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Em plena guerra assimétrica

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 24 de julho de 2006

Quando o sr. Hugo Chávez proclama que sua estratégia contra os EUA é a da “guerra assimétrica”, já não há como negar que esse conceito é o instrumento essencial para a descrição e compreensão do estado de coisas na América Latina. Se nossos comentaristas internacionais, analistas estratégicos, politólogos e tutti quanti continuam a usá-lo com parcimônia ou a abster-se por completo de usá-lo, não é só por preguiça mental: é porque um dos elementos fundamentais da assimetria é a desigual iluminação do quadro. Esses cavalheiros jamais desejariam ver o seu querido mentor bolivariano mostrado à mesma luz implacável e crua com que seus inimigos são exibidos e dissecados diariamente na mídia. Conceder a um dos lados o direito à penumbra protetora e obrigar o outro a um contínuo strip-tease ante a curiosidade sádica dos holofotes não é descrever nem analisar a guerra assimétrica: é praticá-la. Jornalistas, professores e similares, os “formadores de opinião” ou “intelectuais”, no sentido calculadamente elástico que Antonio Gramsci dá ao termo, são a vanguarda da revolução. Sua função não consiste em mostrar o mundo como ele é, mas transformá-lo naquilo que ele não é. Deformar propositadamente o quadro, portanto, é seu dever profissional número um.

Mas a palavra mesma “deformação” é um tanto enganosa. Deformar por meio do fluxo de informações uma realidade preexistente é uma coisa; outra bem diversa é criar praticamente do nada uma nova realidade constituída de puro fluxo de informações. Mentir em situações de guerra, para favorecer um dos lados, é tão antigo quanto a própria guerra. Mas mesmo o formidável desenvolvimento da técnica da desinformação ao longo de duas guerras mundiais e inumeráveis revoluções do século XX não dá uma imagem adequada do que hoje se passa. Em todos esses casos, os “formadores de opinião” desempenhavam um papel auxiliar: a parte substantiva dos conflitos desenrolava-se nos campos de batalha. Os protagonistas da narrativa bélica eram os militares, os guerrilheiros, os terroristas, os partiggiani. Jornalistas e tagarelas em geral formavam apenas o coro. Nas últimas décadas, as proporções inverteram-se. A integração mundial das comunicações e a conseqüente reorganização da militância revolucionária em “redes” de extensão planetária permitiram reduzir ao mínimo a função bélica das armas e ampliar ao máximo a da guerra de informações. O princípio subjacente a essa mudança é simples e baseia-se na regra clássica da arte militar que mede a eficácia da ação armada segundo a relação custo-benefício que ela guarda com os resultados políticos visados. Quanto mais ampla a repercussão política que se pode obter com um esforço militar reduzido, tanto melhor. Nesse sentido, batalhas inteiras da II Guerra Mundial, com centenas de milhares de mortos, foram politicamente menos relevantes do que alguns ataques terroristas comparativamente modestos realizados nas últimas décadas, pela simples razão de que neste caso havia meios de alcançar repercussão jornalística mais vasta e mais imediata, determinando decisões de governo que em outras épocas necessitariam de um estímulo sangrento muito mais eloqüente. Exemplos característicos foram a guerrilha mexicana de Chiapas, militarmente irrisória, que graças ao apoio instantâneo da mídia internacional conseguia transformar em vitória política cada nova derrota que sofria em combate, e o atentado à estação férrea de Madri, que do dia para a noite fez a Espanha mudar de lado na guerra contra o terrorismo. Napoleão, Rommel, Zhukov ou MacArthur jamais sonharam em obter resultados tão espetaculares com investimentos bélicos tão minguados.

O fenômeno ao qual estou me referindo recebe às vezes o nome de “guerra informática” (netwar). A bibliografia a respeito já é bem extensa e foi inaugurada em 1996 com a excelente monografia da Rand Corporation sobre a guerrilha de Chiapas, The Zapatista ‘Social Netwar’ in Mexico, que pode ser comprada ou descarregada gratuitamente em PDF no site http://www.rand.org/pubs/monograph_reports/MR994/index.html, mas nunca encontrei entre as elites brasileiras, seja intelectuais, empresariais, políticas ou militares, quem a tivesse lido. Menos ainda encontrei quem tivesse alguma consciência clara da ligação entre guerra informática e guerra assimétrica, embora essa ligação seja a chave mesma para a compreensão do quadro internacional hoje em dia. A fórmula do negócio pode ser enunciada numa frase: A guerra assimétrica não é outra coisa senão uma estratégia destinada a compensar a desproporção de força e capacidade militares por meio da guerra informática. Uma sugestão para quem deseje entender o funcionamento da coisa é ler a monografia da Rand junto com o livro de Jacques Baud, La Guerre asymétrique, ou la défaite du vainqueur, Paris, Editions du Rocher, 2003.

