveis jamais ambicionados pela mais ciumenta mamãe italiana ou judia – e não falo das mamães italianas e judias reais, mas da sua versão piadística grotescamente ampliada.

A reivindicação do poder materno absoluto começa a raiar o monstruoso no momento em que as mulheres, quando querem ter filhos a despeito de algum obstáculo natural, recorrem a arriscadas manipulações genéticas de moralidade duvidosa, ao passo que outras, para livrar-se dos seus depois de os ter gerado, se permitem assassiná-los em massa pelo aborto legalizado.

Em ambos esses casos extremos – opostos só em aparência –, a exigência feminina de poder sobre o próprio corpo amplia-se numa reivindicação de onipotência sobre a vida e a morte de outrem.

Em ambos os casos, a vaidade pueril e o egoísmo grosseiro sobrepõem-se imperiosamente à consideração da simples possibilidade teórica de que seus filhos possam ser algo mais do que meios genéticos de satisfação pessoal de suas mães.

A exploração da vaidade feminina por meio da lisonja é o mais velho expediente dos manipuladores ambiciosos. O antepassado de todos eles, caso alguém não se lembre, já aparece no Gênesis prometendo poder a Eva.

Apenas, a evolução da técnica médica e dos meios de influência psíquica pelos meios de comunicação de massa deu a essa promessa um alcance estratégico jamais sonhado, fazendo dela uma ameaça iminente de abolição do senso moral mais elementar em toda a fração feminina da Humanidade.

A mulher imbuída do “direito” de produzir ou matar seus filhos a seu bel-prazer é, na melhor das hipóteses, uma sociopata, na qual o desejo de posse e a ambição de poder se sobrepuseram aos sentimentos de base que constituem a condição “sine qua non” da vida familiar, da decência e do amor pessoal.

A adoção universal da nova moral ultrafeminista será uma catástrofe civilizacional de proporções assustadoras.

Muito provavelmente, a natureza feminina reagirá por si mesma contra essa brutal mutação psíquica que lhe querem impor, e a nova moral do poder materno absoluto não passará de um projeto insano, abortado nas pranchetas dos engenheiros sociais que a conceberam.

Mas a natureza, para agir com plena eficácia, tem de ser ajudada pela cultura. Uma guerra cultural tem de ser travada em defesa dos sentimentos maternos sãos e contra a oferta de fazer de cada mãe uma deusa, investida do poder de vida e morte sobre seus filhos.

Lições de moral

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 10 de maio de 2001

Dentro da linha de raciocínio segundo a qual os traficantes não são traficantes porque querem, mas porque nós os obrigamos a sê-lo, o cineasta Breno Silveira, ao anunciar o filme que está fazendo para mostrar que a Falange Vermelha é quase uma instituição de caridade, contou à Folha de S. Paulo de 2 de maio que conheceu Marcinho VP durante uma filmagem no morro Dona Marta, no Rio de Janeiro. O futuro detento do presídio de segurança máxima do Bangu tinha então 12 anos e trabalhava carregando os equipamentos da equipe cinematográfica: “Aquela foi uma experiência que me marcou muito. Eu me lembro de um depoimento bonito do Marcinho VP, em que ele afirmava que gostaria de ser advogado, mas que a vida, com certeza, não iria deixar.”

Curioso. Um de meus melhores amigos, o escritor Ronaldo Alves, nasceu no morro da Rocinha – mil vezes pior que o Dona Marta -, cresceu entre bandidos e quis se tornar advogado. A vida obviamente não o deixou, mas ele foi assim mesmo. Nunca roubou um palito de fósforo. Enquanto os meninos da vizinhança jogavam pelada e faziam troca-troca, ele estudava.

Coisa análoga posso dizer de mim mesmo, que na infância, embora criado entre cidadãos pacatos num bairro operário, conheci tanto quanto Marcinho VP a miséria, a fome, a indiferença do mundo, somando-se a isso a doença que só me largou na idade adulta.

Não consigo sentir dó desses sujeitos que dizem que ficaram pérfidos ou burros porque tiveram um mau começo de vida. Pois em geral eles começaram melhor que eu.

Mais curioso ainda é que nem eu nem Ronaldo tivemos a chance de conviver, logo na entrada da adolescência, com gente do show business que nos pudesse abrir a perspectiva de uma existência mais alta. O ambiente de compressiva mediocridade em que fomos criados não teve essa abertura luminosa. Ali sofremos decerto mais zombaria e discriminação por nossa mania de estudar do que Marcinho VP por sua inclinação ao crime.

Mas supremamente curioso é o critério moral com que Breno Silveira julga a sociedade e a si mesmo. Juro que, se um garoto da favela fosse meu ajudante por um só dia – não tenho equipamentos de filmagem, mas ele poderia, digamos, ajeitar meus livros nas estantes -, eu não o largaria enquanto não tivesse a certeza de haver feito por ele tudo o que estivesse ao meu alcance para encaminhá-lo melhor na vida. Eu faria isso ainda que ele não tivesse me contado o que queria ser quando crescesse. Se me contasse, então, eu compreenderia no ato que não se tratava de um “depoimento”, por mais interessante que parecesse, mas de um apelo. Quando um menino pobre nos conta seus sonhos de futuro, ele não está enriquecendo nossa memória de artista: está pedindo socorro. Sei disso porque um dia também contei meus sonhos – e ninguém ligou a mínima. Nem por isso achei que tinha o direito de me vingar, mais tarde, vendendo tóxicos a crianças. Breno Silveira, com suas câmeras e holofotes, passou pela vida de Marcinho VP e não deixou marcas.

