Olavo de Carvalho
O Globo, 24 de junho de 2000
Anterior à definitiva adesão do autor ao ideário liberal, e ainda marcado pelas ressonâncias de sua formação marxista, “Saudades do carnaval. Introdução à crise da cultura” (São Paulo, Forense, 1972) ainda é, para o meu gosto, o melhor livro do inesquecível José Guilherme Merquior. Muitos preferem “A natureza do processo”, mas tenho tantas objeções ao triunfalismo progressista meio hegeliano, meio kantiano, aí assumido pelo autor na maturidade do seu pensamento, que prefiro ficar com a visão histórica mais trágica, frankfurtiana, que entenebrecia as meditações do jovem filósofo.
“Saudades do Carnaval” permanece, até hoje, a mais ambiciosa tentativa de situar uma “interpretação do Brasil” no quadro da história geral das “paidéias” ocidentais – os ideais educativos que vieram, de época em época, orientando e cristalizando os sucessivos esforços da nossa civilização rumo a um modelo ético habilitado a conciliar a organização prática da sociedade com as exigências da dignidade espiritual da espécie humana.
Digo a mais ambiciosa, e não necessariamente a mais séria, porque em seriedade é igualada por sua precursora imediata, “Desenvolvimento e cultura. O problema do estetismo no Brasil”, de Mário Vieira de Mello (São Paulo, Nacional, 1963), a qual, sem tomar esse tema geral por seu objeto explícito, muito fez avançar a sua compreensão ao destacar, na formação da mentalidade das nossas classes letradas, em vez da herança dos grandes ideais ético-pedagógicos, a influência predominante de uma hipnose estética contraída de Jean-Jacques Rousseau, pseudo-ideal educativo que ainda hoje contamina de um viés teatral, posado e desrealizante o grotesco debate “ético” em que se deleita uma “ntelligentzia” microcéfala.
A importância vital dessas duas obras para nós hoje em dia reside precisamente no fato de que, na ausência de uma visão dos modelos superiores de conduta que fundaram a nossa civilização — para não falar das outras — , toda discussão ética tende a se perder em casuísmos e oportunismos de uma baixeza incomparável, invertendo no fim todos os valores e consagrando como exemplos de honradez e quase santidade os politiqueiros mais mesquinhos, os agitadores mais brutais, as estrelas mais ocamente vaidosas do “show business”.
Que de início todas as esperanças se depositassem sonsamente na promessa de “passar o Brasil a limpo” mediante CPIs e cassações, repetindo com signo ideológico inverso as Comissões Gerais de Inquérito do regime militar, mostra apenas a pressa indecente com que um descarado revanchismo, apostando na falta de memória popular, lança mão das armas cujo uso condenava em seus adversários. Mas que, passados doze anos de escândalos, perseguições, demissões e “impeachments”, sem outro resultado visível senão a multiplicação das denúncias e a fixação do país num estado crônico de desprezo a si mesmo, ainda haja quem insista em que “o problema do Brasil é a impunidade” e em que tudo se resolverá com novos acréscimos de ferocidade na autodestruição das instituições, eis um fenômeno que denota, nas nossas classes falantes, já não apenas a recusa obstinada de aprender com a experiência, já não apenas a confiança cega nas virtudes da oratória selvagem, mas, positivamente, uma visceral desonestidade e uma falta completa de amor ao Brasil.
Não existe ética, não existe moral onde não existe amor à verdade, e não existe amor à verdade onde não existe a paciência de buscá-la. Quando os intelectuais abandonam toda investigação séria para consagrar-se à tarefa auto-assumida de “fazer história”, de moldar o mundo à sua imagem e semelhança, de derrubar governos e inventar sociedades, a consciência geral se rebaixa ao nível dos cabos eleitorais e dos incitadores de desordens. Nesse momento, dizia Eric Voegelin, os personagens mais desprezíveis e caricatos, que numa situação normal seriam votados ao esquecimento ou ao ridículo, adquirem súbito relevo como encarnações literais e rasas dos caprichos da multidão enfurecida que, na desorientação geral, se afirmam como um “Ersatz” do bem e da justiça.
Já observei que, em outras épocas, “líder popular” era uma pessoa de extração social humilde que, por seus méritos e esforços pessoais, se elevava acima de seus pares sem perder o elo de fidelidade com o meio de origem. Hoje, ou é um diplomado que se disfarça de proleta, imitando o vestuário e a fala dos pobres (o que é no mínimo um desrespeito), ou é algum filho do acaso, que, vindo de baixo e desfrutando à larga de seu novo padrão de vida, insiste em conservar e alardear com orgulho sua condição originária de pessoa de poucas letras, choramingando sua exclusão do ensino “elitista” e promovendo a identificação, altamente difamatória, da pobreza com a ignorância.
Esses tipos são hoje exibidos à multidão como modelos de vida humana, para a edificação de nossas crianças. Em torno deles, um círculo de intelectuais bajuladores consagra-os como personificações máximas do gênio popular brasileiro. Deprimente e aviltante, esse fenômeno reflete, nas gentes acadêmicas, a perda completa da orientação no universo dos valores e da história.
Levado pelo discurso insano de acadêmicos semiletrados, o Brasil desgarra-se do eixo do mundo, errando num espaço sem fundo onde todas as proporções se embaralham, onde os juízos morais mais óbvios suscitam escândalo e onde o disforme e o obscuro se tornam a medida de todas as coisas.
Eis o motivo pelo qual é urgente retomar os estudos que foram iniciados por José Guilherme Merquior e Mário Vieira de Mello. Ou aprendemos a encaixar as aspirações brasileiras no quadro de critérios éticos universalmente válidos — pois este era o problema que os atormentava –, ou logo não conseguiremos conceber moralidade mais alta que a do delator ressentido que, entre uivos de ódio cívico, envia seus desafetos à guilhotina.