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A consciência sem consciência

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de março de 2009

Todos nós, em momentos difíceis da vida, já tentamos nos explicar a alguém que não quer ou não pode nos compreender. O olhar do sujeito desliza de um lado para outro por trás de um véu opaco, sem atingir o foco do que pretendemos lhe mostrar; e, como não tem foco, não consegue articular num quadro coerente o que lhe dizemos. Ele apreende as palavras e até frases inteiras, mas as esvazia de sentido ou lhes atribui um sentido impróprio, deslocado da situação. É uma coisa irritante, às vezes desesperadora.

Também todos já vimos pessoas que, envolvidas elas próprias em dificuldades, não atinam com a encrenca em que se meteram. Ou permanecem alienadas, numa despreocupação suicida, ou se enervam e atemorizam, mas por motivos inventados que não têm nada a ver com o problema real.

Esses dois tipos de pessoas estão “conscientes”, no sentido da neurofisiologia e da ciência cognitiva, mas não no sentido que a palavra “consciência” tem na vida real. A “consciência” que essas ciências estudam é a simples capacidade de notar estímulos. Elas não podem ir além desse ponto. Não podem distinguir entre o idiota que sente frio na pele e o homem sensível a quem a visão da neve sugere, num relance, o contraste entre a beleza da paisagem e o perigo a que o inverno expõe os pobres desabrigados.

Essa diferença, guardadas as proporções, é a mesma que existe entre os indivíduos dotados de sensibilidade musical e o doente de tune deafness. Esta expressão, para a qual não achei uma tradução unanimemente aceita em português (pode ser “privação melódica”), designa a pessoa que, embora sem sofrer de nenhuma deficiência auditiva, simplesmente não consegue captar uma melodia. Ouve as notas separadas, mas não atina com a frase musical que compõem. Se o cantor desafina, ou o pianista toca um ré onde deveria entrar um fá, ela não nota a mínima diferença. Nos casos mais graves, o doente não consegue nem mesmo entender o que é música: não nota a mínima diferença entre os Concertos de Brandemburgo e o som das buzinas no tráfego congestionado. A doença é esquisita, mas não rara: segundo dados recentes, dois por cento das pessoas têm algum grau de tune deafness.

Victor Zuckerkandl, em Sound and Symbol (1956) – um livro esplêndido –, diz que essa diferença assinala a distinção específica da música, separando-a de todos os demais fenômenos acústicos. A música, em suma, tem não apenas ordem – o ruído de um motor também tem. Ela tem significado: aponta para algo que vai além dos elementos sonoros que a compõem. A distância entre ouvir sons e apreender uma melodia é a mesma que há entre ouvir palavras e compreender o que dizem – ou, pior ainda, entre compreender o mero sentido verbal das frases e reconhecer a que elas se referem na vida real.

Para complicar ainda mais as coisas, um estudo recente, que pretendia encontrar alguma explicação neurocerebral para a tune deafness, descobriu, para grande espanto dos pesquisadores, que, embora as pessoas afetadas por essa deficiência não percebam uma nota errada, seus cérebros registram a diferença com a mesma acuidade com que o faria o cérebro de Mozart. Elas ouvem a música perfeitamente bem, mas a ouvem – dizem os autores da pesquisa – “inconscientemente”. Seus cérebros percebem a melodia: quem não a percebe são elas (v. Allen Braun et al., “Tune Deafness: Processing Melodic Errors Outside of Conscious Awareness as Reflected by Components of the Auditory ERP”, em http://www.plosone.org/article/info:doi/10.1371/journal.pone.0002349).

Zuckerkandl, que morreu em 1965, não poderia esperar que sua teoria recebesse, meio século depois de publicada, uma confirmação tão eloqüente. O que não lhe escapou foi a importância filosófica da sua descoberta, que, por ir na contramão das modas científicas, permaneceu quase desconhecida das classes letradas por muitas décadas (antes dos anos 90 só a vi citada em Henry Corbin, que a usava para explicar os estados místicos no esoterismo iraniano do século XIII – assunto que não é propriamente um sucesso de público).

A percepção da música, no fim das contas, requer o mesmo tipo de compreensão necessário para você apreender uma situação dramática complexa, seja a sua própria, a de um interlocutor ou a que você lê em Hamlet, Crime e Castigo, A Montanha Mágica e assim por diante. Ora, para explicar o fato de que o cérebro registre uma sensação de frio, os cientistas são obrigados a decompor esse fenômeno banal numa série de processos neurobiológicos incrivelmente complexos. Nem esses processos estão ainda bem explicados, mas, como o sonho da ciência materialista é poder reduzir a eles a consciência inteira, explicando-a como “produto” do cérebro, muitos adeptos do materialismo agem como se já tivessem operado a redução e fornecido para ela as provas mais cabais e irretorquíveis, daí concluindo que a consciência, como tal, nem mesmo existe: é apenas uma função cerebral entre outras. Isso é charlatanismo, evidentemente, mas as fontes que o inspiram vem ainda de mais baixo do que o charlatanismo puro e simples.