Marcinho foi quem deixou um “depoimento bonito” para adornar as memórias do cineasta. Substancial contribuição: Breno pode agora sacá-la do baú e, do alto de sua autoridade moral de membro da elite esquerdista, julgar e condenar os que não fizeram pelo menino do morro Dona Marta o que ele também não fez. Com a diferença de que a eles o menino nunca pediu nada.

O contraste não poderia ser maior com a atitude de Walter Salles, o diretor de Central do Brasil, que, encontrando um menino pobre que aliás não lhe pedia nada, lhe ofereceu emprego num filme que mudou sua vida. Um filme que, como o de Breno Silveira, também mostra miséria e sofrimento, mas não faz dos bandidos vítimas e não transmite nenhuma lição de moral além daquela da qual o próprio Walter Salles deu exemplo – aquela lição que, segundo Goethe, resume todo o dever do homem: ser digno, prestativo e bom. A quem não quer ou não pode ser essas coisas resta o consolo moral de falar mal da sociedade. É isso o que, no Brasil de hoje, se chama “ética”. Por isso acho que o filme de Breno Silveira não deveria nem ser feito.

Ninguém precisa desse tipo de preleções de ética. Mas há um bocado de Marcinhos VP em potencial que precisam do dinheiro dessa produção para ter a chance de uma vida nova.

O palanque e as chinelas

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 26 de abril de 2001

Éric Weil, filósofo judeu-alemão que em protesto contra Hitler abandonou o uso do idioma natal e se tornou um clássico da língua francesa, enunciou nela esta verdade escandalosa: “Em política, o único ponto de vista legítimo é o do governante.” As mentes incapazes de abstração podem ler isso como um apelo à obediência servil. Mas o que Weil quis dizer é que o cidadão que opine sobre política sem se colocar em imaginação na pele do governante, sem assumir no plano moral subjetivo as responsabilidades com que ele teria de arcar politicamente caso agisse segundo essa opinião, é apenas um tagarela que não tem o direito de ser ouvido pela comunidade. Esta norma é válida, inclusive, para opiniões políticas que não digam respeito ao conjunto da sociedade, mas apenas a aspectos determinados e parciais dela, pois mesmo ações de governo limitadas a esses aspectos afetariam a sociedade toda e seriam por ela julgadas.

A sucessão de decepções que o Brasil tem tido com seus governantes, cada qual tão hábil em censurar os erros de seu antecessor quanto propenso a cometê-los ainda piores quando sobe ao poder, mostra que essa exigência elementar da moralidade intelectual é completamente desatendida entre nós.

Os políticos de carreira, candidatos a cargos eletivos, são tão incapazes de imaginar-se na posição do governante quando o criticam que, quando chega o dia de substituí-lo no cargo, estão completamente despreparados para o papel: tão logo assumem o governo, descobrem um outro mundo, imprevisto e rebelde a seus planos, que nem de longe haviam previsto quando pontificavam do alto das tribunas da oposição. E então, sonsos e desorientados, cometem erro atrás de erro.

Mas, se até os políticos são assim, que dizer do cidadão comum e, sobretudo, dessa classe especial de cidadãos que são os intelectuais, os críticos de tudo, os opinadores profissionais entre os quais me incluo? Cada qual, aí, se crê no direito de julgar em nome de ideais abstratos e critérios hipotéticos de perfeição, sem ter na mínima conta as dificuldades reais da situação concreta. Pior ainda, ninguém, ao opinar sobre problemas nacionais, se atém ao domínio daquilo em que pode interferir pessoalmente. O professor não se contenta em opinar sobre o que ele e seus pares devem ensinar, o escritor sobre o que os escritores podem fazer para escrever melhores livros, o jornalista sobre como fazer melhores jornais. Não: cada um, quando abre a boca, tem planos de escala nacional que, para ser executados, supõem no mínimo um poder presidencial. No Brasil só se debate uma coisa: planos de governo – e esses planos nem sequer são planos: são ideais genéricos, puramente verbais, que servem como padrão para julgar e condenar a realidade, mas não se tornar eles próprios uma realidade. Cada brasileiro fala como um presidente virtual, investido de plenos poderes imaginários que, quando os tiver no mundo real, haverá de fazer e acontecer. Ao mesmo tempo, todos se recusam a conceber as dificuldades concretas de exercer o poder, e cobram do governante o que eles próprios, no lugar dele, jamais poderiam fazer. Cada um fala como se tivesse nas mãos o cetro imperial, mas com as responsabilidades de simples cidadão comum, às vezes até menor de idade. O contraste entre a escala macroscópica dos temas e a incapacidade de se elevar, no exame deles, ao “ponto de vista do governante” marca os debates nacionais com os sinais inconfundíveis do puerilismo e da papagaiada histriônica.

Procurando escapar à contaminação desse vício deprimente, tenho evitado opinar em escala propriamente política, atendo-me antes àquilo que entendo que eu e os meus colegas de ofício – escritores, jornalistas, professores – podemos fazer aqui e agora, com o poder que temos. Mesmo quando os temas de meus artigos são estritamente políticos, não discuto aí o que o governante deve fazer, mas o que nós, formadores de opinião, devemos pensar e dizer.

Sou um caso raro de brasileiro desprovido de planos de governo – não os tenho nem para mim nem para quem quer que seja. Tenho planos para uma vida intelectual digna, que sou capaz de realizar na minha escala pessoal e que proponho aos que tenham as mesmas ambições que eu. Mas aquele que assim se atém ao domínio em que pode falar com plena responsabilidade se arrisca a ser totalmente incompreendido. Num país onde todos falam desde cima de um palanque, como poderiam compreender o discurso do sapateiro que não se eleva acima das chinelas?

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