Uma vez que se entendeu a unidade de guerra informática e guerra assimétrica – e quem não entendeu está fora do mundo –, torna-se inevitável tirar dessa convergência de estratégias algumas conclusões óbvias:

1. Os alvos da guerra assimétrica são três e sempre os mesmos: os EUA, Israel e aquilo que, nesses países ou em quaisquer outros, ainda reste da civilização judaico-cristã. A “guerra cultural” é parte integrante da guerra assimétrica.

2. Se a identidade dos alvos é nítida e bem conhecida, a das forças atacantes permanece difusa e nebulosa ao ponto de que a noção mesma de sua unidade estratégica continua impensável até para o público mais culto. Para apreendê-la é preciso ter estudado a estrutura das “redes”, mapeando a circulação de dinheiro, de informações e de palavras-de-ordem entre governos, fundações, partidos políticos, ONGs, banditismo organizado e mídia no mundo inteiro. Elementos para esse estudo podem ser encontrados nos sites http://www.discoverthenetworks.org e www.activistcash.com, que já citei aqui, bem como na recém-inaugurada seção “Mapas Visuais” do jornal eletrônico brasileiro www.midiasemmascara.com.br. Quem quer que examine esse material com a devida atenção sabe que a existência de um eixo anti-americano, anti-israelense e anticristão formado pelos governos da Rússia e da China, pelas fundações globalistas bilionárias, pela grande mídia esquerdista chique, pela rede terrorista internacional e por milhares de organizações militantes espalhadas pelo mundo não é uma hipótese ou uma teoria: é um fato brutalmente real – o fato essencial do nosso tempo. Mas as informações que o evidenciam não saem, é claro, no “Jornal Nacional” nem na “Folha”, não são alardeadas desde o alto das cátedras universitárias e, enfim, não chegam de maneira alguma ao público maior. O resultado é que a hostilidade contra os EUA, Israel e o cristianismo, meticulosamente fabricada a um custo de muitos bilhões de dólares, parece surgir do nada, como manifestação espontânea dos belos sentimentos morais da humanidade – e qualquer tentativa de contestar essa hipótese logicamente insustentável e supremamente imbecil é rejeitada, mesmo por pessoas cultas, como “teoria da conspiração”. O sucesso psicológico da guerra assimétrica pode medir-se pela facilidade com que histórias da carochinha acabam parecendo mais verossímeis do que os fatos mais abundantemente comprovados.

3. A função da mídia e dos “formadores de opinião” em geral, no novo quadro estratégico, é bem diversa daquele papel meramente auxiliar que tiveram em outras ocasiões, incluindo nisto as vastas campanhas de desinformação e manipulação montadas pelo governo soviético desde a década de 30 até o fim da Guerra Fria (campanhas cuja amplitude permanece ainda desconhecida fora do círculo dos estudiosos, por ter sido revelada só a partir da abertura temporária dos Arquivos de Moscou). Se a orientação geral é inverter as proporções recíprocas do esforço bélico e da manipulação informática que o transmuta em resultados políticos, os militares e terroristas é que se tornam força auxiliar, enquanto o papel principal incumbe aos manipuladores da opinião pública. Uma vez que você percebeu isso, sabe que é uma ingenuidade suicida continuar interpretando a situação como se os únicos agentes revolucionários que importam fossem os terroristas e os militantes mais descarados a serviço de organizações subversivas e como se os formadores de opinião fossem apenas cidadãos inofensivos exercendo candidamente o seu direito à liberdade de expressão. Ao contrário: jornais, rádios, noticiários de TV, aulas, livros, espetáculos de teatro são hoje as principais armas de guerra, sua função essencial ou única é serem armas de guerra, e por isso mesmo o controle planejado do noticiário deixou de ser uma exceção para se tornar a regra. Um dos sinais mais alarmantes dessa mudança é o fato de que a exclusão de notícias indesejáveis, um recurso extremo antes usado com parcimônia até por censores oficiais, se tornou procedimento normal e rotineiro da maioria dos órgãos da chamada “grande mídia” (no Brasil, em todos eles, sem exceção). A supressão é tão vasta e tão sistemática que continentes inteiros da realidade contemporânea se tornaram invisíveis para o público. Notícias sobre torturas e assassinatos políticos em Cuba, na China, no Vietnã ou na Coréia do Norte, por exemplo, desapareceram por completo há mais de vinte anos, embora nesse período o número das vítimas nesses países não esteja abaixo dos dez milhões de pessoas. É só quando projetados sobre esse fundo vazio que epidódios inócuos como as humilhações ocasionais e incruentas sofridas por terroristas em Abu-Ghraib ou Guantánamo podem despertar atenção. É só nesse quadro totalmente deformado que centenas de mísseis lançados diariamente contra Israel podem parecer menos chocantes do que a tardia reação israelense. É só nesse mundo de fantasia que o simples pedido de uma congressista da Flórida para que o governo americano estude a possibilidade de alguma ação militar na Tríplice Fronteira pode parecer uma intervenção estrangeira mais perigosa, e mais insultuosa à dignidade nacional, do que a movimentação efetiva e constante, naquela área, de bandos de terroristas armados atuando em parceria estreita com quadrilhas de narcotraficantes, sob os olhos complacentes das nossas autoridades federais. É só no reino da mentira total que a presença amazônica de agentes do Conselho Mundial das Igrejas, um órgão acentuadamente pró-comunista e anti-americano, pode ser vendida ao público como prova de intervenção imperialista ianque. Não, já não se trata de censurar esta ou aquela notícia, mas de modificar radicalmente a estrutura e as proporções do panorama inteiro. Já não se trata de enganar o público quanto a um ou outro episódio em particular, mas de modificar sua percepção integral da realidade.

