Olavo de Carvalho
O Globo, 20 de julho de 2002
Quê pode haver de mais banal e intranscendente que o bate-boca entre uma policial de trânsito e um cidadão que estacionou o carro em local proibido? É coisa que se repete diariamente milhares de vezes, em todas as capitais do mundo. Quando, portanto, essa ocorrência miudíssima sobe das profundezas abissais da insignificância para as manchetes de jornais, há nisto uma segunda ocorrência que, esta sim, é digna de espanto.
Estacionar em local proibido não é crime, é infração civil — no caso, atenuada pelo fato de que o local era uma rua sem saída e sem tráfego, onde a contravenção não poderia trazer dano a ninguém. O infrator alega que ao protestar contra a multa foi insultado e humilhado pela autoridade policial, a qual assim teria incorrido em crime previsto no art. 140 do Código Penal. Que ao ofendido coubesse em tais circunstâncias o recurso de dar voz de prisão à policial é coisa que nem se discute, de vez que é direito assegurado por lei a qualquer cidadão. Mas isso, é claro, não o eximiria de pagar a devida multa de trânsito.
Não há no caso, portanto, nenhuma dificuldade de ordem jurídica ou lógica. Foram duas infrações, uma civil, outra penal. Se provadas em juízo, cada um paga pela sua, e está liquidada a questão.
Se tão miserável picuinha se tornou objeto de celeuma nacional, foi exclusivamente em razão do especial tratamento jornalístico que a mídia deu ao acontecimento. Em vez de abordá-lo segundo a sua natureza jurídica mais evidente, nossos jornalistas preferiram ver nele uma hipotética tipicidade sociológica, condensada no estereótipo que já virou até título de livro: “Você sabe com quem está falando?”. O desembargador, então, apareceu como a encarnação da autoridade prepotente que, prevalecendo-se do geral temor servil aos importantes e poderosos, se coloca acima das leis e oprime cidadãos indefesos. Para dar maior credibilidade a esse enfoque, havia o providencial physique du rôle: a policial era mulher, negra, jovem e bonita, o desembargador era branco, rico, velho e gordo. Embora não se conceba que insultado por um policial branco o desembargador reagisse de forma diversa, o detalhe racial e estético foi explorado visualmente para obter a persuasão imediata de pessoas que pensam por imagens de impacto imediato, como as vacas e os gansos, em vez de raciocinar como gente. Mas, em princípio, não é impossível que um acontecimento particular coincida em gênero, número e grau com um estereótipo sociológico ou literário. A única maneira de saber se o caso se enquadra ou não no modelo escolhido é analisar a mentalidade dos personagens, para ver se suas reações, no episódio, foram mesmo estereotípicas ou tiveram um sentido bem diferente. Nesta última hipótese, a aplicação do estereótipo seria artificiosa e injusta. Curiosamente, a mídia, embora admitindo que o desembargador era conhecido como homem afável, justo, correto e de bons sentimentos — um tipo completamente diverso do coronelão da célebre crônica de Roberto Da Matta –, decretou que o homem deveria constar da notícia, a ferro e fogo, como a cópía viva, a imagem cuspida e escarrada do “Você sabe com quem está falando?”. Em lógica, isso se chama “analogia imprópria”: a falsa redução do caso particular a uma regra geral por meio de comparação forçada. Mas, para a elevada moralidade da nossa classe jornalística, isso pouco importa. Por um decreto dos tzares das redações, o atípico tornou-se estereotípico. Acrescente-se à ordem imperial o aplauso imediato do trêfego prefeito César Maia, ansioso por bajular o eleitorado negro que ele decerto imagina ter o QI de vacas e gansos — e pronto: está no ar mais um capítulo da comédia nacional, com o desembargador no papel do malvado sinhozinho, a policial Rosemeire no de escrava Isaura e César Maia no de Princesa Isabel.
Se o desnível de poder entre um desembargador e uma policial de trânsito é irrisório em comparação com o que existe entre a grande mídia e o desembargador, dane-se: as máscaras respectivas já estão a priori distribuídas no elenco, e de quê vale o senso das proporções, de quê vale a realidade mesma ante as exigências mais altas da justiça poética?
Que o factóide possa ter efeitos reais, que a vida de um homem bom possa ter sido destruída pelo prejulgamento baseado numa má figura de linguagem, quem liga para isso? Na mente dos nossos jornalistas, que molda o Brasil de amanhã, a justiça ou injustiça das condutas individuais é irrelevante, se cotejada com o peso maior das catalogações sociológicas envolvidas. Há classes culpadas e classes vítimas, com suas respectivas fisionomias raciais. Se você pertence às primeiras, não precisa cometer pessoalmente um crime para ser punido: a simples aparência de crime, somada à circunstância abominável de ser um membro da elite exploradora, já faz de você um candidato potencial à execração pública. Para passar da potência ao ato, basta uma analogia imprópria. E a mídia solícita está sempre pronta a fornecê-la, ciente de que seu dever número um é estimular, ao menor pretexto, o ódio racial e o ódio de classe.
Quem depois disso negar que o íncubo ideológico do comunismo domina o espírito das redações ficará reduzido ao estado de avestruz, não muito superior em discernimento ao das vacas e gansos.
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Falando nisso: enquanto nossa mídia se esforça para fomentar a revolta antecipada contra um possível ataque norte-americano à central mundial do terrorismo, a inofensiva Taiwan já está sob a mira de 600 mísseis, cercada por navios de guerra chineses — e nem uma linha a respeito surge nos jornais ou nos noticiários de TV.