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Cinto de castidade

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 16 de abril de 2006

Não restando no idioma pátrio nomes de vícios, pecados, infrações, delitos, aberrações e iniqüidades várias que já não tenham sido usados com inteira propriedade para descrever a conduta dos presentes governantes do país, faz tempo que chegamos àquele ponto de exaustão lingüística em que qualquer outro povo, no nosso lugar, já teria parado de falar e partido para a ação decisiva.

Se não fazemos isso, é por um motivo muito simples: povos não agem, povos apenas sofrem, desejam, sonham e esperam. Quem age são elites organizadas, e no caso brasileiro nenhuma delas pode se mexer, porque todas têm rabo preso . Todas, sem exceção, colaboraram para a criação do presente estado de coisas e têm razões de sobra para temer que qualquer sacolejo mais vigoroso na fortaleza estatal de papier mâché trará à luz, junto com as culpas do governo petista, as suas próprias.

Mas há também um motivo mais sutil por trás dessa paralisia.

Quando o senador Arthur Virgílio, um dos mais veementes acusadores do governo, recua ante a possibilidade de um impeachment que ele próprio reconhece ser justo e fundamentado, a razão que ele alega para esse súbito ataque de covardia é inteiramente plausível – mas é isto mesmo o que a torna ainda mais repulsiva. “Falta de apoio popular”, diz ele. É verdade. Com acusações muito menos graves pesando sobre suas costas, o ex-presidente Collor atraiu contra si, da noite para o dia, uma mobilização nacional tão ruidosa e multitudinária quanto a das Diretas Já. Ninguém, na época, admitiu o óbvio: que nada nessa explosão de ódio foi espontâneo, que tudo consistiu apenas em convocar a rede de organizações militantes que já estava preparada desde muito antes para atender a qualquer chamado de seus líderes e saltar sobre a goela do primeiro que eles a mandassem esganar, linchar ou comer vivo.

Nada de similar existe para ser convocado a gritar nas ruas contra a gangue lulista.

Há 40 anos, a “direita”, ou o que quer que leve esse nome, cedeu ao esquerdismo o monopólio da organização popular, contentando-se com a política de gabinete suficiente para suas finalidades imediatistas e abdicando de todo discurso ideológico próprio.

Vazia de meios e de idéias, essa oposição, ao sentir-se estrangulada pela prepotência petista, não pôde apelar senão ao expediente das imputações criminais assepticamente apolíticas , preservando-se assim de merecer o temido rótulo de direitista (que nem por isso deixou de lhe ser aplicado), mas condenando-se a só poder combater num campo limitado o adversário que, enquanto isso, a atacava por todos os lados.

Ainda assim, a quadrilha instalada no poder foi tão auto-indulgente, tão bestamente confiante, que ultrapassou todos os limites da prudência criminosa e começou a delinqüir em plena luz do dia, tornando-se visível e vulnerável. Foi ferida num só ponto, mas a ferida foi funda o bastante para fazer o monstro balançar. Balançar, porém, não é cair. Vendo a dificuldade de derrubá-lo, seus atacantes começam a vacilar, entregando-se a temores dissolventes e considerações eleitorais desanimadoras, quando deveriam, ao contrário, corrigir seu erro de quatro décadas e ampliar a frente de ataque.

O círculo dos crimes petistas é mais vasto do que sugere a vã filosofia tucana. Vai muito além de encontros sorrateiros num bordel de Brasília. Investiguem o Foro de São Paulo, sigam a pista das conexões entre PT e Farc, e verão que a criminalidade petista não é avulsa nem é traição às raízes comunistas do partido. É conspiração revolucionária, é subversão total da ordem, é destruição fria e premeditada das leis, do direito e da fé pública em escala continental.

Só que, para ter a energia de lutar contra isso, é preciso quebrar o cinto de castidade que a própria hegemonia cultural petista afivelou em seus adversários, que eles tão docilmente aceitaram como prova de bom-mocismo e que acabou por se amoldar ao seu corpo como uma segunda natureza. Para combater um mal tão gigantesco, é preciso algo mais que legalismo, inquéritos e discursos. É preciso virilidade política. Antes de vencer o PT, é preciso superar a carência geral de testosterona.