Por isso é que a “guerra assimétrica”, tão constantemente presente no mundo dos fatos, raras vezes ou nunca dá o ar da sua graça no universo de discurso da mídia brasileira. É que aí não se trata de falar da assimetria, mas sim de criá-la.

***

P. S. – No meu artigo “A política do tigre”, deixei passar dois erros de concordância, frutos do cansaço e da sobregarga. Nenhum de meus críticos usuais, tão zelosos em contestar detalhes naquilo que escrevo, acusou qualquer dos dois. Condescendência fingida ou analfabetismo genuíno?

Quem fiscaliza os fiscais?

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 23 de fevereiro de 2006

Não existe a mais remota semelhança entre as táticas de pressão psicológica usadas pelos americanos nos terroristas presos e as torturas mutilatórias, incapacitantes ou mortais empregadas em escala incomparavelmente mais vasta contra civis em países comunistas e islâmicos. As primeiras são substancialmente idênticas às que foram aplicadas aos prisioneiros nazistas após a II Guerra Mundial. As segundas são iguais às usadas pelos próprios nazistas contra os opositores do regime. A diferença é estridente. Nenhum ser humano em seu juízo perfeito pode achar que empurrões, gritos, tapas e exposição a vexames sejam o mesmo que amputações, espancamentos, fraturas, choques elétricos e outras práticas usuais da velha Abu-Ghraib de Saddam Hussein ou dos oitocentos presídios da ilha de Fidel Castro, entre as quais a Guantanamo originária, poço de horrores comparado ao qual a homônima prisão americana é um hotel de cinco estrelas.

Qualquer órgão de mídia que continue apelando à mesma palavra, “tortura”, sem distinções comparativas, para designar por igual as duas coisas, é indigno da confiança dos leitores. Ao alardear cobertura honesta, comete delito de propaganda enganosa, infringindo o Código de Defesa do Consumidor.

Jamais vi um único jornal brasileiro — e raramente algum americano — que estivesse inocente desse delito, com o agravante de que o destaque concedido em todos eles às denúncias contra os EUA forma um contraste obsceno com a míngua de notícias sobre tortura e assassinato de prisioneiros em Cuba, na China, no Vietnã, na Coréia do Norte ou nas ditaduras islâmicas. A distribuição do espaço, inversamente proporcional à quantidade e gravidade das informações disponíveis, comprova a adesão da classe jornalística a um código de valores no qual a veracidade deve ser sacrificada aos interesses da corrente política mais brutal e criminosa que já existiu no mundo.

A desproporção a que me refiro pode ser facilmente demonstrada por meio de aferições objetivas do espaço e do realce dado às notícias. Desafio publicamente todos os órgãos de mídia deste país a submeter suas publicações a um teste desse tipo, a provar que não estão ocultando milhares de crimes monstruosos por trás da ênfase obsessiva e espetaculosa concedida a maldades chinfrins, ampliadas pela impropriedade vocabular proposital.

Certa vez o diretor de um grande jornal de São Paulo, ao qual eu apontava essa distorção sistemática da realidade, tentou mesmo justificá-la, alegando que os delitos americanos mereciam mais atenção justamente porque os EUA eram uma democracia, da qual se esperaria conduta melhor. Esse argumento, observei, era o suprassumo da perversão jornalística: equivalia a decretar que pequenos deslizes de homens honestos deveriam ser denunciados com mais alarde do que crimes hediondos cometidos por assassinos habituais.