Notem bem: além daquela diferença assinalada pelo fato da tune deafness, a consciência tem ainda um segundo traço distintivo, que a separa de qualquer outro fenômeno conhecido no universo. Não importa do que você esteja falando, o milagre da linguagem abstrata permite que você se refira aos objetos não só sem necessidade de que eles estejam presentes fisicamente, mas sem necessidade de que você pense neles como coisas reais. Você pode até substituir o mero conceito abstrato deles por um sinal algébrico e continuar raciocinando a respeito sem nem se lembrar dos seus correspondentes reais, seguro de que, no fim do raciocínio, se formalmente correto, você encontrará conclusões que se aplicarão tim-tim-por-tim-tim a esses correspondentes. Se não fosse isso, não poderiam existir computadores. No entanto, nada de parecido se dá com a consciência. Você não pode falar dela sem que ela esteja presente e em ação naquele mesmo instante. O verdadeiro discurso sobre a consciência tem, ao contrário, o dom de intensificar a consciência no instante mesmo em que você raciocina a respeito dela, como uma luz que, tão logo acesa, acende uma série de outras automaticamente e ilumina o recinto inteiro. Esse é o sentido em que se fala de “consciência” na vida real. Esse discurso exige a presença do falante consciente e responsável que se assume como presente no ato mesmo em que discorre. Se, em contrapartida, você reduz a consciência a um fenômeno genérico, do qual possa falar como coisa externa, o objeto escapa instantaneamente do seu horizonte de consciência, e eis que você já não está falando sobre a consciência efetivamente existente, mas só sobre algum mecanismo ou aspecto dela em particular, perfeitamente inexistente em si mesmo. Consciência, no sentido forte da palavra, é autoconsciência atual, responsável – é algo que só pode existir no indivíduo real, presente, atuante. Consciência genérica, abstrata, é um puro fetiche lógico. Se algum dia descobrirem como o cérebro produz esse fetiche, a consciência continuará inexplicada. O esforço redutivista, no caso, não tem o mínimo alcance científico real. É apenas um engodo hipnótico, um instrumento de controle totalitário da sociedade. Num artigo vindouro explicarei melhor a função política desse artifício.

Menti para os leitores

Olavo de Carvalho


O Globo, 10 de julho de 2004

Menti, sim, menti para os leitores. Escrevi que não podia julgar a obra científica do sr. Richard Dawkins, e no entanto é claro que podia. Podia e posso. Menti apenas para não estragar uma surpresa: estou reservando para esse indivíduo um capítulo inteiro do meu estudo sobre a “paralaxe cognitiva”, fenômeno que nele alcança proporções inauditas.

A paralaxe, se vocês recordam (O Globo 14/12/2002 ou www.olavodecarvalho.org/semana/12142002globo.htm), é o deslocamento, na obra de um pensador, entre o eixo da especulação teórica e o da experiência concreta que ele tem da realidade. É o resultado de um esforço de abstração mal dirigido, que acaba por tomar como separados efetivamente os elementos que tinham sido apenas afastados em imaginação, por facilidade de método.

Nicolau Maquiavel, por exemplo, cria uma fórmula de governo sem notar que, se aplicada, ela teria como primeira conseqüência previsível o assassinato de Nicolau Maquiavel como colaborador principal do “Príncipe” e, portanto, segundo ele mesmo, virtual suspeito número um de traição. Descartes diz que vai narrar um experimento psicológico real no instante mesmo em que coloca como sujeito desse experimento um “eu” abstrato, isolado das condições de tempo e espaço que lhe dariam alguma consistência narrativa. Meu livrinho está cheio desses homens de duas cabeças, mas nenhum deles se compara ao sr. Dawkins, cuja dualidade mental chega a ser quase física. Em todos os demais casos, o hiato que aparece é entre um foco intelectual determinado e o campo mais geral da experiência humana do indivíduo pensante. No sr. Dawkins, em vez disso, o abismo abre-se entre a teoria que ele está tentando provar e a circunstância concreta, imediata, da experiência mesma concebida para prová-la.

É o seguinte. Em favor da sua tese da inexistência de causas finais na origem dos seres vivos, ele argumenta que unidades de informação randomicamente combinadas podem gerar seqüências significativas (mais ou menos como os átomos de Epicuro, movendo-se a esmo no espaço, formavam uma vaca por pura sorte). Para demonstrar essa possibilidade, ele concebeu um experimento informático que não sei se é tocante na sua candura ou revoltante na dose de candura que espera do público. Ele toma uma frase do Hamlet, “Methinks it is like a weasel” (“Acho que é como uma doninha”), e, num programa de computador criado para esse fim, vai produzindo milhares de combinações de letras até que, de repente, aparece de novo na tela: “Methinks it is like a weasel”. Nesse instante o sr. Dawkins exclama algo como: “A-ha! Quod erat demonstrandum!” e se curva com exemplar modéstia ante os aplausos da platéia.

Werner Gitt, diretor do Instituto Federal Alemão de Ciências da Informação, fez a respeito uma observação singela e acachapante: as letras e espaços da frase não são unidades de informação anárquicas. São, precisamente, os sinais necessários para escrever “Methinks it is like a weasel” – seqüência que não se formou por si mesma mas foi escolhida pelo sr. Dawkins. A informação, portanto, não foi “gerada” pelas transformações, mas colocada lá antecipadamente para gerá-las. Em segundo lugar, noto eu que as letras na combinação não significam nada “em si mesmas”, mas só dentro do sistema, previamente dado, da língua inglesa — uma chave que também não foi gerada pelas transformações e sim admitida previamente como código da sua interpretação.

Pensadores que, na hora de examinar um assunto específico, faziam abstração de outras coisas que sabiam de si mesmos, e que assim acabavam por chegar inadvertidamente a conclusões que desmentiam a sua própria existência, já eram tipos esquisitos o bastante para justificar a imagem popular dos filósofos como sujeitos que vivem no mundo da Lua. Mas um cientista que, no ato mesmo de demonstrar sua tese, inventa um experimento que a torna impossível, este é sem dúvida o Prêmio Nobel da paralaxe cognitiva, é a anti-informação encarnada, é a entropia em forma humana. Deve ser por isso que o sr. Dawkins tem tantos admiradores. Eles se multiplicam entropicamente.

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