Esquerda inteligente

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 19 de fevereiro de 1998

Se a esquerda conquistou a hegemonia cultural neste país, não foi só por meio de truques sujos – ocupação forçada de espaços na mídia, badalação mútua entre seus próceres, patrulhamento ideológico, etc. Foi também por mérito. Na década de 60, quando começou a etapa decisiva da sua escalada, a esquerda pensante estava na sua melhor forma. Uma corrente ideológica só se torna a expressão legítima do seu tempo quando se mantém um pouco acima dele e consegue enxergar a linha do seu horizonte. Naquela época, a esquerda tinha uma visão global, conseguia dar ao panorama do mundo a inteligibilidade de um sentido. Hoje ela perdeu a unidade do sentido e o controle intelectual dos dados: não entende mais nada, não sabe onde está e se agita no escuro como uma ratazana presa num bueiro. Sua única certeza é o ódio irracional que sente por aquilo que não compreende. No empenho de preservar à força uma hegemonia que rapidamente vai se tornando mero simulacro, ela atira para todos os lados, na esperança vã de que sua impotência teórica possa ser compensada por uma retórica de insultos e de apelos moralísticos.

Nem tudo, porém, é baixeza e estupidez no templo do esquerdismo letrado. Alguns sinais de vida inteligente e de nobreza de espírito ainda se notam ali, e o mais luminoso deles – justamente o mais desprezado pela massa dos intelectuais militantes – é a obra de Roberto Mangabeira Unger. Ela é extensa demais para ser analisada aqui, e por isto me limito a chamar a atenção para um de seus muitos méritos, no qual se manifesta também a sua limitação intrínseca.

Em seu livro Conhecimento e Política , que, publicado em 1978 pela Forense, ainda não despertou a atenção que merece, Unger faz a crítica das premissas psicológicas subentendidas nas teorias políticas que sustentam o liberalismo capitalista. Tais premissas, segundo ele, implicam uma visão dualista que separa tragicamente a razão e o sentimento, o público e o privado, as exigências da ordem social e as necessidades interiores do homem.

Na desocultação dessas premissas psicológicas Unger mostra uma notável capacidade de apreender as intenções fundamentais por trás de uma variedade imensa de idéias e acontecimentos. É muito séria, também, a crítica que ele faz da mutilação espiritual que essas premissas impõem ao ser humano.

Mas ele passa a muitos metros do alvo ao supor que essa crítica se aplicará, por extensão e mutatis mutandis , ao liberalismo como prática social. Nem por um momento ele parece suspeitar que a mesma prática pode ser sustentada – e de fato o foi – a partir de premissas psicológicas inteiramente diversas e até opostas. Na verdade, uma prática bem-sucedida nem sempre é prova da teoria que a legitima, podendo ser resultado de causas supervenientes não previstas na teoria.

O sistema político inglês, por exemplo, não é um traslado plano e raso das idéias liberais, mas o resultado do enxerto delas num tronco muito antigo, cuja seiva brota de tradições religiosas medievais às quais o liberalismo, em teoria, era francamente hostil.

Do mesmo modo, o sistema norte-americano jamais refletiu o puro e incontaminado liberalismo da teoria, mas, ao contrário, apenas o resultado de sua fusão com um legado religioso profundamente conservador e tradicionalista, cujas premissas psicológicas são radicalmente opostas àquelas que Unger aponta como características do liberalismo. Seria interessante que ele examinasse, por exemplo, o transcendentalismo de Emerson ou a “ética da lealdade” de Josiah Royce, e se perguntasse como elementos tão estranhos ao mencionado dualismo puderam se integrar tão utilmente na ideologia do capitalismo norte-americano.

Malgrado a profundidade do olhar que Mangabeira Unger lança sobre o subconsciente moral do capitalismo, ele não escapa às limitações inerentes ao que chamarei razão progressista : a confusão entre ideal e futuro, que, atribuindo a um futuro indeterminado – e portanto necessariamente sempre adiado – o prestígio e a autoridade do supratemporal, se arroga o direito de tudo julgar segundo uma norma tanto mais dogmática e autofundamentada quanto mais mutável e deslizante.

É em grande parte com base no viés progressista, e não com plena isenção, que Unger empreende sua crítica do liberalismo. Essa crítica é ideológica no sentido restritivo da palavra, isto é, ela amplia desproporcionalmente certos aspectos de seu objeto e diminui outros, não em razão de simples ênfase pedagógica ou figura de linguagem, mas com vistas a um resultado político.

O próprio liberalismo, como teoria e proposta de reforma política, nada mais foi que um momento do perpétuo deslizamento progressista, momento “superado” quando novas críticas e novas propostas fatalmente emergiram, para atribuir ao liberalismo as culpas que ele, por sua vez, atribuíra a seu antecessor na série. A proposta de Mangabeira Unger é um momento posterior do mesmo processo, um novo adiamento do ajuste de contas entre as idéias e suas conseqüências práticas.

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