Se me perguntam como e por que a mídia brasileira chegou a esse ponto, não respondo com uma teoria, mas com um exemplo factual. Quando em 1993 a CUT admitiu que tinha oitocentos jornalistas na sua folha de pagamentos, ninguém reconheceu o óbvio: que essa confissão justificava a imediata abertura de uma CPI para apurar a mais vasta operação de suborno já registrada na história dos meios de comunicação na América Latina. Se a hipótese dessa investigação não chegou a ser cogitada, não foi por coincidência. Na mesma época, parlamentares da CPI das empreiteiras reconheciam abertamente que sua atividade consistia apenas em endossar com servilismo canino as denúncias saídas nos jornais e noticiários de TV. Comprometida até à medula, a classe jornalística tinha se tornado, por autopromoção, a mais temida autoridade moral deste país, à qual ninguém ousaria desagradar. Mas é evidente que a honestidade jamais poderá imperar num país em que o hábito da mentira interesseira se impregnou na mente dos próprios formadores de opinião, dos próprios fiscais do bom comportamento geral.

Ciência política?

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 7 de setembro de 2003

No site das Faculdades Porto-Alegrenses, http://www.fapa.com.br, encontro estas linhas de um tal Reginaldo Carmelo de Moraes, professor de ciência política da Unicamp, publicadas na indefectível Caros Amigos e recomendadas como leitura para os alunos do curso de licenciatura em História daquela instituição gaúcha:

“Os neoconservadores adeptos do filósofo Leo Strauss retomaram a seu modo a teoria nazi de Carl Schmitt, de modo a adaptá-la ao fundamentalismo cristão de Bush e seus íntimos. Schmitt, principal jurista do Terceiro Reich, tomara como tarefa liquidar a Constituição da República de Weimar. Dizia que ela, fundada sobre o liberalismo político e os direitos individuais, era corrompida e impotente para conter os movimentos políticos carismáticos e ‘mitos irracionais’ com que os bolcheviques e similares conquistavam as massas. Por isso, defendia um regime de exceção, uma ditadura, que governasse por decreto e salvasse a ordem… Strauss e seus discípulos nos EUA não esqueceriam essas lições do mestre. Eles também teriam seu incêndio do Reichstag e sua invasão da Polônia. Logo depois do 11 de setembro, o Departamento de Justiça baixou normas legais que davam ao governo federal poderes de um Estado policial.”

Se algo aí se demonstra é que esse menino nunca leu nada de Carl Schmitt, muito menos de Leo Strauss. Longe de tentar defender o Estado contra o assalto dos “mitos irracionais”, Schmitt via a própria ordem política como essencialmente irracional, constituída da rivalidade entre alternativas que, não admitindo arbitragem lógica, requeriam a divisão sumária do campo entre “amigos” e “inimigos” e a luta pela vitória a todo preço.

Essa doutrina ajustava-se como uma luva não somente à ideologia nazista, mas também à comunista, o que fez de Carl Schmitt, como escreveu Corrado Occone, “il reazzionario che piace a la sinistra” (o reacionário que agrada à esquerda). Não há, efetivamente, diferença essencial entre ela e a regra leninista do debate político, que visa “não a persuadir o adversário, nem a apontar seus erros, mas a destruí-lo”.

Houve realmente, às vésperas da II Guerra Mundial, uma corrente política empenhada na busca dos objetivos que Carmelo diz terem sido os de Schmitt. A constituição austríaca de 1934, impondo um regime de exceção para conter o avanço dos “mitos irracionais”, não se inspirou em Schmitt, mas, ao contrário, no temor causado pela vitória nazista na vizinha Alemanha. Carmelo troca as bolas e atribui ao nazismo as intenções de suas vítimas austríacas.

Ainda mais resplandecente de ignorância é a conclusão do parágrafo, segundo a qual o atentado ao World Trade Center teria dado a “Strauss e seus discípulos” a oportunidade de colocar em prática a doutrina Schmitt: em 11 de setembro de 2001, Leo Strauss não podia “recordar as lições” de quem quer que fosse, pois estava morto desde 1973.

O espírito de Carl Schmitt baixou é sobre o próprio Carmelo, que, no seu ataque aos neoconservadores, não busca apontar algum erro na sua filosofia, da qual ele nada sabe, mas apenas sujar-lhes a reputação por meio de uma associação postiça com o teórico nazista, do qual, para cúmulo de ironia, o citado Leo Strauss, judeu fugido do III Reich, foi um dos críticos mais severos.

Até quando a simples adesão a uma vulgar e baixa retórica esquerdista será, neste país, condição necessária e suficiente para o exercício do cargo de professor universitário, independentemente e acima das mais elementares exigências intelectuais?

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